Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências .
ns . nº 53 . agosto-setembro 2015 . índice


 
Foto: José Emílio-Nelson
MARIA ESTELA GUEDES

João Sarmento Pimentel e José Gomes Ferreira contra os trauliteiros
 

Com a colaboração de Ilda Crugeira e Flávio Vicente

Projeto "Sarmento Pimentel"

 

 
Maria Estela Guedes. Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.  
 
 

  Na sequência do assassínio de Sidónio Pais, a quem Fernando Pessoa chamou Presidente-Rei, por ter assumido funções ditatoriais, com desprezo pelo Parlamento e pela Constituição, e por ter cometido a imprudência de se rodear de políticos monárquicos, as forças leais a D. Manuel II, então exilado e desconhecedor do que se passava, restauraram a monarquia em vários pontos do país, sob a liderança de Paiva Couceiro.

Durou a restauração monárquica vinte e cinco dias, de 19 de janeiro a 13 de fevereiro de 1919, tendo por isso ficado conhecida por Monarquia do Quarteirão. Monarquia do Norte é nome que lhe advém de a sede do poder e principais acontecimentos se centrarem no Norte, caso de Chaves, com os seus defensores republicanos, e especialmente no Porto, onde foi derrubada; Traulitânia e Reino da Traulitânia são designações que se referem às sevícias infligidas aos republicanos pelos partidários de Paiva Couceiro.

Esta contra-revolução foi a última e mais importante tentativa de os monárquicos restaurarem o trono, desde a implantação da República, a 5 de outubro de 1910.

Ora o derrube da Monarquia do Norte exigiu reação dos republicanos, deliberações, estratégias, movimentações de tropas em campo, ainda que tão frágeis como o Batalhão Académico, que trazemos à baila por um dos seus soldados, José Gomes Ferreira, excelente poeta, se ter voluntariado nele para uma militarmente discutida «jornada de Monsanto», em Lisboa. Não obstante, tal como anotámos em artigo anterior, Magalhães Lima, nas suas memórias, Episódios da minha vida, refere-se ao capitão Sarmento da Guarda Real (Guarda Nacional Republicana, criada antes da República como Guarda Real, e mais tarde chamada Polícia Municipal) como se, sozinho, Sarmento Pimentel tivesse derrubado a contra-revolução. José Gomes Ferreira corrobora o que depois do derrube deve ter permanecido como romântica aura de heroísmo no espírito dos republicanos que de novo se sentiam livres:

 

Mas a breve guerra civil terminou com a entrada das tropas republicanas no Porto, após a revolução de 13 de Fevereiro de Sarmento Pimentel [...]

José Gomes Ferreira, A memória das palavras

"A revolução de Sarmento Pimentel", escreve José Gomes Ferreira, sem pestanejar, exatamente como Magalhães Lima. Um só homem contra os exércitos de Paiva Couceiro! Aliás, o próprio Sarmento Pimentel, nas suas Memórias do capitão, conta como, dois dias depois do sucedido, ia ele subindo pacatamente a rua de Santo António, vê os ardinas a anunciarem a altos berros uma estampa do Capitão Sarmento Pimentel, vendida "a tostão para acabar!". Litografia com desenho de Cristiano de Carvalho, seu amigo, que se vendera nas ruas como manteiga. O herói estampava-se na memória do povo e na nossa ganha cada vez mais consistência.

 

  Muitos anos depois, os jornais relembravam a revolução de 1919, não poupando elogios e carinho ao capitão. Na página 3 de O Primeiro de Janeiro de 13 de fevereiro de 1969, por exemplo, lemos, num artigo intitulado «Um dia histórico»:

"Cerca do meio-dia, o capitão Sarmento Pimentel, comandante do esquadrão de cavalaria da guarda, mandou tocar a formar companhias, o que logo foi feito.

Formadas as forças, aquele destemido oficial dirigiu-se-lhes, dizendo: VOU INICIAR UM MOVIMENTO REPUBLICANO NO PORTO. QUEM QUISER QUE ME SIGA! VIVA A REPÚBLICA!"

Nesses dias ainda Sarmento Pimentel não recuperara da pneumónica que o manteve meses no Hospital Militar, de acordo com documentação do Arquivo do Exército, coligida no Convento de Chelas. Daí que tremelicasse como o roseau pensant de Pascal em cima do cavalo, ao bradar à multidão, agora nas palavras que familiares retiveram, mais sucintas do que as letras impressas: "Quem for português, que me siga!"

