REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

RICARDO DAUNT

 

Orpheu – decantação da rebeldia:

os seguidores imediatos

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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O assunto é polêmico. E por inúmeras razões, haja vista que examina um terreno instável e pouco confortável; trata-se com efeito de um espaço cinzento, de interlúdio,  que já vitimou inúmeros críticos (e talvez uma geração deles) em diversas ocasiões e que legou sobretudo autores desajustados ao entreato das verdades chãs e fáceis, a esperar por uma luz adequada para examinar sua fortuna literária. Caso de Cesário Verde, com absoluta certeza.

Imediatamente devemos definir o sentido que estamos emprestando ao termo ‘seguidores’ para que tudo comece a fazer sentido.

Seguidores órficos não se confundem com os fundadores do movimento. São autores ou artistas que não tiveram suas colaborações estampadas em nenhum dos dois números epocais da revista Orpheu.

Considero, pois, seguidores órficos aqueles autores[1] que, a partir de 1915 (com publicações antes de 1915, ou não), e até o advento da revista Presença, em março de 1927, publicaram, no âmbito da ficção, da lírica, do texto de intervenção ou ensaístico, obra que de um modo ou de outro venha denotar influência órfica de qualquer matiz e intensidade. São portanto considerados imediatos porque não esperaram a natural acomodação dos ismos órficos. Aderiram, mesmo que em parte, mesmo que em mínima parte, àquelas grandes linhas estéticas que o movimento do Orpheu assinalou[2]. Assim, não levo em consideração o grau de fidelidade do autor, expresso por seu percurso literário ou artístico após 1915, nem antes --, busco apenas apontar a ocorrência, mesmo que pontual e fortuita, de um e outro traço órfico na produção édita desse ou daquele autor, entre as datas assinaladas.

Convém ainda observar que os textos que comparecem neste ensaio, sempre um de cada autor, têm, por assim dizer, um mero caráter antológico, pois, diga-se expressamente,  não é meu intuito propiciar ao leitor um contato com  o universo de obras de seguidores órficos, o que exigiria um novo trabalho diferente deste, com outros objetivos e proporções, mas apenas registrar nomes de autores que, no período acima demarcado, e a partir de textos arbitrariamente selecionados, comprovaram haver aderido, mesmo que provisória e eventualmente, a um ou mais programas de arte órficos. 

O primeiro nome que gostaría de assinalar, iniciando assim o rol de seguidores órficos, é Fernando Carvalho Mourão cujo poema "Sepultado", dedicado a Antero de Quental, acusa, já no primeiro verso, indícios de alguma influência da lógica do paulismo à Sá-Carneiro, embora por detrás desta ressaltem, muito vibrantes e em todo o poema, semelhanças com  Florbela Espanca (mesmo que fortuitas) – e, claro está, influências também do próprio Antero: 

Houve palácios dentro em mim, quando eu

Erguia os braços para Deus e via

O olhar do próprio deus, formando o céu

Azul, daquele azul que canta o Dia!

 

Mas quando veio ao mundo a Noite Escura

Os meus olhos cerraram-se... ceguei,

E vi como era negra a Desventura

Que em voo etéreo e louco abandonei!

 

Inda quis procurar dentro de mim

A porta dos dragões, mas o jardim

Tinha-se transformado num deserto...

 

Os palácios, agora confundidos,

Tombaram todos sobre os meus sentidos,

E, sob as ruínas, despertei do Incerto![3] 

A alterização e uma sensibilidade semelhante àquela de Sá-Carneiro estão presentes nos versos abaixo de Américo Cortes Pinto que, contudo, deixam-se impregnar totalmente pelo idealismo religioso característico dos poetas saudosistas, o que resulta no estiolamento do vertedouro modernista[4]

Romeiros de Ideal

Meus gestos peregrinos se exilaram...

Tiniram luz em longes de cristal

E em espelhos de mentira se espelharam..

 

Contrito,

Minha alma traz Jesus-Crucificado!

Senhor meu Deus! O meu desejo em grito

Cegou de luz meus olhos de abismado...

 

Orgulhos e vaidades que eu ergui

Caíram de tão alto aos pés de ti,

Jesus!

