REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 

MANUEL CADAFAZ DE MATOS

Germano da Fonseca Sacarrão (1914-1992)

um humanista na pessoa do cientista
no centenário do seu nascimento

Manuel Cadafaz de Matos . Doutor em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Jul. 1998). É membro da Academia Portuguesa da História e Academia de Marinha, ex-docente universitário em Lisboa na Universidade Católica Portuguesa (Out. 1989) e na E.S.D. (Prof. Associado); e Prof. catedrático convidado na Universidade de Barcelona (Jan. 2004). Dirige os projectos editoriais das obras latinas de Damião de Góis e André de Resende. É ainda director, desde 1997, da Revista Portuguesa de História do Livro, que se edita semestralmente.

 

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Decorre, no presente ano, a passagem do centenário do nascimento de um dos cientistas portugueses com quem nos foi dado o privilégio de privar ao longo de décadas, o Prof. Doutor Germano da Fonseca Sacarrão, biólogo da Faculdade de Ciências de Lisboa. Homem de fino trato, o termo que, a nosso ver, mais se adequava à sua pessoa era o do cientista-humanista. 

 
Tendo nascido em Lisboa, em 19 de Agosto de 1914, na freguesia de Santa Isabel, Germano Sacarrão era filho de Henrique Sacarrão e de Maria Rosa da Fonseca Sacarrão, uma família que, na época, não desfrutava de abundantes recursos. Na sua adolescência, depois de ter frequentado na capital o Liceu de Passos Manuel, e de uma curta passagem por um curso da Escola Naval, acaba por se matricular na Faculdade de Ciências, em Química Orgânica, Botânica Geral e Desenho Aplicado às Ciências Biológicas.

Algum tempo mais tarde, estagia (com bolsa do então Instituto de Alta Cultura) no Centro de Estudos Histofisiológicos da Faculdade de Medicina, onde beneficia das lições de Mestres como os Profs. Celestino da Costa e Xavier Morato. 
O biólogo Germano da Fon-seca Sacarrão, o humanista ao serviço da Ciência
 

Durante a II Guerra Mundial, mais precisamente em 1941, redige os seus primeiros trabalhos científicos. É o caso de “Études embryologiques sur les céphalopodes” que sai editado in Homenagem ao Professor A. Celestino da Costa. No ano seguinte, como bolseiro do Estado, estagia na Universidade de Genebra, recebendo então a orientação dos cientistas Émile Guyénot, Kitty Ponse e Jean Perrot.

Continuando algum tempo em meios científicos da Suíça, passa a desenvolver os seus estudos científicos na Universidade de Basileia, junto do Professor Adolf Portmann, no Instituto de Zoologia daquela cidade. Esse nome cimeiro da Ciência helvética continuará, aliás, em toda a vida de Germano da Fonseca Sacarrão, uma figura de referência para grande número dos seus trabalhos.

 

Desde 1951 ao serviço da pesquisa biológica,
como docente da Faculdade de Ciências de Lisboa
 

Regressado a Portugal, Germano da Fonseca Sacarrão beneficia da nomeação, em 1951, para o lugar de primeiro-assistente da Faculdade de Ciências de Lisboa (à altura, recorde-se, na Rua da Escola Politécnica). Nessa instituição e durante mais de três décadas – até alcançar a sua jubilação, em 1984 – passa pela docência, na referida Faculdade, das disciplinas mais variadas, tanto teóricas como práticas. Registem-se em síntese, entre outras, (na área da Zoologia) Embriologia e Histologia, Invertebrados, Metodologia das Ciências Biológicas, Curso Geral de Zoologia, Zoologia Sistemática, Ecologia Animal e Zoogeografia, Zoologia Médica, Anatomia e Fisiologia Comparadas, e Antropologia.

Ainda em 1951, defendeu a sua tese de Doutoramento subordinada ao tema Sobre as primeiras fases da ontogénese de Tremoctopus violaceus (da qual havia já terminado a sua redacção em 1949).

Em 1957 este cientista português viu ser editado, em livro, o seu ensaio O Embrião e a Evolução dos Vertebrados. Dois anos depois, por portaria publicada no então Diário do Governo, recebeu, após concurso, o título de Professor Agregado de Zoologia e Antropologia.

Naquela Faculdade que, de certo modo, passou a ser também a sua “casa”, a ascensão do Prof. Germano da Fonseca Sacarrão, nas décadas seguintes, foi por assim dizer, empolgante. Em 1964 foi eleito director da Faculdade de Ciências de Lisboa, tendo-se mantido em funções naquele cargo até 1971.

