PAULO MENDES PINTO

A RELIGIÃO NA ESCOLA
UM DESAFIO PARA A DEMOCRACIA E PARA A CIDADANIA (6)

6. Conclusão: para uma laicidade do Estado e para uma cultura religiosa dos cidadãos

Chegados ao momento conclusivo, sistematizemos alguns pontos que decorrem da nossa argumentação, alguns patamares de questões desta complexa teia que se devem ter em conta:

  • 1. No caso português (como noutros), há que ter em conta a forte formação católica da população, uma formação com uma componente de crítica e de teologia muito fraca – trata-se de um factor de identidade colectiva, de pertença, não de crítica;
  • 2. A acentuada erosão da identidade e das práticas religiosas da hegemonia católica; isto é, apesar de a referente cultural ser, obviamente, católica, este tradicional modelo hegemónico já não fornece à população referentes religiosos e cultura religiosa – o grande decréscimo de praticantes fez com que seja cada vez menor a percentagem de população com algum conhecimento, formação, no campo religioso;
  • 3. A globalização provocou uma autêntica reformulação das tradicionais práticas; religiões antes confinadas a determinadas regiões podem agora encontrar-se em qualquer parte do globo através de efectivas comunidades de crentes, ou pela internet;
  • 4. A possibilidade de deslocação de pessoas e de bens tornou possíveis vastos e rápidos movimentos migratórios em direcção aos países mais desenvolvidos – o caso dos chamados PALOP, do Brasil, e de países do Leste europeu é importante na nossa actual teia social;
  • 5. A era lançada com os ataques de 11 de Setembro de 2001 relançou a religião como uma força presente e a ter em conta através da sua possibilidade de mobilização e de geração de terror através de vertentes fundamentalistas.

Perante este grupo de questões que caracterizam a conjuntura actual e as heranças e identidades portuguesas, tentemos equacionar o lugar e o fim da religião na escola.

Primeiramente, voltamos a afirmar que o Estado laico em nada se realiza contra as religiões. Antes pelo contrário; é pelo estudo das religiões que uma forte componente cívica pode ser adquirida, desde que não se tratem de grupos fundamentalistas (o que no caso de Portugal não se coloca). De facto, como verificámos através da legislação mais recente, a assumpção da laicidade do Estado não implica um abandono das religiões. O Estado apenas deixa de fornecer, à priori, um lugar de primazia a uma crença, a uma instituição, consignado no conjunto basilar da sua legislação.

Neste funcionamento legal, pode-se partir de dois pressupostos de coerência e literal justiça intelectual. Por um lado, centrando a organização e gestão do Estado numa lógica racional, ele não tem capacidade para decidir sobre crenças: racionalmente, porque é que uma religião é a certa, ou mais correcta e acertada que outra? Por outro lado, partindo do princípio da igualdade entre cidadãos, todos os cidadãos têm os mesmos direitos e os mesmos deveres face ao Estado e à lei: atribuindo um conjunto de excepção a uma crença, anula-se um princípio basilar do nosso estado de Direito.

Tomando o primeiro pressuposto, é necessário afirmar que o Estado, com a maior honestidade intelectual, deve afirmar a sua impossibilidade de ajuizar religiões. Para os crentes, os grupos organizados em torno de um conjunto de princípios teológicos, a sua verdade, a sua fé, em nada advém das categorias mentais e de racionalidade em que fundamos a nossa organização civil. Uma crença não se comprova, uma crença não se deve comprovar: vive-se, partilha-se e crê-se.

Para nós, cidadãos, toda a realidade social e de relações com o Estado se enforma dentro dos critérios de racionalidade cartesiana. A verdade é a verdade dos factos inquestionáveis pela observação directa, pela argumentação lógica, pelo Direito, pelos princípios estabelecidos e aceites para justiça e para a fiscalidade. Mas, no limite, uma ideia religiosa é sempre uma realidade, uma verdade para quem nela crê – este é um direito inalienável dos cidadãos.

