• ÓCIO OU negÓCIO?
    Paulo Mendes Pinto




Tal como mostra a etimologia usada no título deste texto, a nossa cultura tem prezado a distinção entre os tempos de ócio e, o que os nega, os de negócio.

Poderíamos dizer que, para os latinos, a base era o ócio – é que se depreenderia do facto de ser esse o conceito base sobre o qual se forma a sua negação.

Para nós, a base é, claramente, o negócio: o ócio é aquilo que se almeja e se atinge em alguns momentos, nos intervalos possíveis do negócio.

A nível religioso, várias tradições de análise cultural e antropológica identificaram directamente a possibilidade da criação cultural e religiosa com a existência de tempos de ócio, como se de algo acessório à natureza humana se tratasse.

De facto, talvez a cultura e a religião não estejam no pacote mais imprescindível da sobrevivência da espécie, mas cada vez mais se afirma a criação e a fruição das construções mentais como o grande diferenciador face aos restantes seres que habitam este planeta.

Mesmo a tradicional diferenciação entre ócio e negócio, tão afirmada em tempo de férias, tem de ser tomada com grandes cuidados.

O prazer não se afirma apenas no campo do ócio, nem a grandiosidade das criações humanas necessita da pacatez do nada fazer para desabrochar.

Quantas vezes é o stress triunfante, o desgaste, o suor que faz eclodir a grande ideia ou o brilhantismo.

Quão importante é na nossa sociedade a chamada realização individual, quase coincidente com a profissional. A gestão dos prazeres do dia-a-dia passa pelo local de trabalho, pelos desafios e pela afirmação nesse constante mundo do negócio, do trabalho, numa concepção de quase culto e prazer de um «serviço profissional obrigatório».

Quantas vezes em fim de férias não sentimos vontade de voltar às “hostilidades”; um “vamos a eles!”.

Se em tempos ainda não muito recuados alguém afirmou que a religião era o ópio do povo, cada vez mais devemos baralhar esta afirmação de Marx com a cada vez mais forte necessidade de produzir e de nos afirmarmos por esse meio: o trabalho é o ópio do povo.

A uma religiosidade que supostamente anulava a individualidade, a capacidade da afirmação das capacidades do homem (como afirmava Nietzsche), sucedeu uma outra forma de o indivíduo se encaixar no mundo. A grande constante mantém o lugar deixado para o ócio: o periférico que tem lugar umas escassas vezes por ano ...

Ainda não foi desta que o ócio passou a ser a base de tudo.




Paulo Mendes Pinto
Especialista em História e Fenomenologia das Religiões
(Universidade Lusófona, Lisboa)
paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt