PAULO MENDES PINTO - QUE RELIGIÃO EXISTE SEM MULHERES E SEM A RITMICIDADE?
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Dificilmente alguma notícia me poderia deixar mais desolado em relação ao mundo religioso que a recente indicação dos contornos de um documento que, possivelmente, estaria a ser elaborado no sentido de criar e explicitar algumas regras de funcionamento e realização da celebração eucarística católica.

Apesar de não me inscrever dentro do universo religioso em causa, custa-me ver tamanha falta de integração no tempo e na forma como as sociedades humanas evoluiram.

Os supostos conteúdos desse documento fazem tábua rasa de muito do que foi conquistado pelo Estado de Direito e que, felizmente, já fazem parte do nosso património cívico. Ver uma confissão a fechar o seu discurso no sentido de afastar (mais ainda) as mulheres das suas práticas é, pelo menos, procurar dar um tiro nos pés.

Como afirmam muitos sectores feministas, e se as mulheres (maioritárias nas missas) deixassem de ir à igreja ... se fizessem uma greve de zelo? Ficavam as igrejas às moscas ... as esmolas e ofertas tinham uma forte quebra ... Porquê ir até contra alguns avanços do pontificado de João Paulo II e contra algumas linhas saídas do Vaticano II?

Não se compreende, e só é de esperar que esse tal documento ainda seja apenas «de trabalho» e que, de facto, no século XXI, depois de tantas conquistas sociais, não seja a Igreja a vir retroceder em tudo o que de civilização se conquistou.

Mas esse suposto documento fala em mais proibições. Dança e palmas é o que tem sido apontado como futuramente proibido.

Como poderá decorrer uma cerimónia religiosa em África ou na América do Sul com um respeito total por estas ideias?

Compreendo que, e trata-se eventualmente de uma reacção ao mundo da Latino-América, se queira criar um certo afastamento a um modelo de culto, de rito, muito em voga em determinados movimentos religiosos designados muitas vezes por «seitas». No Brasil, por exemplo, há determinadas Igrejas não católicas com um imenso poder social e político.

Mas, apesar de se poderem enquadrar essas proibições numa forma de afirmação da diferença ... está-se a esquecer que culturalmente essa medida nunca será implementada. E nunca será implementada porque é a própria noção de rito, de que a eucaristia participa, que implica o ritmo e a cadência.

Não se pode falar em ritos religiosos sem a dimensão da ritmicidade, da repetição, da interpelação. Um rito é, no campo da sua efectivação, uma actividade em que a poesia e a métrica são essenciais. A missa católica actual ainda o denota quando integra um largo conjunto de repetições e de respostas que os crentes devem proferir. Quando ela era dia em latim, a sua vertente poética era ainda mais clara.

Um rito só tem sentido se envolver os crentes, os participantes. A envolvência serve-se, em toda a parte do mundo, da repetição e do ritmo. Só assim o crente se integra no rito como participante.

Ora, este suposto documento ataca em formas várias a essência das religiões: por um lado nega o seu tempo ao tornar a afastar, e a afastar ainda mais, as mulheres; por outro lado, afasta-se da sua raiz, da sua origem ritual, da sua essência enquanto fenómeno de participação colectiva.

Que mais afirmar. Esperar que sejam falas as notícias.

Paulo Mendes Pinto

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PAULO PINTO. Historiador das Religiões. Universidade Lusófona. Lisboa.
(paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt)

PORTUGAL - 2002/