O Estado encontra-se neste princípio: para os seus cidadãos crentes, ele não tem capacidade, dever ou legitimidade de aferir questões de fé. Para os cidadãos crentes, o Estado deve ter uma postura de respeito, qualquer que seja a religião em causa, tomando-os todos (crentes per si, ou instituições religiosas organizadas) como verdadeiros pares.

No que diz respeito ao segundo ponto, é fundamental que o Estado promova a sã integração de todos os cidadãos na vida cívica do país. Quer católicos, quer ateus, quer os crentes de outra qualquer religião devem sentir que o estado, a nação, são efectivamente seus. Qualquer política de sobrevalorização, nomeadamente em contexto escolar, de um grupo face a outro, provoca tensões bastante grandes.

A verdade é que o Estado, sendo laico, tem de conviver e integrar um vasto leque dos seus cidadãos que são crentes. Tempos houve em que se buscou uma sociedade totalmente expurgada de qualquer religião. Absurdo ou equívoco, o que nos interessa reter é que esse projecto falhou redondamente. Sejamos crentes ou simples espectadores dos fenómenos religiosos, a tão propagada morte de Deus de Nietzche redundou em ressurreição.

Desejando-o, ou não, o Estado tem o fenómeno religioso no seu seio e dele não se pode demitir porque estaria a abandonar o que é uma parcela fortíssima da actividade humana, dos seus cidadãos.

Tem-se verificado, apesar de algumas excepções, que a cidadania também se constrói com indivíduos religiosos, tal como a alienação e o totalitarismo já se construiu algumas vezes em sistemas políticos essencialmente laicos. Não há regras e soluções a ter em conta.

O que nos interessa verificar é que só com o desenvolvimento da visão participada da sociedade essa cidadania se constrói.

Noutro campo bastante diferente de sujeitos, há que ter em conta que uma larga fatia da nossa população (como nos nossos restantes parceiros da Comunidade Europeia) não é, de facto, crente empenhado.

Uma nuance temos que construir, que apontar, e que é essencial para perceber a realidade religiosa no Ocidente Europeu: num sentido vivencial, a grande parte dos indivíduos que se dizem católicos não o são; a participação nos ritos é uma parcela essencial, e quem o afirma é a própria Igreja católica, para a construção de uma pertença religiosa minimamente consistente. Ora, neste momento, nem 20% da população nacional participa na «prática dominical». Os restantes que se dizem católicos fazem parte, assumida e consciente, da nossa herança, cultura e mentalidade católica.

Em Portugal, o deixar correr o tempo e o próprio fenómeno religioso sem uma profunda reflexão conduziu a que a religião esteja tornada em ghetto; realidade tolerada dentro da instituição escolar mas efectivamente apartada das questões fundamentais das políticas educativas.

E aqui reside um abissal problema: quando o fenómeno religioso é apenas tolerado, quando lhe é dado um espaço que é apenas o espaço do “politicamente correcto”, não se cria a consciência de que a grande parte dos nossos jovens não ficam com cultura religiosa alguma.

Da forma como o lugar da religião na escola está montado, a prática que dele advém apenas interessa aos profissionais das religiões que, numa dimensão pastoral, quase catequética, mantém o seu lugar na instituição escolar. Essa prática em nada contribui para uma integração social das vivências religiosas alheias e em nada concorrem para uma efectiva cultura de abertura: havendo uma matriz religiosa de base em todas as disciplinas de Religião e Moral (seja ela católica, evangélica ou outra qualquer), o “outro” é sempre o que está do lado de lá da nossa crença, nunca um igual, mas simplesmente um tolerado.

Ora, neste caso, onde está uma educação para a cidadania, para a participação, para a compreensão do “outro”? A religião na escola, tal como ainda a encontramos hoje, está cada vez mais fechada sobre si mesma e fora de toda a dinâmica de construção de conhecimento e de consciência cívica.

