REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

 

FERNANDA DE CASTRO E ANTÓNIO FERRO

- A Semana de Arte Moderna de São Paulo

 

Colaboração com os alunos de Jornalismo da UNISANTA - Universidade Santa Cecília, Santos. Abril de 2012                                                                  

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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A recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo traz-nos à memória um casal de jornalistas e escritores, e muito mais do que isso, pois, no caso dele, António Ferro, trata-se de um dos raros elementos positivos da política do Estado Novo. Antes de afastado por Salazar, António Ferro desempenhou importantes funções na Cultura, e nessa qualidade promoveu grandes acontecimentos e grandes artistas da modernidade

A arte é tecida de relações, um livro é um retalho desse tecido de diálogos, conhecimentos, leituras, espantos e descobertas da nossa experiência, que constituem o suporte da criação. Por isso não surpreende que este depoimento complete um anel na minha rede de afetos e práticas de exegese modernistas. Esse anel passa pela Guiné-Bissau, nas cercanias da Primeira Grande Guerra, e por Cascais, nos anos 70, para se fechar aí – ou aqui -, na Universidade Santa Cecília, em 2012.

Foi Fernanda de Castro, esposa de António Ferro, quem viveu em Bolama, nessa época capital da Guiné Portuguesa. Da experiência guineense deixou um belo poema, África Raiz, e romances que encantaram a nossa infância e adolescência: Mariazinha em África e Novas aventuras de Mariazinha.

Ora estava eu há dias a pensar, depois de ter metido no correio três cartas de um dos filhos do casal, António Quadros, com destino à Fundação do seu nome, que as minhas ligações intelectuais e artísticas mais fortes se estabelecem com o Modernismo e movimentos conexos. Uma delas, criou-a precisamente António Quadros, quer com a sua presença amistosa, na casa de Cascais, onde tive o gosto de o conhecer pessoalmente, quer com os seus livros, em especial sobre modernistas. A ação desenvolvida em nós por relações destas não se circunscreve à hora de apresentação ou visionamento, nem aos dias de leitura: ela penetra e perdura em nós muito tempo. Assim a Semana de Arte Moderna de São Paulo não se cingiu aos dias 11-18 de Fevereiro de 1922: o seu espírito já vinha da própria vontade de alguns artistas brasileiros, de outras partes do mundo, e durará para além de hoje.

É num ambiente esfuziante de alegria, provocador das mentalidades tacanhas, que o casal é recebido pelos artistas organizadores e participantes do evento, isto ao longo de vários meses, não apenas em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e outras cidades do Brasil. Uma peça de teatro de António Ferro, Mar Alto, andava pelos palcos brasileiros, acompanhada por conferências do autor e declamação de poemas de Fernanda de Castro. Ocasião excelente para travar novos conhecimentos e permutar experiências, quer do lado português, quer brasileiro. Porém acredito que a principal repercussão no casal de escritores portugueses, e portanto em Portugal, desta longa semana de arte, tenha sido um fruto humaníssimo em carne e osso. Eles tinham casado por procuração, estava António Ferro no Brasil, onde chegara uns três meses depois da Semana de Arte Moderna. Foi sua testemunha um herói futurista, bem integrado na épica urbana da velocidade e do progresso, Gago Coutinho. O Brasil homenageava o audaz piloto que, com Sacadura Cabral, acabava de realizar a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, integrada, como a Semana de Arte Moderna de São Paulo, nas comemorações do I Centenário da Independência do Brasil. Fernanda de Castro partiu então ao encontro do marido, e logo nos primeiros meses de vida conjugal geraram o menino que viria a nascer em Lisboa a 14 de Julho de 1923: António Quadros, seu primeiro filho.

Como se sabe, o grito de Ipiranga nas artes lusas foi soltado, oficialmente, em 1915, com a publicação da revista Orpheu, editada por António Ferro. A Semana de Arte Moderna de São Paulo tem na Orpheu algumas das suas raízes, pois a revista foi concebida como ponte entre os dois países. Daí ter dois diretores, Luís de Montalvor em Portugal e Ronald de Carvalho no Brasil. Com os seus dezoito anos à época, António Ferro foi escolhido para editor por ser menor de idade, e por isso «irresponsável», como eles gostam de reafirmar – óbvia provocação à caduca responsabilidade académica, atacada por Almada Negreiros no Manifesto anti-Dantas. Aliás a atitude provocatória e desafiadora mantinha-se no comportamento social dos artistas da modernidade no Brasil de 1922. Por isso mesmo Fernanda de Castro foi aclamada «Rainha da Semana de Arte Moderna»: por se ter apresentado suja de lama, de meias rotas, vestido escandalosamente encolhido pela chuva até acima do joelho, na sequência de um acidente de automóvel. Feitos acrescidos à missão de declamar poemas em casa de D. Olívia Penteado, senhora riquíssima e chiquérrima, famosa por no seu jardim funcionar o que então se designava por «primeira Academia Livre de São Paulo». Isto conta Fernanda de Castro no primeiro volume das suas Memórias, o que mostra o poder da Academia de D. Olívia Penteado: ao proclamarem Fernanda de Castro «Rainha da Semana de Arte Moderna», os artistas presentes proclamavam ao mesmo tempo que há semanas com muito mais de sete dias. Por algum motivo eles se consideravam os relógios do futuro, e gritavam que era a Hora! - Hora presente, de ação contra as vaias dos defensores da arte convencional.