 

Senhor! Senhor! Tua presença em mim

Quebrou-me as altas Torres-de-Marfim

Em estilhaços de luz![5] 

 

Cortes Pinto  ainda mais se fasta da herança órfica  no poema "Ironia bucólica", embora  busque dessacralizar o lirismo tradicional, contrapondo ao seu temário a estesia do antilirismo, atitude modernista por excelência, debruçando-se sobre o banal e o cotidiano, alicerçada por um enunciado propositadamente coloquial e fingidamente descuidado:  

Meus bons amigos: -- o pensar é uma canseira

Que não vale para vós o esforço que a produz,

Por isso vou cantar os gados, a lareira,

O mar e a lavoura, as águas mais a luz...

 

Ides ver neste poema descuidado

Cheirando a madressilva, a terra e a maresia,

As enxadas cavando e os sulcos do arado,

E as cartas que um Manel screveu a uma Maria...

 

Para escrever canções deste feitio,

Dão-se férias à cabeça e ao nervoso,

Basta beber dum trago este ar sadio

E deixar correr a pena que é um gozo...

 

Isto não é sylva exotérica -- está dito

Mas sempre é bom fazer estes reparos -

Para os raros apenas não foi escrito,

Mas sim apenas pros que não são raros...

 

Isto é um poema feito num momento

-- E feito de propósito para vocês!

Pegai lá -- não precisais de ter talento

E basta saber ler em português[6].

Antonio Ferro foi um dos editores da revista Orpheu. Talvez o mais jovem dentre os que deram corpo à revista. Não obstante, só estrearia em 1918, com o volume poético O ritmo da paisagem[7]. Três anos depois publicaria um livro de frases, Teoria da Indiferença[8], mas é em Leviana[9] que encontramos uma forte influência proveniente em parte da produção órfica de Almada-Negreiros -- e, em grande parte, fruto de um contato com a prosa de ficção desse autor, entretanto pós-órfica, ou seja, de um contato com aquelas obras posteriores ao advento de Portugal Futurista, caso da novela A engomadeira (escrito em 1915 e vindo a lume dois anos depois), bem como do conto "O cágado" (que foi impresso em 1921).

Assim, em Leviana iremos revisitar o coloquialismo de Almada, sua desmistificação escritural, vários outros expedientes narrativos seus (mormente aqueles que não revelam sua aproximação do futurismo), como  o comentarismo (com suas frequentes interposições de matéria opinativa ou de sentido moral, em meio ao entretecer ficcional) e o fragmentarismo, numa disputa sempre acirrada contra a convenção social, em que se serve do jogo de palavras e de uma propensão para o absurdo (esta, sim, originada na adesão ao programa futurista). Um trecho da novela de Antonio Ferro, mesmo porque reproduzi-la na íntegra não seria possível, pode  ilustrar, em parte, o que dizemos:  

A Leviana falava muito. Inundava-me de palavras, de risos, de gestos. Tinha guizos na alma. A sua boca era um baile de máscaras, um baile de máscaras torpe onde as palavras, em tangos histéricos, caíam, umas sobre as outras, bêbadas, às gargalhadas...

Toda ela era movimento. A sua presença, mesmo quando não falava, era um grito. O seu sorriso era uma falena de asas salpicadas que, em voo sobre o seu corpo, ora descansava na papoila sangrenta dos seus lábios, ora  no  salgueiral  das sobrancelhas a marginar-lhe os olhos, ora nos solitários dos seus dedos... As suas palavras caíam sobre o meu tédio como uma chuva miudinha, a refrescá-lo. A sua alegria era um pombal na Hora-Asa em que as pombas abalam para o céu...

[...]

A Leviana tinha um grande desprezo pela minha arte: "Sabesfazer versos? Melhor era que aprendesses a dançar." Esse desprezo, longe de magoar o meu orgulho, lisonjeava-o. As mulheres que têm relampejado na minha vida, devo-as aos meus versos, esses versos de que eu não tenho a responsabilidade, que vivem hospedados na minha alma, como boêmios numa trapeira. Só a Leviana gostou de mim  sem os meus versos que foram, para ela os meus únicos defeitos, que são, na verdade, os meus únicos defeitos... A Leviana nunca me tomou a sério, eu nunca tomei a sério a Levina. No entanto, as nossas bocas abriam-se para rir e fechavam-se num beijo[10]. 