Por seu lado, dada a especificidade da sua formação como biólogo, passou a dirigir também, na instituição, o Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage) até 1974, ou seja, até ao final do Estado Novo. Entretanto no Instituto Nacional de Investigação Científica, dada a notoriedade que o rodeava nos meios científicos em Portugal, passou a dirigir, até 1976, o Projecto de Investigação Científica sumariamente referenciado como “LB 2”.

 

A fase mais emblemátia da sua acção editorial como biólogo
e o seu fiel e constante conselhamento no projecto
votado
ao tema do “Humanismo e Ciência”
 

A fase que decorreu entre meados da década de setenta e meados da década seguinte – ou seja, até à sua jubilação universitária na Faculdade de Ciências em 1984 – foi sem dúvida aquele em que foi mais abundante e fecundo período de edição científica. Assim, em 1977 publicou o seu livro Ontogenia e Ambiente na Evolução dos Vertebrados. Dois anos depois foram dadas à estampa as suas obras A Ecologia da Luz e Vida e A Vida e o Ambiente.

Em 1981 e no ano seguinte editou, respectivamente, A Temperatura como Factor Ecológico e A Biologia do Egoísmo. Já em 1983 viu ser publicado, e sempre com êxito, O Meio Biológico. Iniciação ao Estudo da Interdependência na Natureza Viva.

Não escondemos o fascínio que a sua obra teve em nós, desde 1979, no período em que na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa desenvolvemos e concluímos os estudos com vista à licenciatura em Antropologia. Por sermos seus vizinhos, no bairro de Campo de Ourique em Lisboa, ele era por nós perspecivado (já então) não como um Mestre superior e distante, mas como um Professor afável sempe disposto a abrir-nos horizontes para novas incursões científicas.

Nesse período da segunda parte da nossa referida licenciatura na UNL levávamos por diante – depois de um reconhecido fascínio por temas filosóficos em que pontificavam, para além de Lévi-Strauss, os cinco Mestres de Paris (Deleuze, Ricoeur, Derrida, Bourdieu e Foucault) – um projecto votado ao tema do “Humanismo, Método e Ciência”. E foi em longas e continuadas conversas com o nosso referido vizinho, Prof. Sacarrão, que fomos encontrando semrpre o incentivo, o “travão” aos nossos ardores juvenis, e, sobretudo, o bom conselho.

As nossas missões científicas em Paris, por esse período, foram de alguma continuidade e sustância (e ouvíamos sempre, antes de partirmos, a sua voz amiga). Recordamos a nossa partida para o Hospital Boucicault, na capital francesa, onde fomos trabalhar alguns dias com o Prof. Henri Laborit (ver testemunho nestas páginas da presente Revista). E uma vez mais, a voz douta e prudente do Prof. Germano da Fonsaca Sacarrão não deixava – no plano da Etologia e da Agressologia, como era o caso desse plano de pesquisa específico – de levantar pistas e de nos induzir para algumas fontes que não deveríamos descurar.

Ele acompanhou, de igual modo com o seu empenho, o nosso trabalho pessoal com o biólogo britânico Desmond Morris. E se algumas das nossas descobertas não deixavam de lhe provocar um saudável espírito de hilariedade, por outro lado, o esforço que ele fazia para que continuássemos nesse domínio era um desafio pois, reonhecidamente, enveredando mais pela Filosofia e História da Cultura, não estivemos, reconhecidamente, ao nível dos empolgantes desafios que nos ia lançando.

 

Entre os temas da Agressologia e os da linguagem tamborinada
com reflexos no sistema nervoso de aborígenes da Melanésia
 

Quando ainda na primeira metade da década de oitenta, na cidade de Paris, partimos para trabalhar com Borys Rybak (e depois entrevistámos, aqui em Lisboa, René Thom, Medalha Fields), ouvimos sempre a sua voz avisada. Ele denotava uma paciência invulgar – ante o aprendiz de feiticeiro que éramos – quando, acerca deste último cientista francês, colocávamos o Prof. Sacarrão em confronto, na nossa grande ignorância, com dúvidas óbvias sobre as relações do sistema nervoso e a linguagem tamborinada dos índios da Melanésia (uma matéria empolgante que pouco antes havia sido estudada precisamente por B. Rybak).