Começamos a entender a tonalidade romântica de Sarmento Pimentel, o seu estatuto de herói solitário, apesar de José Gomes Ferreira ter vindo a traçar um caminho usualmente considerado neo-realista, não muito diverso daquele que trilha Sarmento Pimentel nas Memórias do capitão, por muito ultra-romântico que seja o capítulo dedicado a uma sua juvenil namorada que morreu tuberculosa. O registo usual de Sarmento Pimentel é realista e clássicos os seus fundamentos. Temos assim um herói romântico na memória histórica portuguesa, algo distinto da pessoa que escreveu textos realistas, próximos da pena e da ideologia de camaradas como José Gomes Ferreira. 

Pena que a PIDE e a Censura tenham cortado pela raiz a hipótese de Sarmento Pimentel vir a constituir obra escrita de vulto. A sua obra mais relevante foi política e militar. Além das Memórias do capitão, só deixou artigos dispersos, a entrevista com Norberto Lopes, assinada por este mas cuja autoria também se deve atribuir ao entrevistado, Sarmento Pimentel - Uma geração traída, e uma massa grande de correspondência com os seus contemporâneos ilustres em vários quadrantes, pois ao longo da vida, embora exilado, foi reforçando o seu prestígio com a criação de instituições de valor (co-fundou a Casa de Portugal, em São Paulo e o Partido Socialista), o que lhe conferiu grande autoridade, exercida à distância através da palavra, sobretudo junto dos emigrados políticos no Brasil.

Em 1919, José Gomes Ferreira era um jovem de 20 anos, camarada de Letras de Sarmento Pimentel, se bem que a pena de ambos ainda estivesse no ovo e nada nos permita pensar que se conhecessem pessoalmente.  O poeta dedica um capítulo de A memória das palavras à Monarquia do Norte e sua participação nela. Deixa-nos algumas notas históricas bem valiosas, a exemplo desta: “aqueles senhores de colarinhos engomados e chapéus de coco que não vacilaram em transportar canhões a pulso até à Rotunda nos dias sagrados de Outubro de 1910”. 

Ora aqui está uma informação que responde a perplexidades minhas face às manobras militares de Machado Santos nos três dias "sagrados" da implantação da República. A dado passo, andaria o cadete João Sarmento Pimentel pela Avenida da Liberdade a colher informações para o líder da revolução, Machado Santos, quando este, na Rotunda, vê aproximar-se um destacamento inimigo, segundo o seu próprio depoimento n' A Revolução Portuguesa: relatório de Machado Santos: 1907-1910. Como à evidência não dispunha de armas de defesa, mandou pedir «uma peça». De que quartel mais próximo veio o canhão? - não sei dizer. - Quem o transportou e como pelas ruas da cidade? - também isso eu ignorava. Sabia, porque a situação obriga a imaginar a cena, que o destacamento de tropas monárquicas ficara ali à espera que chegasse a peça, sem pelos vistos nenhum movimento ofensivo. Chegada a peça (quanto tempo depois era outra incógnita), foi disparado um tiro (para o ar, atrevemo-nos a declarar). Disparado o tiro, o batalhão inimigo, que ali o aguardara sem atacar nem arredar pé, virou costas e abandonou o terreno.

Fica agora claro que os senhores de colarinho engomado e chapéu de coco é que foram ao quartel mais próximo - o do Carmo ou de Artilharia 1, em Campo de Ourique -, buscar o canhão, o empurraram a pulso, e nesta manobra não podem ter consumido menos de duas horas, tempo durante o qual os monárquicos aguardaram sem se mexer. Concluindo: Machado Santos não o sabia, mas as tropas estavam todas do seu lado, sem destrinça entre republicanas e monárquicas. Se o 5 de Outubro foi uma guerra sobretudo civil e razoavelmente pacífica, já as seguintes fizeram sangue, prisão e muito exílio.

Mais adianta José Gomes Ferreira, que o Café Gelo, esse Café Gelo onde começa a surgir uma geração surrealista específica, de onde tinham saído, décadas antes, os regicidas,  o Café Gelo também neste período assistiu a atos de subversão, como a queima de um retrato de Sidónio Pais. 