António Ferro participou na Semana de Arte Moderna de modos variados, pelas relações de amizade que já tinha e criou depois com os artistas brasileiros e por ter colaborado na revista Klaxon, publicada pela Semana de Arte Moderna. No número 3 podemos ler o seu texto Nós, ou, de forma talvez mais acessível, no volume Intervenção Modernista, que colige umas dezenas de trabalhos seus. Nós é qualquer coisa como um sketch para teatro, com duas personagens, «Eu» e a «Multidão».

Outros contributos para a implantação do Modernismo no Brasil resultam das suas conferências, levadas ao Rio de Janeiro, a Belo Horizonte, ao Teatro Municipal de São Paulo e a mais auditórios. A atuação de António Ferro, recebido em especial como autor de Leviana, uma inovadora novela em fragmentos, e sobretudo as suas palavras, traziam a febre e o frenesi do futurismo: «A idade do Jazz-band» teve lugar a 12 de Setembro no Teatro Municipal de São Paulo, com apresentação de Guilherme de Almeida, e no Trianon do Rio de Janeiro, com apresentação de Ronald de Carvalho.

O jazz era a grande descoberta da Europa, e sobretudo de Paris, o que significa, mais uma vez, que a arte é feita de relações, de dádivas e de recepções, pois trata-se do contributo afro-americano para o estabelecimento da modernidade, o que aliás ainda não aconteceu por completo. Os movimentos mais renovadores da arte ainda esbarram com uma mentalidade rural que sobrevive nas populações de todos os países, mais sintonizadas com os paradigmas da representação, o que quer dizer, em termos singelos, que a maior parte das pessoas só é sensível a práticas estéticas realistas e românticas. No Brasil, invoca-se o parnasianismo como principal baluarte da arte académica, em guerra contra os modernos.

Os artistas da Semana de Arte Moderna (tal como os de hoje) foram por isso aplaudidos e zurrados, convidados a internarem-se nos hospícios para doidos, e António Ferro não escapou aos varapaus. Era muito jovem ainda, muito empolgado, muito provocador, não só nas palavras como na encenação das conferências: «A idade do jazz-band», por exemplo, era interrompida aqui e ali por trechos de jazz e terminou, como o conferencista solicitava em remate de texto, com um solo de tambor. «A arte de bem morrer», quando foi proferida em São Paulo, em Dezembro de 1922, teve apresentação de Menotti del Picchia.

As melhores recordações que Fernanda de Castro guarda das várias visitas ao Brasil são as relativas à «semana revolucionária», como ela mesma escreve. Foi pintada pelos pintores modernistas do Brasil, criou no Brasil novas amizades, foi no Brasil que passou a lua de mel, acontecimentos realmente inesquecíveis, de que fala nas Cartas para além do tempo e sobretudo nos livros de Memórias. É através dela que apresento o documento oficial de recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo, redigido por António Ferro. Delego por isso em Fernanda de Castro o epílogo deste depoimento.

 

Eis o que o António escreveu a propósito desta memorável semana:

«Graça Aranha, na Tribuna do Teatro Municipal, proclamava a independência da Literatura Brasileira, os direitos do Escritor. Iniciava-se a semana da Arte Moderna de São Paulo, semana Revolucionária, à qual se seguiu uma verdadeira época de terror, no mundo das ideias feitas; Mário de Andrade vestiu-se de Arlequim na sua Pauliceia Desvairada. Oswald de Andrade, papão de burgueses, manifestava os primeiros apetites da sua antropofagia. Menotti tinha acabado de pintar, de modelar, de orquestrar o seu Juca Mulato. Cassiano Ricardo sonhava já com o seu Martim Cerêrê. Joca Tatu acabava de nascer, de ser dado à luz no Urupés, de Monteiro Lobato. E até a Poesia do meu querido Guilherme de Almeida, admirável retrato lírico do Brasil, se encontrava em rebelião contra si própria, desencaminhada, tresnoitada virando boémia [...j.»

«Foi neste acampamento revolucionário, neste Far-West de imagens que desembarquei certo dia, atraído por esse empolgante barulho, por essas pistolas, esses bacamartes que disparavam estrelas! Com um Jazz-Band inteiro na malinha de mão, com o meu escandaloso Mar Alto, menos peça de teatro do que peça de artilharia, fui logo festivamente recebido pelos meus camaradas de São Paulo, pelos cow-boys do planalto, tanto mais que vinha colaborar alegremente na sua algazarra, na sua gritaria, aumentar a confusão geral.

«Fazendo ruído, assaltando reputações frágeis que passavam ao nosso alcance, vivi quatro meses com esses bons companheiros, numa camaradagem íntima de todas as horas, numa boémia de espírito que nunca mais esqueço.»

Fernanda de Castro, Ao fim da memória, pp. 184-185

   
  RELEITURAS
 

Fernanda de Castro, Ao fim da memória. Memórias (1906-1939). Portugal, Editorial Verbo, 1986.

Fernanda de Castro, Cartas para além do tempo. Portugal, Europress, 1990.

António Ferro, Obras de António Ferro. I - Intervenção Modernista. Portugal, Editorial Verbo, 1987.

 
 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.

 

 

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