REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

CARLOS FELIPE MOISÉS

O TEATRO E O ATENEU:
Breve introdução à poesia de Floriano Martins

Texto lido no Centro Cultural São Paulo, em 1997, antecedendo uma leitura de poemas de Floriano Martins.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Para muita gente, poesia não se explica, poesia existe para ser lida, ouvida, cantada, e tem a finalidade de emocionar, comover as pessoas. Para os adeptos dessa concepção, explicar, analisar ou interpretar seria perda de tempo. Pior, seria um desvio, uma distorção: ao tentar explicar o poema, eu corro o risco de bloquear minha capacidade de comoção, reduzo-me à fria racionalidade e me faço impermeável à poesia.

Esta é uma crença antiga e parte da convicção de que a linguagem poética é a linguagem da vibração e do entusiasmo, não a do arrazoado lógico-explicativo. O poeta, por algum meio misterioso, que desconhecemos, injeta no seu poema uma carga intensa de entusiasmo; ao ler, ao ouvir ou cantar o poema, nos deixamos contagiar por entusiasmo equivalente e nos entusiasmamos também, desde que não tenhamos a pretensão de explicar, porque se isso acontecer não haverá entusiasmo algum, nem no poema nem em nós.

Esta é de fato uma concepção muito antiga. No Íon, Platão afirma que o entusiasmo está na origem da poesia. E o que vem a ser, afinal, “entusiasmo”? A palavra é formada do sufixo “in”, que indica movimento para dentro, e “teos”, raiz que significa “deus”. Estar entusiasmado quer dizer, então, “estar com um deus dentro”. Mas não precisamos, nem devemos, eu acho, tomá-lo ao pé da letra. Podemos ver aí uma metáfora.

Entusiasmo seria aquele estado de espírito, quase sempre súbito e passageiro (quando não induzido artificialmente), graças ao qual nos elevamos ou temos a ilusão de nos elevar acima da banalidade do cotidiano. Quando nos entusiasmamos, nossa percepção se torna mais ágil e aguçada, nossos horizontes se ampliam a dimensões insuspeitadas, a realidade como um todo se ilumina – ou pelo menos assim nos parece, no breve instante que dura o entusiasmo. Mas logo depois voltamos à mesmice do dia a dia.

Sugiro recuar um pouco às fontes dessa concepção. Os gregos antigos mantinham, na Acrópole, um teatro dedicado a Dioniso, onde as pessoas se reuniam para experimentar coletivamente o entusiasmo poético: cantos em louvor e celebração da vida intensa e absoluta, expressa em poesia. Mas os mesmos gregos tinham também, fora da Acrópole, o ateneu, casa de estudo, onde público e poetas se reuniam não para a celebração, mas para a explicação, a compreensão da poesia.

Teatro e Ateneu correspondem, portanto, a dois caminhos possíveis de convívio com a poesia, que os atenienses nos legaram: a celebração dionisíaca e o estudo. E esses dois caminhos continuam a ser percorridos até hoje, alternando-se ao longo da história a predominância e a hegemonia de um ou outro, sendo que a adoção radical e ortodoxa do primeiro implica a exclusão do segundo, e vice-versa.

Mas não estou interessado nos gregos antigos, e sim em nós mesmos, na nossa época. Estou interessado em saber como procedemos nós, hoje, em relação à poesia. Neste nosso tempo, qual dos dois caminhos antigos prevalece? Por exemplo, este espaço que hoje ocupamos aqui, esta noite, no Centro Cultural São Paulo, está mais para o teatro ou mais para o ateneu? Estamos aqui reunidos para ouvir nossos poetas e para celebrar poesia, nesta espécie de êxtase breve, embora intenso, proporcionado pelo poema? Ou estamos aqui para estudar poesia, para aplicar ao poema nosso esforço racional-explicativo?

Pois bem, não tenho a pretensão de responder à pergunta. E também não estou interessado na questão, em si, da oposição milenar entre o Teatro e o Ateneu. Se comecei tocando neste ponto é porque aí reside, a meu ver, a questão fundamental levantada pela poesia de Floriano Martins.

