REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 

 

LUÍS COSTA

Exumações

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Apenas Livros Editora  

Arte - Livros Editora

 
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Revista Incomunidade  
 
 
TEXTO QUE NIKOLAI GOGOL ESCREVEU COM A MINHA MÃO QUANDO ESTIVE EM SÃO PETERSBURGO
 
(como não sei russo, agredeço ao meu
amigo Alexei Paschitnow esta tradução)
 
ERA uma cabeça decapitada e uma perna amputada 
e uma mão sem braço 
que seguiam pelos campos e pelos bosques e mordiam 
raivosamente a terra com a ira da exenteração.
iam em busca de um corpo que os unisse, 
que os unisse como uma trindade, 
um corpo nascido do sangue e da terra, 
talvez com um pouco de sémen de deus e uma pitada
de cuspo do diabo.
cada qual tinha feito parte do corpo de três soldados
que morreram na primeira grande guerra, 
um francês. um alemão e um português.
e os três lá seguiam, lá seguiam  lado a lado 
à procura de um corpo sonhado, lá seguiam lado a lado
um corpo que os pudesse unir como uma trindade. 
não era preciso ser muito belo, nem mesmo perfeito
 bastava que os mantivesse integramente unificados, 
para que assim pudessem ser úteis 
úteis como se deve ser, úteis como se deve ser
talvez de novo como soldados.
mas a verdade é que os três desesperados 
não se conseguiam entender, pois cada qual 
só falava a sua própria língua. 
e lá iam, lá iam, dialogando e gesticulando, 
gesticulando e dialogando, cada qual na sua língua. 
um dizia para aqui, outro dizia para ali, 
um puxava para aqui, outro puxava para ali, 
mas ninguém se entendia,
ninguém se conseguia entender.
e assim foram caminhando, 
caminhando através das noites, 
caminhando através dos dias, caminhando noite e dia
até que certa manhã, chegados a uma encruzilhada, 
já cansados de tanta discussão, 
resolveram cada qual seguir o seu caminho, 
pois aquela trapalhada já não tinha qualquer sentido. 
e cada qual seguiu o seu caminho ,
cansados, já sem sonhos nem esperança, 
cada qual seguiu o seu caminho
 
pois é verdade 
que havia três falas, mas faltava a linguagem.
 
 
ii
 
 
TEXTO QUE DANTE ALIGHIERI ESCREVEU COM A MINHA MÃO
 
BORGIANO
 
CONTAVA-ME a minha avó que Jorge Luís Borges viveu, como exilado político, durante alguns anos, em Albergaria. Albergaria é a aldeia que me viu crescer, uma aldeia enterrada na beira - alta com a Serra da Estrela como pano de fundo. enfim, uma aldeia serena como o centro da criação.

quanto a Borges, que seu saiba, da sua biografia não consta que tenha sido refugiado político, nem tenha estado em Albergaria. 

mas a minha avó dizia que sim e sim. e eu nunca fui capaz de a contrariar.
 
perguntando - lhe como era Borges, dizia - me que era um homem amável, por vezes irónico, e que trazia sempre uma enciclopédia debaixo do braço e era bem parecido, mesmo bonito, os seus olhos até faziam lembrar os de Homero.
 
porém, havia dias em que ficava muito irado, então deitava-se a correr, embrenhava - se nos matagais de Albergaria e só aparecia alguns dias depois com o vestuário todo esfarrapado, os olhos muito vermelhos, os cabelos compridos e a barba por fazer.

e quando a minha avó lhe perguntava por onde andou e o que andou a fazer, ele respondia:
 
fui ao Inferno, fui ao Inferno.
 
e o que foi lá fazer?
 
fui ver se conseguia encontrar o caminho para a famosa Biblioteca de Babel, pois segundo os anais de Ovídio há uma passagem secreta no Inferno que vai dar à porta principal dessa biblioteca. mas ainda não foi desta que a encontrei. terei de lá voltar. 
 
contava -me a minha avó que, durante o tempo que viveu em Albergaria, Borges terá ido cerca de 20 vezes ao Inferno e terá mesmo escrito um volume de contos sobre essas descidas ao Inferno, com o título: Estadia no inferno
ao dizer a minha avó que esses contos me eram desconhecidos, embora sendo eu um profundo conhecedor da obra de Borges, ela respondeu: 
 
esses contos, meu neto, nunca chegaram a ser publicados. lembro-me que na última noite que Borges passou em Albergaria, recebeu a visita de um homem estranho que falava uma língua estranha (provavelmente aramaico)

a verdade é que algumas horas depois de esse estranho ter deixado a casa de Borges, ouvi Borges gritar:
 
maldito! maldito! levou-me o meu livro com as memórias do Inferno. maldito! maldito!
 
um dia depois, Borges abandonava Albergaria para mais não voltar.
 
 
ii
 
O FANTASMA DE JEAN PIERRE DUPREY ESCREVE 
UM POEMA COM A MINHA MÃO
 
É SABIDO que os fantasmas gostam de casas
obscuras e abandonadas
é sabido que deambulam pelos bosques 
com rostos de crianças nocturnas
e que gostam de violar as coisas sagradas
e que sopram a luz da lua por entre os dedos
é sabido que não têm medo da morte
por vezes aparecem nos becos mais sujos 
das ruas periféricas e assustam os passantes
fazem também longas viagens através 
das noites nos comboios suburbanos
e bebem vinho avinagrado e fumam
fumam muito, e cantam... 
por vezes, quando o revisor aparece, 
transformam-se em mariposas e o revisor
não imagina que os fantasmas vão ali
e que tomaram conta daquele comboio 
e que o condutor do comboio também é um fantasma
pelo amanhecer, os fantasmas regressam
ao silêncio das casas obscuras e abandonadas
e exaustos adormecem e sonham como crianças.
 
 
DITADOS
Luís Costa
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL