Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº62. janeiro-fevereiro 2017 . ÍNDICE




Maria Estela Guedes
(Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista
Incomunidade, e é membro do Instituto São Tomás de Aquino e da Associação 25 de Abril. Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas cadeRnos suRRealistas sempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.

Foto: José Emílio-Nelson
 

MARIA ESTELA GUEDES

Tenho vergonha de ser um ser humano

O documentário intitulado Vida activa - O espírito de Hannah Arendt, realizado por Ada Ushpiz, aparece nos cartazes de cinema num momento que convida a vermo-nos ao espelho nele e a declararmos o que a filósofa declarou, face à banalidade do Mal que levou seres humanos normais a insultarem, roubarem, torturarem e assassinarem mais de dez milhões de outros seres humanos: "Tenho vergonha de ser um ser humano".

O filme é um concentrado de informações, quase sempre simultâneas, em vários meios: texto escrito, banda sonora com leituras e entrevistas, imagens, tradução em legenda, o que torna inexequível uma apreensão satisfatória de quanto  encerra em pensamento, sobretudo tratando-se de apreender conceitos filosóficos difíceis, pois contradizem o senso comum. É o caso da expressão-chave "banalidade do Mal", que não sugere que o mal seja de aceitar, sim que, ao tornarmos banal a falta de valores, ao habituarmo-nos a essa circunstância do que é normal, o tornamos normativo. Do normativo ao legal vai um passo, da legitimidade do genocídio à dificuldade de o condenar vai outro passo. E é neste passo, o da legitimação, que Hannah Arendt fala de banalidade do Mal.

A obra de Arendt, discípula e amiga de Karl Jaspers, amante de Heidegger ("todos os homens a trairam", diz-se, no filme) funda as ideias na análise do que aconteceu no período nazi. Ia eu vendo o documentário e ia-as assimilando como se fossem espelho do que hoje acontece na Europa e no mundo todo. Por exemplo, o que é que legitimou o extermínio de milhões de ciganos, judeus, deficientes e tantos outros seres humanos?

A migração é perigosa. As massas humanas em deslocação forçada não têm defesa, nem sequer a das instituições humanitárias. Essas massas de gente podem a dado passo ser exterminadas, porque a banalidade do Mal isso legitima. Quais as condições para o extermínio? - O estarem fora do Estado cujas leis protegem os cidadãos dessa nacionalidade. Cidadãos num Estado a que não pertencem não têm direitos - a não ser, se não forem rasgados, os Direitos do Homem, mas parece que esses não existiam na Alemanha nazi, apesar de se inscreverem nas constituições democráticas modernas, a exemplo da dos Estados Unidos da América. Populações deslocadas do Estado de onde são nativas não têm direitos, tendem a ser vistas pelo Estado recetor como lixo, podendo assim ser descartadas por boas pessoas que se defenderão, caso sejam levadas a julgamento, com "Limitei-me a cumprir ordens superiores".

Hannah Arendt foi atacada e caluniada por pensadores e não pensadores de todos os quadrantes, incluídos judeus, porque o seu pensamento era livre e independente, por isso não tinha a proteção de nenhum partido, nenhum paradigma dominante. O pensamento livre é cruel porque isento, e isento também de emoções. Só uma pessoa ferida desde a cabeça aos pés consegue pensar sem lágrimas, daí a repulsa judaica por uma ideia que julgo a psicologia defende, que é a de os judeus - alguns, parte-se do princípio - terem pactuado com os nazis. Julgo ser ideia assente que em geral se estabelece um pacto de cooperação entre vítima e carrasco, para não dizer que tenho disso experiência vivida: o pacto estabelece-se para que não haja sangue, para que a situação não piore, para que alguns sejam salvos. A vítima ajuda o carrasco para que tudo corra bem ao carrasco, para que o carrasco não trema e desvie a lâmina do pescoço da vítima, porque a tremura eleva o drama aos cumes da tragédia. Foi assim que Mishima não morreu nem à primeira nem à segunda tentativa de ser decapitado, porque o decapitador estava tão trémulo que preferiu suicidar-se a matar o amigo. Esta ideia de que os judeus tinham pactuado com os alemães, defendida pela judia Hannah Arendt, não foi aceite, tal como não foi compreendida a da banalidade do Mal. No entanto parece simples: se matarmos uma pessoa, isso custa muito; a segunda já não custa tanto e a terceira e a quarta já entram na rotina. Se matarmos mil, a coisa passa a ser uma banalidade, pode mesmo ser submetida ao parlamento uma lei que permita exterminar com rapidez todos os mexicanos, portugueses, franceses, etc., de dado país, onde não são nativos.

Ser ou não ser nativo, vejamos. Ignoro a História do conceito de nativismo, conheço-o do século XVIII, quando nas colónias da América, Brasil incluído, começaram a surgir os movimentos independentistas. Nativo era o já nascido nas colónias, por oposição à geração de pais e avós, potencialmente descartáveis pelos nativos, se se opusessem à independência. E agora é numa nação com mais de duzentos anos de independência que tenta emergir de novo um nativismo que na raiz exprime o desejo de descartar imigrantes não nascidos no lugar de imigração? Vamos, em Portugal, supondo, descartar todos os chineses e indianos vindos da Ásia e só poupar os filhos aqui nascidos?  É contra este princípio nativista que muitos reclamam hoje, dia 21 de janeiro de 2017, nos EUA, entre eles a diversificada população de atores, oriundos um pouco de todo o mundo, e até de Portugal.

Temos em palco um Trumpithecus phalocentricus que trouxe à ribalta procissões da Ku Klux Klan a aplaudir-lhe o racismo, o machismo, a xenofobia, a homofobia, a discriminação da mulher, etc.. Sabemos que a História não se repete. Não, claro que não haverá mais câmaras de gás. O futuro só permite soluções tecnologicamente mais avançadas: a próxima escória que aparecer, decerto será reciclada em microondas para fabrico de papel de parede.

O que a minha memória reteve, de uma visita a Dachau, antigo campo de concentração, perto de Berlim, não foram as latrinas nem o vazio interminável de armazéns onde os judeus foram exterminados com gás, sim os candeeiros de mesa com abat-jours feitos de pele humana.

A questão não é a de esperarmos que os alemães tivessem vergonha de ser alemães nem que os americanos se venham a envergonhar de ser americanos por terem eleito um energúmeno (a que Domingos da Mota dedica o poema "Onfaloscopia"), esquecidos de que foram dos primeiros e mais importantes promotores da democracia, sim a de nos envergonharmos todos se permitirmos mais banalidades do Mal, tal como a alemã Hannah Arendt se envergonhou, declarando: "Tenho vergonha de ser um ser humano".

Onfaloscopia


O seu umbigo é o centro

do mundo    do universo
visto por fora ou por dentro
do direito       ou do avesso:

e sendo o centro do mundo
sempre que gira    rodando
soberbamente            rotundo
onde quer que esteja e quando

é sem dúvida        o maior
dos umbigos e  tão grande
que o universo    em redor
do seu umbigo se expande

Domingos da Mota

In: https://domingosmota.blogspot.pt/2016/11/onfaloscopia.html
 

https://www.youtube.com/watch?v=wyHXE1rfiTU
 
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Dir.
Maria Estela Guedes
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