A sensibilidade de Sá-Carneiro parece haver influenciado Salema Vaz, conquanto o poeta não se defina claramente por um dos inúmeros ismos, com suas combinações e derivações, preferindo, em "Marcas, olhando os dedos nus", a difícil lição de combinar a veia ainda do ultrarromantismo com a sensibilidade decadente que diretamente herdou:

 

Heráldicas safiras, que vos fiz?

Esmeraldas d'esperança, onde vos pus?

De astrais brilhantes, que é da casta luz?

E onde sangrais, meus bélicos rubis? 

 

Perdi-vos para sempre! A sorte o quis!

Choram por vós meus pobres dedos nus...

Como um vitral precioso nos seduz

De Laura o lácteo corpo onde fulgis!

 

Tudo o que eu tinha, Amor, tudo te dei.

Sou pobre como Job e como um Rei

Fui pródigo de bens e d"Honrarias!...

 

Hoje... ai de mim!... Quisera reaver

Meu coração, que tu levaste, a arder,

Por entre coruscantes pedrarias![11] 

O longo poema sensacionista-interseccionista-futurista "Manucure", de Sá-Carneiro, terá sido, muito provavelmente, um dos modelos, se não o principal,  que  Fortunato Velez tomou de empréstimo para compor a estridente melodia antilírica, de vozes e ruídos citadinos, tecido esse que vai urdir o poema "Paris de França; excerto de Paris movimento e cor": 

 

Que raiva! tanta gente

emerva! Mais ainda: encoleriza, enfarta!

 

Vá mais depressa! passe...

Não passa! Um raio a parta!

Ora o estupor da velha, aqui a pisar ovos!

................................................................................

Não compro! Não me mace!

-- Clemenceaus com movimento...

Que tal está o do invento! -

.................................................................................

E a pescar rapazes novos...

Croia velha! Canastrão!

 

"L'Intran...sigeant..."

 

Quatro"sous"! Ora o ladrão!

Vê-se bem que sou estrangeiro...

 

E esta! Sempre a esbarrar com "poilus"!

Vitrines de latão com trapos de cem cores...

Apliquem-lhe o letreiro:

 

TARTARINS  METRALHADORES

COM QUATRO ANOS DE  CAÇA,

QUEREM SER  ADMIRADOS

POR TODA A GENTE QUE PASSA.

 

Nanja eu que os admire.

....................................................................................

"Viens..."

....................................................................................

Qual "viens" nem meio "viens", deixa-te disso!

...................................................................................

E as luzes do boulevard,

via-láctea burguesa

de lamparinas a par!

 

E o Louvre a evocar uma tragédia obscura...

-- Lupanar dos Valois

com exposição de pintura! -

 

"Oh! pardon Monsieur..."

 

Arre que é bruto!

Não se pode parar ao pé desta canalha!

 

 

A tal senhora de luto

lá foi sentar-se agora no Café...

 

-- Aquele velho no Braibant, não falha! --

Vamos lá sentar também

para ver como isto é.

.............................................................................

"Garçon, vite!"

 

A beberagem não presta,

e a madame... "Je m'en vais".

 

Gosta mais de Americanos,

os tais soldados guerreiros

da marca U. S. A.

Os Sem-Pavor das máquinas Smith,

Cavaleiros da Ordem do Guindaste

que vai estendendo o braço para cá.

..................................................................................

 Zut! Zut!

o "autobus"

apesar da ligeireza

faz um garulho infame de Babel!

Mas digam lá com franqueza,

- se isso é coisa que lhes sobra --

daqui, não les parece a torre Eiffel

um exemplar de ferro e aço em obra?

 

Também pode lembrar

um monstruoso A sobre alveneis

realizando a forma

dum grande pesa-papeis.

.................................................................................

"Oh c'est rigolot!"

-- Um árabe a passar de manto e de turbante. -

..................................................................................

"C'est rigolot..." a dona sirigaita

nada conhece além do paletot.

Julga que o mundo é a França ou é farsante.

 

Odeio tudo isto! É bem de ver,

se já não tenho na algibeira um "sou"

nem um cigarro!

 

Oh Portugal! Café Martinho! Oh Tu!...

 

Que horrível ditadura esta "purée"!

