PAULO MENDES PINTO

e o cristianismo não será europeu...

Recentes artigos de opinião têm feito uma apologia à matriz, à base cristã da Europa. O seu ponto de partida é a inexistência de qualquer referência a esse facto no texto da futura Constituição europeia.

Recentemente, foi noticiado que um grupo de sete dezenas de deputados nacionais (todo o grupo parlamentar do PP, 52 deputados do PSD e 4 do PS) assinaram um documento resultante do colóquio "Deus e a Europa", o "Manifesto d Bruxelas", onde se procura fazer pressão para que ao facto religioso, em especial a base cristã da Europa, apareça explicitamente na futura Constituição europeia.

Ora, em nada negamos, nem se deve negar, o lugar do cristianismo na construção da imagem de Europa, mas a forma como ela tem sido colocada, é de um grande reducionismo, quer para a correcta compreensão do que é a Europa, quer para uma consistente interpretação do próprio cristianismo.

A identidade da Europa, a Europa das liberdades, dos direitos, construiu-se sobre a recusa a uma Europa despótica em que um clero e uma religião enformavam todas as práticas humanas. Não é por acaso que todos os movimentos liberais que terminaram com o chamado Antigo Regime tiveram uma especial expressão na luta contra o poder da igreja católica.

Mas há muito mais a indicar. Que é feito da Europa cristã sem a herança árabe que tanto marcou a filosofia, a medicina e a agricultura, entre outros campos? Que é feito da Europa cristã sem a componente judaica que foi fundamental nas duas revoluções científicas que legou ao mundo (os dois nomes cimeiros dessas revoluções eram, simplesmente, judeus: Newton e Einstein). Que é feito da Europa cristã sem a marca profunda dos movimentos libertários, socialistas e comunistas que marcaram todo o continente nos dois últimos séculos?

Mais para trás, que é da Europa cristã sem a herança do paganismo romano que em muito inspirou as instituições da Igreja? Que é da Europa cristã sem a herança celta? Que é da Europa cristã sem o fundo de cultos politeístas populares que em tudo se encontram nas tradicionais festas e romarias que tanto brilho dão às manifestações católicas?

É que, nem a Europa é apenas cristianismo, nem o cristianismo é apenas Europa. E isto é válido porque, felizmente, nenhum dos dois se reduz ao outro.

Quanto da História do cristianismo radica fora da Europa? Quando da formação europeia se centra fora do cristianismo ou até em sua oposição!

Pelo lado do cristianismo, não consta que Jesus se tenha naturalizado europeu ... de nascimento era asiático. O mesmo se aplica a todos os seus discípulos. Muitos dos nomes máximos dos chamados Padres da Igreja, tomando o exemplo de Sto. Agostinho, não eram europeus, eram africanos... podíamos continuar.

Pelo lado da actual implantação do cristianismo, em que continente terá mais praticantes? Na Europa ... nunca, talvez na América do Sul - basta ter em conta o actual corpo de cardeais oriundos desse continente para se perceber que o actual cristianismo, em especial o catolicismo, já não tem o seu centro no velho continente.

Sobre a herança cristã da Europa ... de que herança se fala? Que ela existe, existe. Mas dar-lhe características falhas ... Quem vem colher a herança, deve apanhar o bom e o mau. Sim, porque dessa herança consta o fenómeno das cruzadas, pregadas por santos, apoiadas por bulas papais ... Consta também a Inquisição, dirigida por frades, autorizada pelo papa ... Consta ainda toda a perseguição e recusa a muita da ciência moderna ... Como nos casamentos ... casados para o bem e para o mal!

Quem defende a inclusão da referência ao cristianismo nesse futuro texto constitucional, não consegue compreender que é ao próprio cristianismo que está a retirar a sua essência, a sua ecúmena. O cristianismo nasceu da comunhão e da partilha; a noção de cristandade que assim se pretende desenterrar construiu-se na negação desses ideais.

A Europa cristã afogou, procurou matar toda a diversidade que era apanágio deste continente.

É muito complicado integrar num texto altamente normativo apenas as faces boas de um fenómeno que foi omnipresente durante quase dois mil anos. A cultura humanista que nos textos dos defensores dessa inclusão surge tanta vez apontado, foi sistematicamente combatido pela maioria das instituições cristãs; quantos humanistas, quantos homens de ciência, quantos iluministas foram queimados vivos nas arenas onde se defendia a heterodoxia cristã?

É também esse o legado que queremos ver consignado na futura constituição europeia?

 

Paulo Mendes Pinto
Ciência das Religiões - Un. Lusófona
paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt


PORTUGAL - 2002/