REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

 

MÁRCIA FUSARO

Estará a civilização contemporânea
 
fadada à descultura?

  

 Márcia Fusaro (Brasil). Doutora em Comunicação e Semiótica - PUC-SP; Mestre em História da Ciência - PUC-SP. Professora universitária e pesquisadora das interfaces epistemológicas entre educação, cinema, literatura e ciência.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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É de uma incômoda lucidez o olhar intelectual que Mario Vargas Llosa lança à cultura contemporânea em seu livro La Civilización del Espetáculo (2012), com tradução para o português brasileiro (A Civilização do Espetáculo), lançada recentemente no Brasil (2013) e que utilizo aqui para citações. Em Portugal, o lançamento se deu em 2012.

Sua erudição, conduzida pela pena da escrita elegante e habilidosa que lhe valeu o Nobel de Literatura em 2010, não sobrecarrega os ensaios com definições academicistas. Antes, Llosa se vale de seu talento para nos conduzir por espaços multitemáticos de reflexão sobre até que ponto a cultura contemporânea se vê tragada pelo consumismo e pela efemeridade de valores. De saída, aponta o conceito de cultura como totalmente modificado e esvaziado do sentido que tinha em sua geração.

Aponta também a cultura, dentre várias definições que não se mostram nem um pouco fechadas, como algo anterior ao conhecimento e que lhe dá sentido e orientação, deixando-se conduzir até a afirmações bastante contundentes como aquelas que utiliza ao citar En el castillo de Barba Azul. Aproximación a um nuevo concepto de cultura, de George Steiner:

“A pós-modernidade destruiu o mito de que as humanidades humanizam. Não é indubitável aquilo em que acreditaram tantos educadores e filósofos otimistas, ou seja, que uma educação liberal, ao alcance de todos, garantiria um futuro de progresso, paz, liberdade e igualdade de oportunidades, nas democracias modernas: ‘...bibliotecas, museus, teatros, universidades, centros de investigação por meio dos quais se transmitem as humanidades e as ciências podem prosperar nas proximidades dos campos de concentração’ (STEINER, p. 104). Em um indivíduo, assim como na sociedade, chegam às vezes a coexistir alta cultura, sensibilidade, inteligência e fanatismo de torturador e assassino. Heidegger foi nazista, ‘e seu gênio não se deteve enquanto o regime nazista exterminava milhões de judeus nos campos de concentração’ (STEINER, p. 105)” (LLOSA, pp. 17-8).

Sua opinião sobre os inúmeros ensaios e notícias que abordam o conceito de cultura nos meios intelectuais, em períodos mais recentes, é a de que a grande maioria dos intelectuais concorda com o fato de que a cultura entrou em decadência e está passando por uma crise profunda. Não se sabe mais, de fato, o que é cultura. A única certeza que parece pairar é sua definição fugidia, multifacetada, imprecisa, deslizante, “líquida” conforme a define Zygmunt Bauman, outro importante pensador contemporâneo.

Nesse contexto permeado por imprecisões, a arte e a literatura surgem, para Llosa, como universos contemporâneos engolidos pela efemeridade dos valores.  O que antes era considerado alta cultura atualmente se mistura ao entretenimento, sem fronteiras muito precisas e que flertam com a banalidade. Em tal contexto, o tempo-memória também surge como elemento definidor:

 “A diferença essencial entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, ao passo que os produtos deste são fabricados para serem consumidos no momento e desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann e ainda Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver a seus autores, continuar atraindo e fascinando leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os filmes de Hollywood, assim como os shows de Shakira, não pretendem durar mais que o tempo da apresentação, desaparecendo para dar espaço a outros produtos igualmente bem-sucedidos e efêmeros. Cultura é diversão, o que não é divertido não é cultura” (p. 27).

Para Llosa, a literatura, o cinema e a arte “light” propagados mercadologicamente na atualidade enganam lamentavelmente o leitor/espectador, dando-lhe a impressão de que ele é culto e está atualizado com o que há de mais novo e moderno na cultura, e, “melhor”, com um mínimo de esforço intelectual. Assim, essa cultura contemporânea que se considera “avançada e transgressora”, no fundo apenas realça a lamentável propagação do conformismo por meio da complacência e da autossatisfação. Conforme nos lembra Deleuze, e nisso em total consonância com Llosa, grande arte é aquela que força o pensar. Grande arte não é entretenimento. É proposta de renovação (diferença) no ser, pela condução ao pensar a partir de um meio esteticamente provocador. Um meio (plano de composição) produtor de afectos e perceptos.

Cada um dos ensaios apresentados por Llosa, vários deles publicados pelo jornal El País, de Madri, nos provocam incômodas reflexões sobre até que ponto a massificação de informações trazida pela contemporaneidade é produtora, de fato, de uma cultura promotora de saberes menos valorizadores do refinamento do espírito. Na companhia dessa excelente leitura de Llosa, fica a proposta de reflexão. 

 

 

A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO
Mario Vargas Llosa
Ed. Objetiva (Brasil), 2013
Ed. Quetzal (Portugal), 2012

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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