Agonizo no sonho e no bulício...

Escorreu-me a sorte sem deixar resquício!

 

Entro na sombra enfim do Chatelet.

.....................................................................................

Do Chatelet!...[12]

 

Não teríamos ouvido em algumas passagens ecos do turbilhão parisiense que Laforgue registrou assim propiciando que Sá-Carneiro também o fizesse em "Manucure"? 

No mesmo ano de 1922, Castelão D'Almeida publica "Canção rubra", de um lirismo sensacionista que em vertigem labora na direção da fragmentação do eu, e explora a alteridade e a inconsciência, para finalmente se revelar como um ser de excessão, semelhante ao que já antecipara o sujeito lírico de muitos dos poemas de Mário de Sá-Carneiro, vindo esse autor, inclusive, a explorar muitos dos estilemas cardosianos, sua atração pela ambientação exótica, pelo tema da loucura, pela outridade (e como no poeta órfico, circunvagando sobre uma percepção difusa e percuciente de uma singularidade humana, pessoal, a ser decifrada e acolhida).

De um longo poema de Castelo D'Almeida, registramos alguns trechos ilustrativos.  

 

Vibra a pandeireta em contorções lascivas.

Em requebros fulvos, curvas sucessivas.

Bailarinas nuas arabescamente,

Num cantar dolente

Todo rendilhado em movimentos mágicos,

Têm amargos trágicos

No enrugar das bocas.

Bailarinas loucas, bailarinas loucas,

Com sapateados no mourisco pátio.

 

[...]

 

Silêncio sepulcral. Alheamento

Do meu pensamento

Das coisas naturais.

Ouço as passadas imateriais

Da multidão silenciosa.

Nos lábios brancos da vaporosa,

 

Etérea  bailarina,

Pôs nódoas negras a nicotina.

 

Não existo por mim, nem para mim:

Tenho alma de Arlequim.

Serpentinas de fogo, azul-violetas,

Adejam sobre mim quais borboletas

Sugando-me a razão de ser Alguém.

 

Beijos perdidos no anseio do Além;

Alma perdida no Vago.

Lágrimas caem no mistério mago

Da face estoica. Esfíngico martírio!...

 

Adoro as espirais do meu delírio:

Nas asas do seu doido espiralar,

Estou dentro de mim, sem me alcançar.

 

Fox trot infernal;  destrambelhados

Sons de violinos maguados;

Contatos sensuais da minha carne virgem

Com as filhas sanguíneas da vertigem.

 

[...]

 

Esqueço tudo ao querer lembar-me tudo;

Apenas tenho braços como escudo.

 

[...]

 

Eu, já não sinto o bulício

Da loucura humana:

Todo Eu sou um Outro, que se irmana

Comigo em negra inconsciência.

Brilha em meus olhos a fosforescência

Do cadáver do meu Eu.

O coração adormeceu.

 

[...]

 

Meus irmãos; eu sou o Singular,

O Imperfeito, o Ímpar, o Sem-par;

O Vagabundo, o Peregrino;

O que nasceu sem Destino...

Eu sou a noite dum sonho;

Nem de mim próprio disponho

[...][13]. 

 

Em 1923, Bruges D'Oliveira publica o poema "Duas canções". A  plasticidade  pictural  dos primeiros versos,  em que os substantivos "luar", "rua", "céu" e "olhar" se interpenetram, fundindo planos espaciais e induzindo um novo sentido antinatural ao quadro, ilustra uma vez mais o fato de o simultaneísmo e o interseccionismo serem membros diferentes mas de uma mesma família.

 

I 

O luar inunda a rua

E a mim inunda-me o luar:

A rua o luar da lua

E a mim a do teu olhar.

 

Então, minha alma estremece!

E eu não sei, Aluz do luar,

Se é do céu que o luar desce,

Ou sobe do teu olhar...

 

II 

Nesta ausência e nesta dor,

Ó bem do meu coração,

Mais do que amor, este amor,

É uma religião.

 

Creio em ti, ó rosa triste.

