REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 41 | outubro-novembro | 2013

 
 

 

 

 

ANA CORDEIRO REIS

a jangada ondulante

(fragmentos)

Ana Cordeiro Reis (Lisboa 1977). Escrevo desde que me lembro. Escrevo o que me lembro, o que tenho por força ou dever, amor e fúria, relatar. Nenhuma publicação oficial. Textos e poemas em monografias e edições obscuras das quais não me orgulho. Viagem interior, aventura centrípeta, a permanência da memória. Perpetuar ideias, universos, paisagens, matrizes que a palavra e os seus códigos transmitem. http://akousmata.webs.com

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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 I. 

relegou o pensamento a um rompante vago, se falso, se real, tanto fazia, porque de tão claro na ideia, ainda que falso, outros bem reais e semelhantes se tinham sucedido.

em seu redor tudo era negro de uma escuridão aflitiva, abafada na mudez que também a ela ameaçava. o rosto que via desfazia-se entre o verdadeiro e coisas, porque desumanas, coisas que o pesadelo mais incongruente temeria evocar.

 

não fales, não lembres, não recordes, nunca, ouviu dizer-se-lhe. 

hesitou longos segundos e o seu rugir seguiu-lhe o braço que seguiu a mão, sem pejo, carregada de dor, bateu de encontro ao rosto que frente a ela se desfazia, inimigo de tudo o que perpetua.

 

vivendo nua; em seu interior; no seu corpo despojado de vestes; de vestes sobre o corpo, em nudez permanente. cada vez mais longe da nudez absoluta dela recém-nascida, cada vez mais perto da nudez absoluta dela recém-morta; dos despojamentos puros do início e do fim, fim?

os dedos percorrem a linha de chão em esquina com a frincha da porta, puxando do outro lado o fio polvoroso do rastilho. os olhos abertos na claridade nocturna, não se baixam para acompanhar a mão, de gesto sem propósito definido como ela em criança. dedilha a torsão fina, os leves grãos, recordando o odor ceroso e salgado do fio do norte, nunca para mim é nunca perder o fio à meada. esquecer, o único olvido é o que fica para além dos ramos das árvores que ladeiam o jardim, o doce silvo do vento no álamo é o ponto de escape, o plano de fuga bem sucedido. se eu me duplicar e sair do meu corpo, e contar as vértebras de minha coluna dorsal, cada uma delas um número infinito de recordações, de saberes, de memórias, de relatos. porque sofre meu coração nessa memória agora tão viva e feroz, todas aquelas que como eu souberam, testemunharam, entenderam, e quiseram sem medo, de sua voz, de suas palavras, relatar os sucedidos – porque todas nós carregamos na fronte, nos olhos, o peso do ferrete imposto. o ai de ti que fales. o não te lembres, não te recordes, nunca. não perder o fio à meada. o rastilho puxado, mão que não mata e se dobra batendo o pulso contra o comprimento do fio de pólvora. quando as lágrimas são duras demais, assim se sentem, como a pedra mais dura. quando as lágrimas podem destruir a maior dureza, porque desta a origem nem sempre é feliz, saltam para trás num rugido circular interior e mudo. 

quiseram que não falasse, não lembrasse, não recordasse. não satisfeitos de relegar ao exílio, não satisfeitos de impor ferretes sem conta, não satisfeitos das vezes sem conta que universos frágeis a abandonaram na desolação, não satisfeitos dos incontáveis corpos marcados – consumidos pelo ódio de, face às fugas colocarem longe e salvarem  do alcance da agressão.

não satisfeitos, re-membro; ou a capacidade de entender que depois de tudo isso, quiseram ainda que me esquecesse. quiseram-me vazio silencioso e desmemoriado; desconexo, incongruente, sem sentido, insano até. não falar, não lembrar, não recordar, não apenas o inflingido, mas tudo o que me salva e mantém íntegra. lembro, recordo, falo alto de tudo o que me – que nome se dá ao mal?

mais alto ainda de tudo o que me ergueu, reergueu e me orientou em frente, me devolveu o que me tiraram; tudo o que me re-membrou;

 

 

© Maria Estela Guedes
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