Há que ir além da tolerância que tolhe a correcta compreensão do “outro”. Dar um espaço às religiões minoritárias implica que a maioria dos indivíduos continuem a não as conhecer. Há que criar conhecimento de forma aberta e sem preconceitos de pertença. É por ai que o nosso percurso deve ser talhado. Todas as religiões teriam a ganhar porque se perceberia melhor o seu lugar fundamental na nossa sociedade e, eventualmente, se perceberia que não é um “atraso” ser-se religioso ou crer-se em algo de transcendente.

Desta forma, também para um não crente, para um não praticante, temos de dirigir as nossas preocupações – tanto mais que eles são a maioria da população. O cidadão adulto não vai, regra geral, à escola. A cultura religiosa que vai construindo em idade pós-escolar é fruto da televisão e dos restantes media.

Ora, muito se tem dito e escrito sobre o «serviço público de televisão». Os media e os meios audiovisuais são um campo essencial na questão religiosa porque são um importante meio de educação e ensino. Simplesmente, faltam instrumentos que nos permitam, de forma relativamente clara, aferir e definir o que entender para esse serviço.

A situação entre o actual ensino religioso e o serviço público de televisão estão a par nos problemas estruturantes que advém de um mau equacionamento da questão. A actual prática centra-se numa posição politicamente correcta: as diversas crenças podem obter o seu espaço na escola, tal como na televisão e rádios. Mas, e o resto da população, os tais que não são crentes ou praticantes?

De facto, até ao lançamento desta questão, poderia parecer que tudo estava bem articulado dentro do que se deseja para a sociedade através deste princípio igualitário: um espaço em que as religiões podem transmitir as suas tradições, o seu património, a sua mensagem que, no fundo, é imagem e reflexo do seu lugar na nossa sociedade.

Mas, realmente, o essencial da questão não se esgota aqui, antes pelo contrário, a concessão de um espaço específico para as confissões escamoteia, esquece, o fulcro da questão: a religião não é (só) coisa das confissões. A religião enquanto actividade social é um assunto de todos os cidadãos, do Estado.

Como paralelo para a compreensão desta disfunção podemos apelar ao caso do tabaco (sempre tão falado quando se fala em direitos dos cidadãos): há quem fume, que escolha, que tenha por opção fumar, e há aqueles que, nunca tendo tocado num cigarro, são obrigados a conviver, a ingerir, a fumar, o fumo dos outros.

Na nossa sociedade acontece exactamente o mesmo com o fenómeno religioso. Há uma parte do grupo humano português que é praticante de uma qualquer confissão religiosa, e há a grande maioria que o não é. Esta maioria que não vai a templo algum, que não tem no centro do seu dia a dia qualquer culto ou qualquer crença religiosa, vê televisão, ouve rádio e lê jornais e revistas. No limite, ela é diariamente bombardeada, essencialmente via televisão, com notícias sobre as mais bárbaras violências feitas em nome ou no contexto de um qualquer credo – não sendo religiosos, como normalmente se diz, praticantes, eles são consumidores da notícia religiosa; a religião está presente, diria mesmo, é omnipresente, no nosso quotidiano.

Onde deveria estar a ser aplicada a noção de Serviço Público de Televisão? No facto suportado por lei de as confissões terem um espaço televisivo para a transmissão da sua mensagem? Ou no dever de as cadeias de televisão tratarem com conhecimento, rigor e ética, as notícias que todos os dias colocam em nossas casas?

Que mais interessa? Uns minutos diários dedicados a cada confissão, em horário não nobre, ou o tratamento sério, rigoroso e com conhecimento do fenómeno religioso em muitas das notícias que são veiculadas diariamente em horário nobre?

No que diz respeito à escola, a situação é clara. Interessa-nos, a todos nós, sejamos crentes ou não, e de qualquer credo, ter cidadãos conscientes e capazes de tomar atitudes críticas.

Que mais nos interessa, ter o ensino religioso (confessional) na escola, ou ter uma formação cívica que possibilite aos nossos jovens compreender as forças que movem grande parte das dinâmicas dos nossos tempos?