Como um cristão quando crê

Em Deus, que sabe que existe

Mas no entanto não vê...[14] 

 

No início de 1924, Adelino de Palma Carlos imprime, em um número de Alma Nova, o poema "Ascensão", em que lampejos do léxico interseccionista de Sá-Carneiro aparecem aqui e ali ("sinto que beijo a ânsia doutro beijo"; "olhos-auroras"; "preces ruivas"): 

Creditam beijos, delirantes, vagos,

Na doida orquestração do meu desejo...

E quando beijo os teus cabelos magos

Sinto que veijo a ânsia doutro beijo...

 

Agora cresce a ronda dos afagos,

Vagos e Magos -- Triunfal cortejo!

E teus olhos-auroras são dois lagos

Onde se espelha o teu amor, sem pejo!...

 

Hóstia de carne, alçada nos meus braços.

Num ritual bizarro, em que os abraços

São preces ruivas de missal antigo,

 

Ergo-te assim numa ascensão de glória,

E o nosso amor é grito de vitória

Nos meus lábios famintos de mendigo!...[15] 

José Castelo de Morais imprime "Névoa"[16], também em 1924, poema em prosa. Sua sensibilidade é tributária em parte das correntes preparatórias do modernismo, a elas acrescentando um tom alucinatório que comunica ligeiramente com o vertigismo dislexical de Raul Leal, uma de suas influência no âmbito do Orpheu e concomitantemente impregnado, ele também, de estilemas cardosianos, e de modo muito evidente, e. g.: "Na sombra do meu Hoje vi a minha alma antiga como um farrapo de seda, todo vincado ainda a oiro de brosladuras"[17], ou adiante, "sonho heráldico vincado a ouro e glória, fugia-me, subia [...]. Gêmeas da minha ânsia eram agora as árvores bracejando na bruma negras". Castelo de Morais, ainda, explora as palavras em maiúsculas, de origem símbolo-paúlicas, as correspondências horizontais e a alterização, procedimentos visitados pelos órficos. 

Manuel de Souza Mendes Pinheiro, que utilizava o pseudônimo de Gil Vaz, traz a lume, no mesmo ano, 'Quatro sonetos' onde o ser depara às vezes a inexequibilidade da relação amorosa, como em "Redoma", em que entre os amantes "pesa o silêncio como nuvem densa" e "o medo se levanta", prenunciando um dos  topoi da lírica moderna: a incomunicabilidade; outras, como em "Amor",  a entrega é um vórtice onde os amantes se afogam como náufragos; nesses momentos Gil Vaz resvala pelo ultrarromantismo. Será contudo com "Espectros", outro poema incluído nesse quarteto, que o autor visitará, conquanto sem persistência, o sensacionismo de matiz semelhante ao de Sá-Carneiro:

 

Inundam-se os meus olhos, onde mora

A tua sombra esfíngica de ausente,

E o teu sangue do teu  sangue me devora

Este corpo em delírio eternamente.

 

No céu azul o sol é uma espora

D'oiro rútilo; e sabe toda a gente

Como o tempo galopa sem demora,

E o coração, que o acompanha, sente.

 

O tempo foge, alguma coisa fica

Que nos vem perturbar de quando em quando

Como um perfume de madeira rica.

 

Cego que foste, és hoje cinza e Deus;

E, ao lembrar os teus olhos, vou lembrando

As cegueiras que pairam sobre os meus![18] 

 

Mário Saa, sempre em 1924, estampa 2 poemas na revista Athena, dentre os quais destacamos "Versos frios", 27 quadras que recordam o coloquialismo conceitualista almadiano, com a consequente desliricização e banalização do poema. Um trecho: 

 

Todo o retrato pintado

é pra nós uma visão,

que pode ser ilusão

no caso de o retratado

 

não ser de nós conhecido;

que, quando a gente o cohece,

o seu  retrato aparece

como um retrato obtido.

 

Mas se a gente nunca o viu,

sobre o retrato tecemos

uma coisa que não vemos,

que pra nós nunca existiu.

