Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice



MANUEL ALMEIDA E SOUSA. (PORTUGAL)
 
Enquanto "actor" na acção plástica expôs em várias galerias do país e criou a sua própria galeria no BAIRRO ALTO (anos 70) - Galeria Elefante Circular na travessa da Cara (Lisboa). Nos últimos anos tem-se limitado a actividades na área da arte postal, performance e artes gráficas - mais concretamente na criação de publicações como "Bicicleta" e grafismos de alguns números da revista "Utopia".
Está representado em várias publicações de poesia visual (Espanha, Portugal, Polónia, Republica Checa, Itália, França e Brasil). Ainda nesta área tem colaborado na criação de espaços teatrais e, mais recentemente, desenvolve projectos com marionetas por si criadas.
CONTACTO:
utopikuscirkus@aim.com
MANUEL ALMEIDA E SOUSA

Marinheiro

cena I

 

espaço vazio. apenas uma cadeira de rodas suspensa numa das paredes. do tecto escorrem velhos jornais.

ouve-se tambores e, de repente, uma rajada de metralhadora. a luz de cena torna-se intermitente permitindo, no entanto, a visualização de bosch que entra no espaço a rastejar. nova rajada e a cadeira de rodas cai. ali. no palco.

bosch, com alguma dificuldade, consegue alcançá-la. senta-se.

mercedes benz entrará em cena ao ritmo dos tambores. mercedes benz segura os volumosos seios enquanto caminha.

 

mercedes (frente a bosch) - grito o teu nome e o teu corpo vem

 

bosch (em tom suave) - em delírio

 

mercedes (num grito) - grito o teu nome

 

bosch (em tom mais forte) - quente

 

mercedes (num tom extremamente suave) - o teu nome é um delírio sobre rodas

 

bosch (em esforço - ajeitando-se na cadeira de rodas) - o teu corpo vem. cavalga paisagens suaves como pele

 

mercedes (como louca) - só tu

sacias a minha fome de poder

só tu

com a ternura dos teus húmidos lábios.

esta noite

muito para além desta noite

o corpo não passa

o tempo não passa

tu

não passas

o nosso comboio chama-se ódio

raiva

vingança

 

bosch (num grito desesperado) - tudo isso

tudo

tudo

tudo

aos gritos

como relógios eloquentes

 

uma outra rajada de metralhadora. o cenário treme. os jornais, que escorrem do tecto caem sobre as personagens em cena. bosch tomba da cadeira de rodas. mercedes benz, aflita, grita. ouve-se a voz de zeus por entre trovões.

 

voz de zeus (extremamente forte) - vou raptar ganimedes!?

não.

vou, sim, raptar europa!

 

em coro, bosch e mercedes gritam: - não!...

 

as personagens recompõem-se. entra ibéricus numa lentidão desesperante. ibéricus transporta consigo um enorme crucifixo. ergue o símbolo ao ar e lambe os pés de cristo.

dirá: - paco, ¿qué es lo que pasa?

 

bosch e mercedes dirão em coro: - o bom senso

reflete-se nesta imagem

um paraíso imenso onde habita a austeridade

e

a beleza 

 

cena II

 

semi-obscuridade. duas grandes marionetas ao fundo. alguns relâmpagos iluminam os quatro cantos do espaço cénico.

 

marioneta 1 (voz masculina) - no princípio era eu

 

marioneta 2 (voz masculina) - e eu

 

marioneta 1 - reconheci um outro eu

 

marioneta 2 - no princípio

 

marioneta 1 - a minha memória

rompia por entre molduras a visão triturada por um corpo quente

 

marioneta 2 - no princípio

 

marioneta 1 - as memórias portáteis não eram parasitas da existência

acompanhavam, com o seu significado secreto, a melodia de um corpo que vibra a meu lado

 

marioneta 2 - no princípio

 

tambores. várias figuras cruzam o palco. caem. levantam-se. voltam a cair. segue-se um trovão. escuro e um longo silêncio. luz.

 

marioneta 2 - no princípio era a luz. e da luz

 

marioneta 1 - irrompeu um marinheiro.

 

ouve-se a voz da segunda veladora de o marinheiro de fernando pessoa. só depois entra em cena o marinheiro que, entre os lábios, transporta um cravo

 

voz da 2ª veladora - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

 

marinheiro (como se meditasse) - o meu olhar cavalga ondas suaves como pele

e tu

sacias a minha fome nos copos

nas madrugadas de esperança

 

entra bosch na cadeira de rodas

 

bosch (a medo) - tu?

 

marinheiro (sem ligar) - sim.

 

bosch (decidido) - porquê?

 

marinheiro (num largo sorriso e num quase grito) - porque fui levado à atroz conclusão de que o seu olhar jamais navegará o meu sorriso

que...

sentirei o seu andar nas minhas mãos

 

bosch (nervoso) - e

a maçã?

 

o marinheiro leva a mão ao bolso e dele retira uma maçã

 

marinheiro (forte) - aqui está

 

bosch (indiferente) - interessante

 

marinheiro (mais forte) - aqui está ela ante os nossos olhos como se fora um continente

livre

inundado pelo vinho

e

fabulosos bordeis

 

bosch (a medo) - que vais fazer?

 

marinheiro (num tom decidido e forte) - toma-a

 

bosch (no mesmo tom) - que vais fazer?

 

marinheiro (com autoridade) - coloca-a na cabeça

 

bosch (mais nervoso que nunca) - eu

 

marinheiro (num grito) - vá!

 

ouve-se de novo a voz da segunda veladora

 

voz - Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta…”

 

bosch coloca a maçã sobre a cabeça. o marinheiro dispara um tiro. bosch cai - morto. o marinheiro guarda o revólver. ri. dirige-se ao público

 

marinheiro (explicativo) - não se vislumbra o orifício de saída

a bala deve ter ficado  alojada no seu cérebro

caiu

e a maçã que estava sobre a cabeça rolou pela sala

... na mesa havia quatro garrafas vazias de genebra

e

na sua fronte um orifício de sete milímetros de diametro

um buraco circular

e

escuro

por onde entrou o projéctil repleto de literaturas

 

o marinheiro sai. entra mercedes benz aos gritos

 

mercedes - porquê?...

 

mercedes benz empunha uma navalha e espeta-a no peito. morre. ouvem-se aplausos e assobios. sobrepondo-se ao som de fundo - uma valsa - ouve-se um trovão. só depois, muito depois, o marinheiro cruzará o espaço cénico e lançará o cravo - que transportou na boca - sobre os corpos que jazem no chão.

 

fim

 

 

cascais - julho de 2015

 
 
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Maria Estela Guedes
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