REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 
MARCELO PANGUANA

Tchanaze a Donzela de Sena

Marcelo Dias Panguana é um escritor e jornalista moçambicano. Técnico numa companhia petrolífera, Marcelo Panguana colabora na imprensa, em jornais como Domingo, Notícias, Tempo e na página literária Diálogo do jornal Notícias da Beira. Wikipédia

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Conheci o Paradona quando escreveu “A gestação do luar”, nesses memoráveis tempos em que se tentava criar a geografia literária moçambicana, e cada um de nós se sustentava nas ferramentas da sua utopia e da sua criatividade. O que significava o título da primeira obra do Paradona? Apenas isto: a gesta. O começo de tudo. O início do sonho. Paradona, ao enveredar por essas lucubrações emotivas do seu livro, também esboçava os primeiros traços da nova poesia moçambicana após a conquista da independência nacional. Estávamos no começo de uma outra literatura, depois de consumados os objectivos da poesia de combate que sustentou a nossa aventura libertária. Com o livro de poemas “A gestação do luar” se iniciava um outro percurso literário em Moçambique, uma outra forma de buscarmos a nossa identidade, porque não existe nenhuma pátria capaz de se suportar sem fazer o exercício da sua cultura.                    

 
 
  Carlos Paradona Rufino Roque
 
 

Aquilo que afirma uma escrita, qualquer que seja, é a singularidade com que ela se veste, a forma como explora os conteúdos da sua realidade. Só desse modo é que ela pode ser universal, isto é, quando parte da sua singularidade. É nesse contexto que a escrita de Carlos Paradona Rufino Roque, neste caso, “Tchanaze a donzela de Sena” se afirma, nessa sua tentativa de vincar alguns traços da nossa moçambicanidade através desse mergulho a esse mundo desconhecido, mágico e incompreensível para nós, simples mortais. Fá-lo sem entrar nesse exercício folclórico a que alguma escrita desonesta se socorre com vista a alcançar uma visibilidade que acaba sendo grotesca, anedótica e efémera. Carlos Paradona não vai por esse caminho, apenas recria as histórias inspiradas na realidade sugerida pelo Sena, onde o realismo fantástico predomina, escrevendo, como o disse a escritora moçambicana Paulina Chiziane, de modo a levar o leitor a uma viagem por mundos desconhecidos, para trazer novas visões e colocar à luz, saberes ocultos ou adormecidos.      

A estória do livro tem como epicentro Sena, onde Tchanaze, eleita a mulher mais desejada de entre todas as mulheres, aquela que foi fogo e lume dos corações dos homens de Sena, e também de Mutarara, passando por Murraça, Chipanga, Caia e mesmo até Cheringoma, vivia com os seus. Mas Tchanaze não só conquistou o coração dos vivos como também dos espíritos que jaziam no chão de Sena, seduzidos pela beleza do seu corpo, pelo brilho das suas missangas e pela apetência da sua virgindade. O cenário do livro decorre entre Inhangoma, Gorongoza, como também em Kumalolo, zona situada abaixo e a nascente de Sena, mesmo junto de Zambeze, próximo de Caia, santuário dos maiores feiticeiros e bruxos, os quais se encarnavam nas vidas de pessoas já falecidas e que ditavam a sorte das pessoas que habitavam aquele lugar. Uma maldição engendrada por gente maldosa fez com que Tchanaze contraísse n’fucua, doença mortal que se contrai pela maldição dos espíritos que habitam o vale de Zambeze. O quadro que este livro narra é denso, assustador, angustiante, quase macabro, e que talvez por isso prende o leitor da primeira até à última página. É a estória do inconformismo perante a morte de Tchanaze e o retratar de todos ritos e exorcismos que culminarão, mais tarde, com a ressurreição da donzela mais bonita das terras de Sena. Como disse a escritora Paulina Chiziane, este livro, referindo-se a «Tchanaze a Donzela de Sena», mostra que a beleza moçambicana é cultura, que deve estar acima da beleza monótona das telenovelas. Paulina Chiziane afirma que através da leitura de «Tchanaze», experimentou mergulhar nos saberes escondidos na gruta dos tempos. Diz ainda a escritora: «Ganhei nova visão da existência, que sempre nos ocultam sob a capa de superstição. Debati novos conceitos de vida, porque entre nós bantu, os vivos, os mortos, o visível, se entrelaçam na macabra dança do quotidiano».                

A escrita de Carlos Paradona, aquela que encontramos nestas quase duzentas páginas, traz o cheiro da nossa oralidade e a inesgotabilidade das nossas tradições, maquiavélicas ou não, reais algumas, sobrenaturais outras, e que nos faz imaginarmos alguém que sentado a roda de uma fogueira, algures, nas terras de Sofala, conta estórias que enriquecem o imaginário de quem as escuta. É uma escrita sem nenhuns pretensiosismos. Sem excessivas metáforas. Límpida. Transparente. Sedutora. De um verdadeiro contador de estórias. Como se disse, a escrita de Paradona é simples. Nada o move para a complexidade discursiva, mesmo que a complexidade da história que nos conta o sugira. A história, refiro-me a história que Paradona nos conta, deve correr límpida como os rios. Como o vento. Como o sussurro das florestas. Repare-se, por exemplo, na beleza e simplicidade discursiva do seguinte parágrafo:

«Muito devagarinho, a porta se abriu e, por entre os seus aros, apareceu ela inteira, a transbordar para fora os seus encantos de divindade. Parecia mulher que fora fogo e lume e brasa de corações apaixonados, em Sena. As suas missangas e tatuagens não se podiam parecer com outras senão com aquelas de cujo íntimo saíram mensagens que regozijaram toda a rapaziada da região, e também as almas agrilhoadas no desconhecido. Ali estava ela, aquela que podia ser a que fora venerada pelos espíritos passados, presentes e futuros de Sena, Caia e de toda a terra».

Os romances que vem sendo publicados nos últimos tempos em Moçambique, particularmente “Tchanaze, a Donzela de Sena”, desmentem de forma categórica alguma corrente de pensamento segundo a qual o romance é uma arte narrativa com que os moçambicanos lidam com dificuldade, e com menos competência, talvez até inabilidade. Para a estudiosa Ana Mafalda Leite, o romance é um género de hibridação de formas, e, provavelmente, os moçambicanos escolhem e optam por “modelos” próprios, em via de formação, diferentes, por conseguinte, acabando por escapar a outros modelos considerados canónicos. Por isso, a leitura do romance moçambicano provoca uma certa perplexidade ou estranheza, uma vez que não se rotula ou encaixa em formas previamente conhecidas, inaugurando outras, experimentais, e menos convencionados. É nesse contexto experimental que se deve inserir o romance “Tchanaze a Donzela de Sena”, um romance surpreendente, não apenas pela sua temática, mas por esse seu carácter experimental, onde podemos encontrar novas formas que em ultima estancia, não apenas testemunham a vitalidade do romance moçambicano, como também asseguram que este livro de Carlos Paradona Rufino Roque vai ser nos próximos tempos uma das grandes referências sempre que estiver em causa a análise do novo romance moçambicano.

 

Março/2014

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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