 

Deste modo o retratado

é um vulto pressentido

mas nunca por nós sentido;

portanto pra nós errado;

 

que pode ser verdadeiro

ou coisa nunca existente

um nada que de repente

existisse por inteiro;

 

um nada que nos surgisse,

que a gente visse e não viu,

um vulto que se sumiu

e nunca mais se sumisse(..)[19] 

Gil Vaz realizará, contudo, no soneto "Inverno", publicado em 1926, uma mais bem sucedida aproximação com Orpheu, explorando aí a estesia da anulação do eu, cuja consciência se dissipa no esquecimento pleno. Ademais,, eis o leitor diante novamente de um discípulo de Mário de Sá-Carneiro, cuja influência fica muito nítida nos versos dos dois tercetos:

 

Os calendários mentem! Afinal

Tudo morreu... E a dança de S. Vito,

Dos ramos nus, fez-te soltar um grito

Que vibrando varou todo o cristal.

 

Tens surpresas, és muito desigual.

Ninguém me vê alegre nem aflito:

Indiferente, apenas acredito

Que tudo nesta vida é natural.

 

Já me não prende a mais festiva palma.

São manequins os sonhos que desmembro

E se dissipam nesta fria calma.

 

Dia de crepes, luto de Novembro...

O fim do mundo, aqui, na minha alma.

-- Já não devo sofrer porque não lembro![20] 

 

Por último, assinalamos o poema "A cor dos sons", de Judith Teixeira, impresso na Contemporânea em maio de 1926. Nele a autora acolhe a máxima pessoana que defende que "a base de toda arte é a sensação"[21]. Mesmo embalada por este mote, a lira da autora congemina rimas óbvias e descamba para um tom rebarbativo de pieguismo amoroso. Registremos, apesar disso, alguns versos: 

 

Só ontem surpreendi

a cor dos sons

Enquanto eu dançava,

leve, grácil, turbada e radiosa

na tua face gloriosa

acendiam-se flamas dos mais vivos tons!

 

Recordo-me de notas tão ardentes

como flavas abelhas,

Tão rúbidas e escarlates

que as curvas airosas dos meus longos braços

lembravam-me açafates

de rosas vermelhas!

 

 

Os violinos subiam

crispando queixas

(..)

 

E em redor tombava, roxamente,

a cor arrefecida

do cinzento rosmaninho

algente e maguada...

A tua cabeça heráldica

pendia

numa saudade esguia,

estilizada!

 

Findara tudo...

Saímos

muito enlaçadas

[...].

 

Depois, no silêncio morno

da minha alcova,

as minhas mãos trêmulas e nuas,

perdidamente presas às tuas,

... luarentas e alongadas.

[...][22]. 

 

Já no desfecho deste ensaio, havendo arrolado pouco mais de uma dezena de nomes, -- na maioria das vezes, convenhamos, eventuais visitantes da lira órfica --  podemos de imediato concluir que o Orpheu não ecoou, nos anos que se seguiram a sua desmobilização, tão fortemente como parecia vocacionado.

Isso se deveu a vários fatores. O primeiro deles diz respeito às mortes trágicas de inúmeros integrantes, de capital importância para o sucesso do movimento, como Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Souza-Cardoso. O segundo diz respeito ao fato que seus grandes mentores remanescentes, como Almada e Pessoa, tomaram caminhos diversos. O último, depusera notoriamente suas armas após a morte do melhor amigo e se voltava para a construção e organização de sua poderosa obra poética. Almada-Negreiros, na posição de último porta-voz do Orpheu, embora impetuoso e de personalidade cintilante, estava absorvido pelo Futurismo; sua obra seguia caminho diverso da de Fernando Pessoa, com quem poderia unir forças. Há ainda um terceiro fato e que diz respeito à evicção quase que imediata, e em massa, dos demais membros do movimento, logo após a iminente descontinuidade da publicação da revista Orpheu: faltavam forças de aglutinação para manter orfistas unidos que, em decorrência disso, ou apesar disso, demandavam rumos literários menos revolucionários e combativos. Claro está que o suicídio de Mário de Sá-Carneiro se insere na historiografia do Orpheu como um trágico divisor de águas. Depois de sua morte, a voz mais evidentemente moderna, cujos relevos estéticos, em vista da forte exposição do sujeito lírico ao feroz jogo em que se debatiam seu mundo sentimental, de um lado, e o manejo formal para além dos padrões costumeiros do signo poético, de outro, essa voz deixa de se manifestar (mas seus efeitos perdurarão).

