REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 



JOÃO PEREIRA DE MATOS

Um Problema Nuclear

 

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.  

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Revista InComunidade  
Apenas Livros Editora  

Arte - Livros Editora

 
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
   
 
 
 
 
 

E, se vos disser: de um tanto tirai um todo? Porque tudo é fragmento e memória - ela mesma descontínua - em um presente agostinianamente opresso, ora não se consegue capturar o presente, fugidio, como nos ensinou tal doutrina, a não ser que por força de mental amplexo, onde por virtude de assim o querermos, damos espaço ao presente, olhamos ainda o passado e expectamos o futuro a nosso bel-prazer; e muito há a faltar pois quanto o que é vos basta se tendes de andar e viver e de comer e respirar nem sempre o mesmo ar mas com a saudável variação que convém ao vasto e ao vário, porquanto o ar incirculado estiola e asfixia? Ainda assim, muito se diga que carecidos sempre andamos, uma necessidade vital que se não cumpre, ora pela extensão do firme tempo da vida ora pelos caprichos de ideal e sã saúde tranfigurada em maleita ora, ainda, pela perfídia das gentes... porque o que é preciso é um caminho, este ou qualquer outro e as condições para se poder dar sempre mais um passo mesmo que a errância seja destino último, irreprimível e fatal condição de quem será a penar debaixo do Sol...

Nem uma parte é o todo, coisa banal e evidente, nem o todo amiúde entende sua parte: como o poderia se é seu mester ser total-totalizante? Não pensas em teu fígado a não ser, claro está, se ele, com seu parcelar poder, te põe amarelo como um limão... Assim, tens a cor, a promessa dessa cor se tal parte decidir tal efeito e o tom citrino é apenas um exemplo... Muitos mais e outros se poderiam aduzir naquela circunstância de uma parte se rebelar contra o todo ou de este não saber ou não poder comandar, em justo preceito, as suas partes. Mesmo o sentimento do diverso do mundo ou, se preferires, suas partes, disjuntas e entre si belicosas, apenas em profunda paz naquelas poucas alturas em que a chã hipótese de um sentido desponta. Consiste, portanto, em diferença esse orbe desavindo ou de harmonia dos seus constituintes mas o que resta e que o forma é isso o que lá, inadvertidamente quero crer, pões: um sonho ou vago anelo, uma virtude sã, qualquer coisa que tenha o condão de dar ordem ao caos, dispor o desavindo com justiça e acerto. Esta é a efectiva razão que é a essência da facticidade do que determina o instante presente da tua vida é tributário do que foi outrora e ilumina o porvir, a mutação tua na corrente dos dias.

E, é assim, que nunca são as partes o todo.

No cerne está a vontade, na orla o consabido resíduo do que outrora se quis. Ou talvez seja o inverso: o real é só loucura de impossível e orbitando fica a sábia reflexão. Ou então, mesmo que de par em par andem os ventos do malogro e da esperança e isso que por sua natural natureza parcelar e antitético é, evolua em compósita serenitude. Há, nessa conformidade, íntegro jogo, onde as partes e o todo cumprem eficazmente o seu papel de partes e de todo, sem um dissenso, um contrário desejo aos superiores interesses do todo mas respeitando o que cada parte tem de particular e específico.

E, é assim, que sempre as partes sejam o todo.

Isto para vos dizer - e talvez me ajudem - da peculiar situação em que sou, no que fui e no que me tornei. Da impossibilidade de retornar ao que era, da vontade de insciência, de paz. O tormento provém da questão, a dúvida corrói o espírito, até a carne. Não fora isso e tudo estaria bem, na sua ordem perfeita e consoladora, cumprindo-se o que há para se cumprir na função para que se existe, o horizonte mesmo do contentamento de se ser parcela de algo mais importante e vasto, sem qualquer cuidado com a transcendente importância ou virtude ou, pelo contrário, da irrelevância do objectivo final para que se contribui.

Ora, sendo eu, do todo uma parte, convivo inconformado com meu destino. Eis que o tormento começou quando me autonomizei o suficiente, a exacta rigorosa mesura, para me ver, a mim, como parte deste todo. Como a parte de um todo no espelho da minha consciência.

Não adiantou o argumento, de resto falaz, de que, se me vejo cônscio de mim próprio, já constituo um todo, porque detentor dessa parcela de autonomia que, precisamente, se revela em tal consciência. E que, ademais, não serei - como não sou - substância unitária pelo que, eu mesmo, contenho partes, partes de um todo que sou eu, não obstante sendo eu parte de um todo, maior que as partes que me formam, e como todo, afinal, mais íntegro do que seria se apenas fosse mera parte de um todo. Assim, embora seja parte de um todo, poderei ainda ser, como se viu já, numa determinada perspectiva, todo em relação às partes que me dão corpo e que, por serem partes de uma parte seriam sempre partes de um todo, quer esse todo seja eu, quer o todo seja o todo de que eu, como parte, participo.

Parece complicado, mas tudo não passaria de uma questão de escala... Nem garantido está que as partes que me dão substância não sejam, elas próprias, capazes de lograr consciência de si, o que lhes daria, por sua vez, um carácter totalitário. Nem sequer, pensando um pouco melhor, que essas putativas partes de partes, envidassem pelo meu problemático caminho, tortuoso e angustiado, prosseguindo dess’arte até ao infinito, ou quanto muito, até à última subdivisão da matéria, átomo próprio, primordial, que, enfim, se pudesse arrogar do estatuto de parte originária, o que seria outra forma de dizer de um todo, pois que só então seria, sem rebuço, uma unidade, mónada em si, indivisível e completa.

E digo mais: ninguém me conseguiu asseverar de que o todo de que me sei parte não seja, ele também, parte de um todo maior e que eu, parte de um todo então intermédio, não conseguiria vislumbrar. Por essa razão, também neste caso, quem sabe qual todo poderia descansar na certeza de ser o maior todo de todos os todos, o corpo final e vero englobante, porquanto nele estariam todos os todos e todas as respectivas partes. Grande máquina também de infinita complexidade pois conteria em si não só partes a perder de vista como ainda partes compostas de outras partes e dentro do conjunto vasto de tantas partes, umas conscientes de si, como eu, e portanto de certa maneira já parcelares todos, outras em total cegueira de sua própria identidade e, desse modo, apenas pedaços funcionais e finitos. Mas há mais: se cada parte que pensa e questiona o seu lugar no todo pode imaginar a vastidão na radical grandeza, assim como o ínfimo do mais pequeno elemento, então haverá um desatinado jogo de imaginação a decorrer, uma multiplicação ainda que virtual da ordem das grandezas, uma confusão generalizada acerca do lugar de cada um, entorpecendo os processos naturais de operação de cada parte que, esquecida da sua função, quer saber se será ela o todo final ou uma parte insignificante. Grandes orgulhos e abismos de humilhação se vão assim desenhar. As partes mais tolas e vaidosas quererão ocupar lugar de destaque na ordem das coisas, ufanas, sentir-se-ão vastos todos. Esquecerão tolamente a sua teleologia de partes julgando-se imensos todos, querendo apenas comandar as partes que os compõem. Podem ser grandes mas têm as suas naturais limitações, não se podem dar ao luxo de ser ociosas, de ficar impando de vã vaidade quando tanto há ainda por fazer.

Por sua vez, as partes mais modestas, com facilidade, caem na perigosa melancolia de se sentirem muito pouco importantes. Ao ponto de já não quererem fazer o seu trabalho de partes, pensando, erradamente, que podem parar, que o todo de que são partes não precisa delas. Aqui chegados, eu postulo que todas as partes são importantes para todos os todos e, mais radical, sou a dizer que até o são para o todo mais vasto, o todo a bem-dizer universal, e que ele não pode prescindir da mais pequena e humilde parte que o compõe. É fácil de compreender que uma parte que desista da sua função de parte vai, em primeiro lugar, prejudicar o todo de que é, imediatamente, parte, e que esse todo, parte, por sua vez de outro todo de ordem superior não vai funcionar correctamente uma vez que um dos seus componentes constituintes falha devido à nossa parte relapsa. Essa cadeia irá percorrer toda a hierarquia das partes e dos todos, ampliando-se, como os círculos concêntricos de um espelho-de-água, até que não haja corpo que não esteja ferido nas suas partes e na inerente integridade do seu todo. Por isso é tão perigosa a consciência de se ser parte. Não sei, contudo, se sou caso único ou se há outras partes que também despertaram para a evidência de se saberem partes. Mas posso conjecturar que se eu logrei ganhar alguma autonomia mental, percebendo-me parte de um todo que provavelmente será parte de um todo ainda maior e que me compõem partes que são todos relativamente a outras partes mais pequenas e assim sucessivamente, então é muito provável que alguma ou até muitas partes de muitos todos cheguem à consciência de si, do que as rodeia e se perguntem como eu ora me questiono o que diabo são, se são todos, se são partes do todo, se são elas mesmas compostas de partes que podem ser todos em comparação a outras partes de menor dimensão que podem também ser todos e que em maior ou menor grau por igual desdita se tenham posto a meditar no seu lugar no todo e no seu papel de partes do todo.

Vejam então, que perdido nesta vertigem me sinto, não sabendo se, sendo parte, sou igualmente um todo, se as partes que me compõem se sentem partes de um todo que sou eu e que, por sua vez, são compostas de partes conscientes de si e, por conseguinte, também, à sua maneira, um todo e, finalmente, se o todo de que me sei parte é parte de um todo ainda maior, sentindo-nos todos infelizes e confusos, excepto, como vimos, a mais pequena parte de todas as partes e o maior todo de todos os todos.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL