Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . index




José Roberto Baptista (Brasil). Editor da ARTE-LIVROS Editora. Foi professor universitário e Diretor-Acadêmico de tradicionais instituições de ensino superior em São Paulo. É estudioso da fenomenologia parapsicológica e autor, entre outros, do livro Introdução ao Estudo da Parapsicologia (Arké, 2007), além de já ter escrito vários artigos sobre o tema. Dirigiu o IEP-SP - Instituto de Estudos Psicobiofísicos de São Paulo voltado, exclusivamente, ao estudo e ao ensino da Parapsicologia.
JOSÉ ROBERTO BAPTISTA

O sono de Adão
 

I

A anunciação segundo Lucas

 

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!" Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: "Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás a luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim". Maria, porém, disse ao Anjo: "Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?" O anjo lhe respondeu: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada impossível. Disse, então, Maria: "Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!" E o anjo a deixou. (BJ Lc 1.26-38)

II

A anunciação segundo Mateus

 

Maria, sua mãe, comprometida em casamento com José, antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. José, seu esposo, sendo justo e não querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudiá-la em segredo. Enquanto assim decidia, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se a ele em sonho, dizendo: "José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus pecados". Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta:

Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho

e o chamarão com o nome de Emanuel,

o que traduzido significa: "Deus está conosco". José, ao despertar do sono, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher. Mas não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho. E ele o chamou com o nome de Jesus. (BJ Mt 1.18-25)

III

Assim foi narrada pelos evangelistas Lucas e Mateus a enigmática concepção Daquele que se tornaria um dos maiores personagens da história da humanidade e ícone da mais destacada matriz religiosa dos últimos dois mil anos: Jesus de Nazaré.

Mas não só Sua concepção.

Suas pregações alicerçadas na controvertida mensagem apocalíptica, que anunciava o fim dos tempos e a chegada do reino de Deus, Seus milagres, atestados vivos da fiel presença do Deus invisível agindo entre as pessoas e também Sua morte, e ressurreição ao terceiro dia, tudo somado à Sua gloriosa elevação,  em nada, são menos instigantes.

Os evangelhos são as principais fontes testemunhais que nos permitem acessar tais informações. "Ninguém desconhece que entre todas as Escrituras, mesmo do Novo Testamento, os Evangelhos gozam de merecida primazia, uma vez que constituem o principal testemunho sobre a vida e a doutrina do Verbo Encarnado, nosso Salvador."[i] Assim nos ensina um dos principais documentos do Concílio Vaticano II, a Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina.

Esta afirmação assume uma certa universalidade, embora nem sempre pacífica, à medida que dela comungam tanto estudiosos comprometidos com a fé, como aqueles que não têm vínculo algum com ela. Afinal, se é verdade que os evangelhos são a principal fonte para conhecermos a vida e a doutrina de  Jesus, o Cristo, não é menos verdade que os mesmos evangelhos carecem de ensinamentos sobre o Jesus histórico, o Nazareno.

A razão para tal parece atrelar-se ao fato de os evangelhos, relatos de autoria incerta, talvez excetuando-se o evangelho de Lucas, jamais terem sido pensados enquanto um relato histórico acerca da vida de Jesus, o Nazareno. Nada aponta nessa direção. Contrariamente, os testemunhos, escritos muito tempo depois dos fatos que atestam, surgiram pelas mãos de homens de fé, pertencentes a comunidades de fé. São, portanto, nesse sentido, confissões de fé.  

Mas, mesmo como testemunhos de fé, como saber se os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João estão de acordo com os fatos? Como saber, de acordo com Mateus e Lucas a verdade sobre a concepção de Jesus uma vez que a razão não nos permite acessar tais testemunhos? - Simplesmente não podemos.

Mas isto parece não incomodar os cristãos. Para esses, a verdade é o Jesus ressuscitado - o cordeiro de Deus que tirou os pecados do mundo - aquele que venceu a morte e foi elevado. Talvez o maior de todos os mistérios,  sem o qual, segundo Paulo, a fé seria vã. (BS 1Cor 15:17)

A ressurreição é, portanto, o centro da teologia paulina e, indiscutivelmente, do cristianismo como um todo.

Em conformidade, a igreja de Roma, desde os primórdios, sempre "com firmeza e máxima constância, sustentou e sustenta que os quatro mencionados Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente aquilo que Jesus, Filho de Deus, ao viver entre os homens, realmente fez e ensinou para a eterna salvação deles, até o dia em que foi elevado."[ii] (grifo nosso)

Cria-se, desta maneira, uma nova "verdade", pertencente a fé, revelada por Deus, testemunhada pelos Evangelistas e proposta pela Igreja para aceitação dos fiéis como expressão legítima e necessária de sua fé. Estamos, assim, diante de um dogma.

O dogma, contudo, implica numa relação binária, uma dupla relação, quer seja, a revelação divina e o ensinamento autorizado da Igreja. [iii]A primeira, fundada na soma das verdades reveladas nas Escrituras e, a segunda, envolvendo o grau individual de concordância com essas verdades.

Contudo, nenhuma parte dessa relação se dá de forma autoevidente.

Mas, a igreja de Roma, vai além.  Sempre defendeu, e continua a defender, duas ordens de conhecimento, distintas entre si: de um lado a razão natural e, do outro, o conhecimento pela fé. Na primeira a verdade é acessada pela razão. Na segunda, através dos mistérios escondidos em Deus, mas que temos que acreditar por se tratar de revelações divinas.

Mas isso não passa de um sofisma. Crer é infinitamente diferente de conhecer. Por mais que queiramos, razão e crença não dialogam pacificamente. Não podemos acessar por meios racionais aquilo que ultrapassa os próprios limites da razão, inclui-se, aqui,  o nascimento de Jesus através de uma jovem virgem, Sua ressurreição, Seus milagres, Sua elevação.  Resta, portanto, unicamente a fé.

Mas, a fé não é congênita. A fé é aprendida ao longo do nosso desenvolvimento dentro da comunidade em que estivermos inseridos. A fé que cada indivíduo defende é a mesma fé que aprendeu e aceitou como única e certa, vivenciada em grupo, aceita individualmente e alegada, no sentido religioso, como racionalmente compreendida. Não precisamos muito para compreender isso. Basta pensarmos nas  "certezas" conflituosas entre judeus, católicos, protestantes das mais variáveis denominações e muçulmanos, todos obedientes ao mesmo Deus. Todos portadores das mais sublimes verdades reveladas. Eternas e imutáveis verdades.

Mas, voltando à questão sobre os evangelhos, mesmo deixando de lado o Jesus histórico, aparentemente de menor importância para os cristãos, como já o dissemos, continuamos com o problema, já levantado em linhas anteriores: como saber se os Evangelhos são, de fato, as verdadeiras palavras de Jesus se não temos acesso aos originais, assim como a maioria dos cristãos em toda a história do cristianismo não o tiveram.

Considere-se, ainda, que "Nós não apenas não temos os originais, como não temos as primeiras cópias deles. Não temos nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou as cópias das cópias das cópias dos originais. O que temos são cópias feitas mais tarde, muito mais tarde. Na maioria das vezes trata-se de cópias feitas séculos depois e todas elas diferem umas das outras em milhares de passagens."[iv]

Portanto, como saber realmente quais foram as palavras inspiradas e presentes em Marcos, Mateus, Lucas e João?  Mais que isso, como aceitar tais palavras como verdades?

Tentemos elucidar, ainda com o auxílio dos testemunhos de Mateus e Lucas, sobre a Anunciação:

Recuperemos o já dito. Cristãos creem no nascimento virginal de Jesus em virtude de ter sido narrado por homens sob a inspiração do Espírito Santo. Portanto, uma verdade divina, revelada,  imutável e inquestionável.

Mas, por mais que nos esforcemos, nosso intelecto não alcança esse fato; contrariamente, o repele, uma vez que todos os conhecimentos produzidos pela razão, até o presente momento, não o sustentam. Todavia, isso não se traduz imediatamente como rejeição ao nosso ser e, de alguma maneira, nos esforçamos para dar algum sentido àquilo que nosso intelecto rejeita em virtude da inexistência de provas. Está em jogo agora a verdade que nos foi revelada. A verdade de Deus. A verdade que, diferentemente da verdade dos homens, não podemos acessar.

Então, nos esforçamos, sobremaneira, para salvar o testemunho apostólico e, num esforço sobre-humano, atribuímos a ele uma nova condição, não humana, mas divina. Atribuímos ao fato uma dimensão sobrenatural, de mistério, justificando, também misteriosamente, que ao homem, ser limitado por natureza, nem tudo é possível de compreensão, mas a Deus, sem limitação alguma, tudo é possível.

Questão resolvida. Simples assim.

Enfim,  Adão dormiu, Eva nasceu. E pôs-se a fábula em ata.*


[i] Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina. in Bíblia Sagrada. Trad. da CNBB, com introduções e notas. 7ª ed. Cap.V:18.

[ii] Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina. in Bíblia Sagrada. Trad. da CNBB, com introduções e notas. 7ª ed. Cap. V:19.

[iii] The Catholic Encyclopedia: an international work of reference on the constitution, doctrine, discipline, and history of the catholic church. Vol. I. New York. The Encyclopedia Press, INC. 1913.

[iv] Ehrman, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: quem mudou a Bíblia e por quê. Trad. Marcos Marcionilo. Rio de Janeiro: Agir, 2015. 2ª ed. 2015. p. 20.

 

* Guimarães Rosa.


 
 
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