Uma das marcas fortes dessa poesia é a sua fogosidade, a linguagem concebida como jorro impetuoso, fluxo abundante sobretudo de imagens e associações livres. Ou seja, Floriano Martins nos coloca diante do entusiasmo de que eu vinha falando. Se o leitor não estiver premeditadamente à procura de significados lógicos, é provável que se deixe contagiar pela estranha vibração da espécie de magma verbal que forma os seus poemas e sinta, de alguma forma, a intensidade das sensações que sua linguagem vai criando e arrastando e recriando, nesse mesmo arrastar interminável.

Vejamos um exemplo, o fragmento n° 3 do longo poema, intitulado “Telas no porão”, da coletanea Aula de Pintura: 

De que são tuas palavras recortadas em tábuas? De que é tua língua que chove e molha-me os olhos que te buscam? De que são tuas páginas escritas enquanto chove e parece ser noite? De que são os monstros talhados por teu silêncio? De que é a realidade? De que são a pele, o fósforo da imagem, o material de perdas, as falsas pistas, o golpe errante, o rol de súplicas da linguagem para que a imitemos até que não mais se reconheça em si? De que é tua herança entre traças? De que são tuas folhas em repouso? De que é a realidade? De que são os livros que nos deixam fora de tudo? De que é a volúpia que toca teu seio e derrama-se por toda a noite? De que são os números de tua desordem? De que é o esplendor de tua memória, incubo ridente em sua dança? De que são teus poemas extintos, tuas sombras raptadas, os diálogos entre fantasmas, as baladas do peregrino, teus jogos que supomos inevitáveis, tuas falhas plenas? De que é mesmo a realidade? 

Não temos a menor dificuldade em imaginar um poema como este lido ou declamado ou cantado, em louvor de Dioniso, no teatro da velha Acrópole, talvez por um coral vibrante, uma ou outra voz destacada, ponteando aqui e ali, quem sabe com acompanhamento de música e dança. Mas não nos deixemos iludir. Isso que chamei de jorro impetuoso ou magma verbal, na poesia de Floriano Martins, não tem nada de espontâneo, nada da voz inspirada que fosse vertendo para o papel, sem pensar, o fluxo incontrolado de seus versos e imagens. Se prestarmos atenção, veremos que tudo aí obedece a um secreto ritual, tudo aí decorre de uma série de expedientes técnicos, premeditados e altamente elaborados.

Primeiro, o tom interrogativo, que se mantém, sistematicamente, do início ao fim da composição. A cada pergunta (são quinze ao todo), a suspensão interrogativa só faz crescer e nada parece sequer sugerir a possibilidade de resposta. Repare-se também na sábia alternância entre perguntas breves, que ocupam um só verso, ou menos, e perguntas desdobradas, que se estendem por três, quatro ou mais versos, imprimindo ao andamento do poema uma modulação estudadamente variada e não determinada pelo acaso. Repare-se, finalmente, na articulação lógica representada pela reiteração da pergunta “Que é a realidade?”, que surge no oitavo verso, é retomada simetricamente, sem alterações, no verso décimo sexto, e retorna, como síntese aglutinadora, no último verso, com o acréscimo irônico de uma só palavra: “Que é mesmo a realidade?”.

Isto significa que, no caso de Floriano, entusiasmo não é sinônimo de inconsciência. Ao contrário, convive com a mais extrema lucidez e parece estar à procura exatamente da máxima consciência possível. Analisemos este aparente paradoxo.

Segundo a lenda, o entusiasmo, a intensidade das emoções e o furor dionisíaco do canto nos levariam a anular a consciência individual, levando-nos a mergulhar numa espécie de placenta geral, o inconsciente coletivo; nossa alma perderia seus contornos e limites imediatos, para vibrar em uníssono com a vibração exterior dos movimentos da natureza. Isto é o que diz a lenda, mas não é o que nos mostra a poesia de Floriano Martins, onde entusiasmo e consciência, emoção e razão coexistem, em instigante e paradoxal conluio. Conclusão, o “teatro” de Floriano guarda o seu tanto de “ateneu”: um se alimenta do outro.

A “prova” disso (“prova”, aqui entre aspas, com um sentido ostensivamente irônico), é que um dos temas prediletos de Floriano é a própria poesia. O poeta constantemente se interroga (e nos interroga) pelo sentido da poesia. Que é a poesia? Para que serve? Que é o poeta? São perguntas que se repõem, repetidas vezes, em seus poemas, indicando sempre dúvida, incerteza, inquietação, e necessidade de seguir interrogando, a fim de definir o fazer poético, situá-lo, antes de cumprir seus desígnios. Na Acrópole antiga, o poeta não parava para indagar a respeito da condição de poeta, porque naquela altura ninguém tinha dúvida sobre o papel da poesia no mundo. Mas no moderno teatro-ateneu suscitado por Floriano, essa certeza se dissolveu e o poeta já não sabe, ninguém sabe, com segurança, qual é o papel, qual é a função da poesia.