Sidónio Pais, não muito tempo antes da sua morte, chamara a Belém Sarmento Pimentel, devido à fama que este já granjeara, não só nos sagrados dias da implantação da República e no front, mas também no sul de Angola, onde os alemães tinham penetrado e cometido um morticínio, perto das cataratas de Ruacaná (Cunene), fronteira com a Damaralândia, na famosa Naulila. Comandou ali um destacamento de Cavalaria 9 e outro de boers, tendo sido condecorado pela sua valentia e mérito militar no reconhecimento de vários pontos. Se a Monarquia do Norte foi derrubada por Sarmento Pimentel, a Sidónio Pais se deve o comando das forças que tal permitiram. Palavras de Sidónio Pais a Sarmento Pimentel, reportadas  nas Memórias do capitão, e informo que este é um livro publicado no Brasil:

«Tenho as minhas dúvidas de que os monárquicos não me roam a corda. Por isso mesmo peço a Você que aceite o comando do Esquadrão de Cavalaria da Guarda Republicana do Porto que eu considero, e os burgueses da liberal cidade também, garantia da República. E Você sabe, ou acredita que eu tenho a causa da Pátria e da República como a causa do nosso povo que publicamente jurei defender.»

E foi assim que, Guarda Real/ Guarda Nacional Republicana disposta para a batalha, Sarmento Pimentel irrompeu na messe de oficiais, no Porto, onde pacatamente se banqueteavam os líderes da Monarquia do Norte, disparando, não a Parabellum que empunhava na mão trémula da gripe espanhola, sim estas palavras igualmente fatais: “Os senhores estão todos presos!”

 

No Arquivo do Exército, entre outros documentos relativos às ações do então capitão de Cavalaria João Sarmento Pimentel (ver dois deles, em baixo), existe uma súmula biográfica que refere mais uma condecoração, atribuída agora pela sua iniciativa no derrube da Traulitânia.  E outra prova afetuosa de gratidão foi a oferta de uma Espada de Honra pela Cidade do Porto, hoje conservada, supomos, na Biblioteca Municipal de Mirandela, onde se encontra igualmente o seu espólio. 

Vejamos então o que fundamentou a atribuição de medalha a Sarmento Pimentel, para depois perguntarmos por que motivo a queria ele recusar:

«Tomou parte num movimento revolucionário, de 13FEV19, iniciado espontaneamente no Porto com forças da Guarda Republicana a que o Oficial pertencia, movimento esse com que o povo daquela cidade pretendeu derrubar o governo monárquico que em 19JAN19 proclamara a monarquia no norte do país.

Por esse motivo foi condecorado com a Medalha de Prata da classe de bons serviços (O.E. nº 22 – 2ª Série de 5 de OUT 19).

(É interessante recordar que logo que a referida condecoração lhe foi concedida, requereu o Oficial, ao Ministro da Guerra, autorização para recusar o dito galardão. Sobre esse requerimento, que foi indeferido, existe um despacho do General Comandante de Divisão [...])».

Uma observação se impõe: Sarmento Pimentel foi realmente o motor do movimento que repôs a República, daí que até o Estado Maior do Exército o reconheça e o condecore.

Último comentário. Ele requereu autorização para recusar a medalha, requerimento justamente indeferido, porque a modéstia o obrigava a recusar. Apesar de mal se aguentar nas pernas, doente como ainda estava, bastou entrar na messe e prender os oficiais trauliteiros que ali se encontravam, afinal Estado Maior das hostes de Paiva Couceiro, para acabar com aquela contra-revolução, que considerava uma fantochada, com um «quixotesco 'Regente' mais seu acaciano governo na dianteira», como satiriza nas Memórias do capitão. Para ele, que estivera em Naulila e na Flandres, aquela Monarquia do Norte era só uma partida de Carnaval.

 
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DOCUMENTOS
 
Colocação de Sarmento Pimentel na Guarda Nacional Republicana, ainda na presidência de Sidónio Pais, que pessoalmente convidou Sarmento Pimentel para o cargo, e numa época em que a saudação oficial ainda era a carbonária: "Saúde e Fraternidade". Processo individual de João Sarmento Pimentel, Arquivo Militar (Chelas).
 
Pedido - indeferido - de Sarmento Pimentel para recusar condecoração atribuída pelos seus feitos no derrube da Monarquia do Norte. Processo individual de João Sarmento Pimentel, Arquivo Militar (Chelas).