REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 33 | novembro | 2012

 
 

 

 

 

LUÍS COSTA


Prosas holísticas

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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O ESPELHO

                                                              

 A casa rica tinha  no vestíbulo

    um espelho enorme, imenso, muito antigo,

                                                              comprado há pelo menos oitenta anos.

           Constantinos Kaváfis

 

 

Olho-me no espelho da entrada. Não me reconheço. Um rio violento... Lá dentro

o meu rosto singra desfeito em mil pedaços. Serei o inventor  de Deus e não o sei?

Pois o que é Deus para além desta palavra monossilábica de quatro letras?

“ Deus “ , diz alguém,  “ é o silêncio perpétuo. “ Assim, sempre que digo : "Deus!  " ergo-o

do seu silêncio de pedra, torno -o presença da ausência:   “ Surge et ambula! “

 

Ó noite sem fim! Com a cabeça cravada no espelho, povôo os abismos.

 

 

 

O LIVRO

 

Ler um livro é povoá-lo, recriá-lo, por isso o livro, embora parecendo acabado, encontra-se lá no fundo inacabado.

 

Cada leitor que  re - abre um livro ergue-o da sua ausência e do seu vazio ( da morte) pois cada leitor é um habitante do livro:  incute-lhe o seu hausto e recebe o hausto do livro. Cada leitura é a exumação do livro.

 

 

 

DA LEITURA OU A BORBOLETA

 

 

  Leia, leia sempre mais e mais,
a compreensão chegará por ela mesma.
 Paul Celan

 

 

O poema estava ali, à sua frente, como uma luz que, de tanta luz, é uma imensa noite. O leitor aproximou-se, olhou-o, cheirou-o, apalpou o papel, depois leu. Leu , atentamente  – como quem degusta um fruto sumarento    uma vez, duas, três.... Era um ritual... um ritual...

 

E o poema, que até ali havia sido um corpo opaco e fechado em si mesmo, abriu as asas, e o leitor viu como a larva se metamorfoseava: era agora uma enorme borboleta , cintilante, planando à volta das rosas do jardim.

 

O leitor deixara-se conduzir pela mão do poema. O leitor sentia-se uno com o poema. O leitor via para além dos olhos:  o portal do poema encontrava-se aberto de par em par, sem sentinelas hirtas. O leitor povoava agora o poema.

 

A borboleta viverá até uma nova leitura. Depois morrerá para renascer em cada nova leitura ( no povoar do poema ) : cada nova leitura é descobrir a morte e o renascer da borboleta.

 

 

 

O ANJO CAÍDO

 

Avança pela avenida desértica. As árvores em cinza. Carros destroçados. Os olhos voltados

para dentro. Lá dentro, a noite. Nas cicatrizes das mãos o suicídio do amigo mais próximo.

À volta, a recordação de crianças que riam e dançavam ( era primavera ). E o sol cai a prumo

nos charcos do sangue velho. Alimenta-se do desespero.

 

 

 

A BRUMA

 

Entre o delírio e a lucidez, a cabeça arde-lhe por dentro. As palavras querem libertar –se , mas não encontram a forma nem a medida, adequadas, que lhes permitam uma segurança formal. Silêncio negro e pesado. A estas horas, é assim que funciona o seu cérebro  – uma sinfonia de Beethoven (talvez a nona ) quebra- lhe os neurónios. Tudo flui na inconstância do não-possível-dizer. Aflito, corre para a casa de banho. Olha-se no espelho. O seu rosto é um fragmento egípcio.  Um turbilhão de monstruosos céus escorre-lhe dos ouvidos. Ah! Ali , em frente ao espelho, mergulhado no abismo das seringas, mais parece o Anjo Negro, quando, em certas noites de verão levanta voo, envolto numa bruma sebastianista, talvez vinda da Barragem da Aguieira, ou de Alcácer Quibir.

 

 

 

O OUTONO

 

Outono dourado. Sentado na varanda, bebo café e como pão com geleia de figos. Os livros

ao lado. Uma brisa ligeira espanta as folhas douradas. Sussurros de um outro mundo. O azul

é imenso e os bosques seguem as asas dos pássaros, raros. A hibernação já passeia pelos campos. A luz amena no rosto sabe bem. Leio um poema de Miltos Sachturis: OUTONO.

 

 

 

A MARGEM OU O CENTRO

 

Cultivo as margens e delicio-me com o vento que passa. Os grandes centros e os heróis nunca me interessaram. Antes os anti - heróis, raças baixas, criaturas fabulosas e os exímios habitantes das fronteiras.

 

 

 

ESLÁVICO

 

Rapazes com as sombras das aves tatuadas nos rostos. Este magro verão. Eslavo. De pernas extensas. Comboios que transcendem os nós dos sentidos. E o velho barbudo que colecciona jornais para renovar a gíria das pombas. Delírios. O homem sem ofício. Traz uma pedra miraculosa numa das mãos. Um nimbo de mosquitos nas abas do chapéu. A sua magnífica boca educando o corpo do fogo. E a noite encima-se, gloriosa , nos olhos do flâneur.

 

Eis o caminho aberto para as longas madrugadas! Aqui moram as clepsidras da história. Oásis do imaginário colectivo, esta praça. Grandes crimes. Grandes  feitos. Nos pedestais as idades rodam. Por baixo, a devoção dos sedimentos. Súbitos haustos erguem-se dos túneis obstétricos. Tarifas com asas sumptuosas. O suor dos cavalos impregnando as esquinas. O perfume da prodigiosa urina.

 

E esta noiva com bolas de sabão engrinaldada. E o noivo com a alma gravada no gume de uma faca. Ah! E aquele senhor rigoroso, mas subtil, que nos explica a onomástica dos antigos instrumentos de navegação: teodolitos, quadrantes, astrolábios, mapas – múndi... Um mármore anterior ao ódio.

 

E os velhos, mas altivos eléctricos que nos levam até ao fim da noite inexplorada, no subúrbio da cidade. Ah! E o vinho. A palavra vinho. E o pão. A palavra pão. Tão distantes do nosso paladar verde. E o sal. Este sal milagroso. A palavra sal. Filha de um mar do Mioceno.

 

Hoje habitamos a circunferência desta língua estranha com a assunção dos gestos. Ó grande glória! Água pesada como a claridade da morte. E, de novo , a palavra vinho e a palavra pão e a palavra sal e à volta: uma procissão de raparigas sonâmbulas transporta a cinza das árvores na palma das mãos.

 

(Wrocław, 14 de Agosto 2011) 

 

 

Luís Costa (17 de Abril de 1964, Carregal do Sal. Portugal)
Tem vindo a editar trabalhos em revistas e sites digitais como: revista Conexão Maringá, revista Zunái, site Triplov e revista Agulha.
Blogue pessoal: http://oarcoealira.blogspot.com/
Contacto: l.Costa@web.de

 

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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