Por isso Floriano desfia sua inquietação a respeito, tentando sempre redefinir, para os tempos de hoje, essa função: 

O poeta é exigido por uma angústia vital: aquela do desenlace em si de uma nova transparência a partir de toda a opacidade de sua vida. Tudo nele busca o desespero iluminado das formas, sua convulsão precipitada sobre a beleza das imagens aterradoras. Refere-se o poeta sempre ao outro que ainda não conseguiram tocar suas débeis figuras. Indigente do instante e do conhecimento do mistério, concebe para si a tarefa de escrever um livro impossível: o da personificação da morte. Dissolve-se na matéria de suas metáforas, misturado à visão do livro findo inacabado. Com quem se parece o pobre poeta senão com Deus? 

Para concluir – se não, esta apresentação se estende para muito além do razoável – gostaria de destacar mais uma característica marcante da poesia de Floriano: sua ambição extrema, não propriamente estética, mas filosófica e em certo sentido ética. A poesia de Floriano Martins não está voltada para as circunstâncias, não é limitada pelos eventos históricos, não se restringe ao impulso confessional ou biográfico. Sua ambição aponta para as grandes generalizações: o Homem, o Mundo, o Ser. O esvaziamento do sentido da poesia e do poeta, no mundo moderno, não representa, para Floriano, uma questão meramente técnica ou estética. O poeta nos lembra que, neste nosso mundo, não é propriamente a poesia mas a própria vida que perdeu ou corre o risco de perder o sentido; não é o poeta que alimenta dúvidas sobre seu lugar e função no mundo, mas é o próprio ser humano que já não sabe definir o que é ser humano.

É disso, é dessa angústia radical que trata a poesia de Floriano Martins. Ao buscar um sentido para a poesia, o poeta busca, na verdade, um sentido para a condição humana em geral, inconformado com a letargia e a desumanização que vêm tomando conta do nosso dia a dia e dos nossos horizontes.

E esse sentido só poderá ser encontrado – esta me parece a meta proposta por Floriano – através da poesia. Por isso o poeta afirma que “nosso século é uma perda de sentido”; mais adiante pergunta: “O que vai nos restando então?”, e em seguida responde: “Um exercício de elipses, um diálogo com o vazio”. Por isso, também, Floriano diz: 

Caímos dentro de nós, sombrias fezes de nossa súplicas, dor de cordas entrelaçadas ligando um vazio a outro, terraço de palavras que não lhe alcançam o piso, rio de disfarces, vidro em sua água distorcida, areia que não mais revela seus rostos ao fogo, pulmão suspenso nos galhos da inquietude, todas as noites parecem estar aqui, açoitadas pelo relógio da dor, pendulares inquéritos do verso que nos debulha, até aqui viemos. 

E o poeta remata, no final do belíssimo poema “Altares do Caos”: 

Em que tempo ocorre o verso? De onde provém todo o mal da poesia? Olha a sombra, olha a dor, vê que nos assombra seu ardor. Furtivas serpentes da imagem, o milharal de suas luas. Se não tiramos do nada não é criação, disse-me a disforme criatura que há semanas pousava aos fundos de uma taberna, nu ardendo em frio. Não passa de débil visagem a arte hoje aceita, vertigem do duplo, delírio do outro anunciado. Para livrar-se de tal magia há apenas que criar.

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés nasceu em 1942. Poeta e ensaísta, autor de livros como Círculo Imperfeito (1978), Subsolo (1989) e Lição de Casa & Poemas Anteriores (1998). Também publicou O desconcerto do mundo: do Renascimento ao Surrealismo (ensaios, 2001). Entre as suas traduções destacam-se, em especial, dois livros impactantes: Tudo o que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman (1986) e O poder do mito, de Joseph Campbell & Bill Moyers (1990). Em 2000 organizou, com Álvaro Alves de Faria, a Antologia Poética da Geração de 60. Contato: carlos_moises@uol.com.br.

 

 

© Maria Estela Guedes
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