Foi nesse contexto de um debate científico bipolar, o cientista da referida Faculdade de Lisboa e o aprendiz do feitiço da Ciência que éramos, que, no ano de 1985, ele nos aliciou a trabalharmos com ele, naturalmente que sob a sua direcção, na biblioteca da sua antiga Universidade.

Tratava-se de de levarmos por diante, nesse ano de 1985, um primeiro trabalho sobre o espólio do naturalista açoriano Francisco Arruda Furtado. Mesmo apesar de se ter jubilado, de facto, em 1984, este docente continuava então a trabalhar nas mesmas instalações com o mesmo afinco e rigor.

Foi de surpresa em surpresa que, nesse ano e pela sua mão, ele nos indicou e acompanhou o modo como deveríamos olhar, com outros olhos, uma matérria então ainda praticamente virgem (para além de um estudo sumário de um Colega seu): a correspondência trocada entre Charles Darwin e Arruda Furtado. Depois de fastidiosas sessões de trabalho conjuntas, naquela biblioteca – onde a pesquisa se tornou extensiva às outras obras do açoriano e inclusivamente, à sua própria biblioteca – em fins de 1985 esse nosso primeiro trabalho estava concluído.

Foi então, com efeito, pela mão de Diogo Pires Aurélio, especialista em Espinosa e que, por esses anos, foi nosso Colega na redação do Diário de Notícias, beneficiámos do seu favorável acolhimento para este nosso trabalho (bem como um outro do nosso Mestre e biólogo) ser, como foi, publicado no ano seguinte, no vol. 11 da revista Prelo, que ele dirigia na Imprensa Nacional – Casa da Moeda (Maio-Junho).

Esse ano da edição do nosso referido estudo de incidência darwiniana correspondeu, de igual modo, aquele em que Germano da Fonseca Sacarrão fez publicar, precisamente O darwinismo em Portugal. Tal ocorreu depois de um curioso trabalho, sobre O Abuso da Metáfora em Biologia.           

 

 
 

A parábola do moço-ancião enamorado
e o ramo de flores, na mão, para a mulher amada 

Entretanto já em 1987, mesmo apesar dos primeiros deslizes na sua própria saúde, o Prof. Germano da Fonseca Sacarrão, tendo já ultrapassado os setenta anos, continuava a apostar na sua investigação científica e na edição dos seus estudos. Foi assim que acompanhou a edição da sua então mais recente obra, A Adaptação e a Invenção do Futuro.

A fase final da sua vida é a de um homem e cidadão comum. Mesmo sendo todos iguais na morte, o triste desenlace final ocorrido com o Prof. Germano Sacarrão não foi um desenlace comum. Aquele que foi membro fundador, sócio n.º 1 e presidente da Associação Portuguesa de Biólogos, em 1992, teve uma passagem, porventura feliz, pacífica, e desigual à de tantos seres que conhecemos, uma passagem precisamente, como dizíamos, desigual.

 

Acreditando numa passagem de Maria Estela Guedes, e numa passagem de um dos seus eventualmente mais felizes escritos (pois enaltece a amizade com esse Mestre de todos nós e cientista), Germano Sacarrão, em 22 de Outubro de 1992, no Bairro de Campo de Ourique, tinha ido comprar flores para a sua Esposa, possivelmente pelo aniversário desta. Caminharia decerto com as flores na mão. Foi acometido de uma síncope fulminante e não pôde dar luta.

Era o passamento, porventura pacífico, de um grande homem de Ciência mas, sobretdo, de um homem, como poucos que nos foi dado conhecer.

 

Por uma carta de 2 de Outubro de 2014 à minha Colega Prof. Olga Pombo, da Faculdade de Ciências de Lisboa, propuz que se realizasse este ano, nessa instituição, uma cerimónia que assinalasse a passagem do centenário do nascimento do Prof. Fermano Sacarrão. Ainda me foi comunicado, para contactar, o nome do Colega, o Prof. Luís Vicente (que foi aluno dele)...

E é ante a memória deste Mestre, a sua tranquilidade e saber, que o evocamos (onde quer que o seu espírito esteja), que aqui o queremos lembrar. Bem-haja, Mestre, por tanto que nos deu!

 

Manuel Cadafaz de Matos

   
 
  A casa onde morava G.F. Sacarrão, em Campo de Ourique. Imagem do Google Earth.
 

  In Revista Portuguesa de História do Livro, Ano XVII, vol. 33-34, 2014, Volume especial de Homenagem ao filósofo Paul Ricoeur, secção ‘Varia’
 

 

© Maria Estela Guedes
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