REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 50 | fevereiro-março | 2015

 


LUÍS COSTA

Les Lettres I

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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LES LETTRES 1

 

 

 

 i

 

                           Belo tu és belo

                           como um grande espaço cirúrgico 

                                                           Mário Cesariny

AS LETRAS mais obscuras do alfabeto

[como escreve Mário Cesariny]

tão obscuras que ardem e rasgam

a estrutura endurecida do tempo

estas letras que agora sobem

talvez por entre lagos sismográficos

ou florestas indigentes com animais

de testas altas e molhadas

súbitos e ocultos como musgosas raízes

[à volta: a noite. só a noite. a grande noite.

pois toda a palavra é mistério. pois

toda a palavra nasce da noite. na noite.]

estas letras que sobem pelo sangue, que sobem

e ardem, que sobem rancorosas e violentas. 

como uma navalha em riste, assim sobem.

estas letras quem as conseguirá parar

agora que já arrastam a mão do poeta?

ah... e tu que não tinhas nome

que não tinhas nome porque nada nasce

com um nome e por isso não existias

explodes na minha boca que mais tarde

será a tua prodigiosa boca.

e por isso agora existes, corpóreo, existes

no grande espaço cirúrgico da página,

com o vazio à volta, o vazio e todos os

seus terríficos elevadores.

 
 

ii

 

ÉRAMOS jovens, jovens como os filhos do sol.

em certas noites, quando o senhor cónego adormecia, descíamos à capela

e sentados em frente ao altar, bebíamos o vinho de deus e comíamos

hóstias com uma lanterna na mão.

depois saltávamos por uma janela, descíamos o alto muro e partíamos

pela noite suburbana adentro.

nas tabernas do submundo bebíamos. bebíamos até cairmos.

então ascendíamos ao bairro das putas como quem sobe a um altar e

matávamos a fome dos nossos corpos atormentados e escanzelados.

sentíamos nas vísceras o entusiasmo e a virilidade dos deuses.

era assim que estoirávamos a mesada. e o mês ainda mal havia começado.

tesos, de regresso ao internato, cantávamos canções dos Ramones,

dos Doors, dos Joy Divison, dos Sex Pistols...

e vomitávamos e cuspíamos e discutíamos e ríamos muito alto.

ríamos muito alto.

o mundo estava ali. o mundo era o agora. a vida era para ser vivida.

não existia passado nem futuro. era a eternidade da juventude.

a grande noite. a eternidade do já e agora. deus era o agora.

perto do internato, caíamos no mais profundo silêncio, e sorrateiramente

subíamos à camarata. como aves que regressam ao seus poleiros,

assim subíamos. e sonhávamos, sonhávamos com a próxima mesada.

 
 

iii

 

TEM cuidado com os espelhos.

a sabedoria dos espelhos.

há quem diga que é neles que deus mora.

olha-te neles. mas com cuidado.

sim. tem cuidado com a sabedoria dos espelhos.

pois pode ser que vejas deus.

a sua tremenda noite. o eterno vazio. deus!

os tremores mais profundos nos desfiladeiros.

as armadilhas. os labirintos.

a astúcia do minotauro.

esse terrível ser que habita as caves

dos espelhos.

os espelhos são de facto perigosos.

terríveis. perigosos. mas belos.

por vezes entranham-se nos colos das mães.

e um pássaro de um só olho.

de um só olho muito belo aparece no céu.

e os homens não sabem dele.

só as mulheres o conseguem ver.

pois assim que aparece logo desaparece.

há quem diga que se esconde nos guarda - fatos

dentro dos espelhos. a certas horas da noite.

há quem diga que quem conseguir ver

e agarrar esse magnífico pássaro

atingirá a gnose, ou seja, a linguagem do ouro.

mas imediatamente ficará cego.

e como tirésias tornar-se - á irmão das aves

e como tirésias falará o dialecto das aves.

ninguém mais o conseguirá compreender.

estará sozinho. à volta os animais. sozinho. no vazio.

os outros homens chama - lo - ão traidor,

canalha, renegado e outros nomes terríveis...

outros nomes terríveis.

 

sim, ouve-me! tem cuidado com os espelhos

com a sua labiríntica ciência.

por isso deixa-os explodir dentro de ti. nos teus poemas. 

 
 

iv

 

POEMA QUE HYERONIMUS BOSCH ESCREVEU NO INFERNO E EU CONSEGUI SALVAR DOS HOMENS LÚCIDOS

 

                                           Entrei dentro do quinto dos infernos, mas tudo

                                                                                     que eu digo é o planeta.

                                              (citado de memória, não sei o nome do autor)

 

 

ENTREI nos jardins da loucura, entrei vestido de arlequim

com um corvo na cabeça e os louros finamente brilhantes

entrei , entrei e vi, vi os loucos, e comecei a olhar

através dos seus olhos, comecei a olhar

e aprendi a ver o inferno dos homens lúcidos

as suas várias facetas , as suas máscaras, a beleza destruidora

nas suas dualidades, os demónios que eles levantam do nada

com todas as monstruosidades e atrocidades

para explicaram a inocência da destruição, a fome que os anima

e faz subir o sangue assassino nas varas

as mãos aneladas de incenso, o poder, a nobreza, a luxúria

eu vi crianças sem olhos nadando no esterco dos homens lúcidos

e mulheres de rostos macerados, sem mesiricórdia, sem deus,

e os seus homens escanzelados como a noite,

escanzelados, com rostos sem luz, escanzelados

sem outro caminho que que não seja o choro sob a glória da destruição

sim, eu entrei nos jardins da loucura, entrei

e assim me tornei cruelmente sábio, pois descobri que só nos loucos

e nos animais existe deveras a pureza e a bondade. 

 
 

v

 

                                                 (cesarinydade)

                                                 in memoriam Cesariny

 

SENTADO à janela

como o mestre Caeiro

como uma sandes de presunto caseiro

e bebo um bom tintol

( mas não leio Cesário )

 

e lá adiante vejo

o fantasma de Cesariny

cesariano

passeando à beira do tejo

 

e também clandestinamente visto

vejo como mergulha a sua mão no tejo

à procura das tágides

e do elefante lusitano

esquecidos ali, segundo reza a lenda,

por Pascoaes.

 

ao reparar que o apanhei

com a boca na botija

faz-me sinais de fumo

para que não conte nada a ninguém:

 

faz-me o favor de não dizer

absolutamente nada!

 

e eu, muito cúmplice,

baixo os olhos, baixo.

e como se nada tivesse visto,

qual o mestre Caeiro,

bebo um segundo tintol.

 

depois ponho-me a cantar,

ponho-me a cantar como um rouxinol. 

 
 

STIGMATA 2

 

 

i

 

TODA a palavra é uma ferida.

na mudez do silêncio

toda a palavra é uma violação.

 

assim como momear deus

já será violar a não existência de deus.

 

*

 

também toda a palavra

faz lembrar a diérese

que o bisturi lavra na mudez da carne.

 

ii

 

VI UMA mãe sentada

nas praças do desespero

uma rosa murcha numa das mãos

o sol era terrífico

e terrificamente

entranhava - se - lhe nas feridas

 

vi como cuspia toda a sua ira

para dentro de um espelho.

 

iii

 

                                              ( dies irae )

 

IRADO       libertou as pombas, cuspiu

no rosto dos vendilhões dos templos

mijou nos altares onde a astúcia

de deus está alojada, depois, correu

correu pelas ruas, pelos becos, pelos campos

até que lhe cresceram asas, asas

tremendas e belas, do tamanho da crueldade.

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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