REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

 
 
 
 





Helder de Sousa (Portugal). Jornalista, ficcionista. Obras: A Ruptura, 1978; Fragmentos do Silêncio, 1979 (2ª Edição 1991) e Edição Especial ilustrada por Carlos Rocha Pinto; Ao Sereno da Noite 1981 (2ª Edição 1992); OS CADERNOS DE GABRIEL: *O Vazadouro dos Deuses, 1983 (2ª Edição 1984); ** A Oratória dos Inocentes, 1990; Diário: Longos Dias Muitos Encantos 1967-1969; Onde Bate a Sombra 1970-1971; Nas Margens da Inquietação 1972-1994.
HELDER DE SOUSA
 
Julien Green e a vasta noite da eternidade 
 

Quando a seguir ao Natal do ano passado saí de Viena d’ Áustria a caminho de Klagenfurt, levava em mente o cumprimento de uma promessa assente no agradecimento ao autor de uns cinquenta títulos pelo muito que ele me havia dado, inesquecíveis momentos partilhados que encheram dias e horas, anos e memórias de transcendentes instantes de graça. A sua luta entre o Bem e o Mal, o interior que nos devora de todas as obsessões, nos reduz a seres cansados do quotidiano, onde as solicitações da vida nos fazem atirar para longe a imagem pungente de Jesus Cristo tal como no-lo apresentam os Evangelistas e todos os místicos ignotos num mundo dependente da glória vã, da riqueza e das honrarias.

   
 
  Julien Green no seu escritório da Rue Vaneau
 
 

Nevava. O lugar onde Green (1900-1998) está sepultado, a igreja de Sankt Egid, na pequena cidade de Klagenfurt, protegida pelas montanhas brancas e pelas sombras das árvores que ele tanto amou, no estado de Caríntia, imobiliza-se elegante e acolhedor lá no alto, num aglomerado de prédios que serpenteiam o burgo gracioso onde não faltam igrejas e mosteiros e atmosfera abastada que é o retrato do país.

 

 

De Viena até lá o autocarro levou quatro horas e meia, como um fantasma que atravessa as serras pela calada da noite, num dia cinzento chorando lágrimas de neve alva e decorando as faldas do caminho de arabescos frios e brancos. Por vezes, a velocidade diminuía, o veiculo baixava a voz monótona, decerto para não acordar as pequenas aldeias submersas nas avalanchas de neve ou não cair nos lagos silenciosos junto à estrada. Por todo o lado, maciços densos aspergiam o rumor da montanha, espécie de longo murmúrio abafado, como uma prece salmodiada numa língua desconhecida, mas num timbre que nos obrigava a levantar o olhar para a magnificência da paisagem brumosa. Dentro do carro estava-se bem. Perdido nos meus pensamentos, quase não dei pelas dolorosas horas sentado, circunscrito a um espaço, banhado da satisfação de cumprir a promessa que havia feito a mim mesmo há algum tempo.

 

A principal razão que levou o autor de Moira, de nacionalidade americana e toda a vida parisiense, a escolher como última morada a Áustria, prende-se com o facto de uma pequena paróquia nos arredores de Paris, dirigida por um pároco retrógrado, ter-se recusado a receber Éric Jourdan (1930-2015), o seu filho adoptivo. O sacerdote foi claro: “Recebo-o a si, mas não Éric”; E porquê? Acontece que Éric Jourdan Green, pelos dezassete anos, escreveu um romance logo proibido pela Censura Francesa. Sim, sim lá também há disso! O livro saiu em 1956 e só vinte nove anos depois foi levantada a interdição. O seu título: Les Mauvais Anges. Dentro, em 164 páginas, é narrada a vida de um grupo de jovens pela idade do autor, todos homossexuais, e a história é de uma violência e poesia extremas, mais tarde continuado sob a mesma temática em outros romances que Jourdan amplia e apura. Li-o em segunda edição e achei-o sem grande interesse. Mas então como aparece Klagenfurt? Por acaso. Os dois andaram sempre a viajar. Green, profundamente católico, Éric nem por isso (embora para o fim da vida, falecido o pai adoptivo, julgo que retornou à Igreja). A diferença de idades era de trinta anos. Conheceram-se quando o escritor de Sud andava pelos 56/57 anos e ele dezassete. A relação durou até à morte de Julien Green e ao que parece de uma fidelidade impressionante de que é testemunho a página Last Days, escrito por Éric Green no derradeiro tomo do Diário Le Grand Large du soir.

 

Assim, tendo os dois um dia chegado a Klagenfurt, e sendo Green um devoto de arte religiosa, logo se prendeu de admiração por uma imagem da Virgem exposta na igreja de Santo Egídio. Em conversa com o prior, este oferece-lhe o lugar que eu visitei numa das capelas do lado direito de quem entra, os dois vão poder deste modo ficar para a eternidade juntos.

 

Para a sua capela, o escritor encomendou a um artista local, Jos Pirkner, a obra Emanaus que não me pareceu bem conseguida por demasiado confusa atendendo ao reduzido espaço visual. Em frente à campa, gravado numa pedra de mármore, este inspirado texto que reproduzo em tradução. Coroando a laje: Eco sumo resurrectio (João 11-25).

   
 

Laje tumular dos dois escritores na igreja de Sankt Egid

 
 

Julien Green e a vasta noite da eternidade

 

 

Se eu estivesse só no mundo,

Deus teria feito descer O seu Filho Unigénito

Para que Ele fosse crucificado e assim me salvasse.

 

Eis um estranho orgulho - direis.

 

Não creio que tal ideia

Tivesse atravessado mais do que uma cabeça cristã.

 

Quem, portanto, O julgou,

Condenou, golpeou e O crucificou?

 

Não duvidem um segundo - fui eu.

 

Fui eu que tudo fiz.

 

Cada um de nós pode dizer a mesma coisa,

Todos tal como somos e em todos os cantos do mundo.

 

Se é preciso um judeu

Para lhe cuspir no rosto

Eis-me aqui.

 

Um funcionário romano para O interrogar,

Um soldado para O torturar com desprezo,

Um homem cruel para O fixar com pregos na cruz

A fim de que Ele aí fique até ao fim dos tempos,

Esse serei ainda eu, sei fazer tudo se necessário for.

 

Um discípulo para O amar,

Eis o mais doloroso de toda esta história.

O mais misterioso também.

Porque, enfim, Tu sabes bem

Que esse serei eu.

 

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