 Ao relermos estas páginas -- e convidamos o leitor a fazê-lo --, é possível facilmente constatar em que medida Sá-Carneiro fora a referência imediata mais incisiva do movimento no processo de rescaldo que se seguiu imediatamente após seu passamento -- e a explicação para esse fato é simples: a estesia de Mário era a que possuía os mais claros relevos para o olhar menos treinado do aprendiz de modernidade, o que não resulta em acréscimo a suas enormes qualidades poéticas, nem em demérito àquelas de seus pares. Aliás, da mesma forma, haveremos de concordar que a herança pessoana ocupou a cena poética portuguesa de modo mais marcante que a de seus pares a partir da década de 30 e depois, já se sabe, ganhou o mundo.

De qualquer modo, fica claro que a influência do Orpheu enquanto formador de poética se atenua muito nos primeiros anos após a interrupção da revista que abrigou sua produção, de sorte que o orfismo teve que esperar vários anos para ser analisado, compreendido e reabsorvido; mais precisamente até surgir no horizonte o movimento literário que se articularia a partir de 1927 em redor da revista Presença, movimento este dotado de um vigor ensaístico, de uma maturidade crítica e de um entusiasmo pela modernidade que seriam benéficos para a fixação definitiva do momento do Orpheu na vida artística e literária de Portugal.

   
  Notas
   
 

[

(1) Deixamos de investigar, no âmbito das artes plásticas, os eventuais seguidores do Orpheu, embora seja inegável o mérito de qualquer pesquisa que vier, no futuro, a assumir tal empreitada, de modo a fornecer subsídios adicionais sobre a herança órfica e sua influência na arte contemporânea. Desde já, sugiro vivamente que outro pesquisador das coisas do Orpheu se disponha a realizar tal tarefa. Igualmente a história literária do modernismo português e sua exegese estão a merecer um estudo de fundo sobre o destino da produção literária do grupo do Orpheu, embora tenhamos imensa quantidade de registros sobre os principais nomes do movimento.

(2) Note o leitor que mesmo indo em busca de delimitações teoricamente precisas, a escolha está sempre sujeita a risco, como de resto toda escolha. Vem-nos a lembrança dos nomes de João de Souza Tavares, João Cabral do Nascimento, Antonio Souza e Vieira de Almeida que em outro ensaio nosso (Os seguidores imediatos do movimento do Orpheu.  TriploV. Publicação eletrônica. 25/11/2008. URL: www.triplov.com/letras/ricardo_ daunt/ Seguidores-do-Orpheu/ index.html), com propósitos semelhantes ao deste, tiveram seus nomes arrolados e agora foram retirados, tendo em vista que  não há verdade pétrea em arte (e em coisa alguma), e o investigador é um sujeito passível de cometer enganos, como nesses casos, embora muitos, do alto de suas cátedras, não pensem assim. O equívoco fica reparado.

(3) MOURÃO, Fernando Carvalho -- Sepultado. Alma Nova. Faro e Lisboa, ano 1(8): 4, maio 1915. Este mesmo poeta, como frisamos anteriormente, publicaria no ano anterior um poema interseccionista, desenvolvendo um pathos seme lhante ao que predomina nos versos de Sá-Carneiro. Cf. id. -- Visão cega. A Renascença. Op. cit., p 12-3, fev. 1914.

(4) Devemos excluí-lo do rol de seguidores órficos?

(5) CORTES PINTO, Américo -- [ Romeiros do Ideal [...]]. Ícaro. Coimbra, ano 1 (1): 24, jul. 1919.

(6) Id. -- Ironia bucólica. Ícaro. Coimbra, ano 1(2): 35-6, out. 1919.

(7) FERRO, Antonio -- O ritmo da paisagem. Lisboa, s. ed., 1918.

(8) Id. -- Teoria da indiferença. 2. ed., Lisboa, H. Antunes, 1921.

(9) Id. -- Cf. Leviana. 4. ed., Lisboa, Roger Delraux, 1979. A primeira edição é 1921.

(10) Ibid., p. 13-7.

(11) VAZ, Salema -- Marcas, olhando os dedos nus. Alma Nova. Lisboa, 3. série. (2): 29, maio-jun. 1922.

(12) VELEZ, Fortunato -- Paris de França; excerto de Paris movimento e cor. Contemporânea. Lisboa, ano I, v. 1(2): 73-6, jun. 1922. No mesmo número da revista Contemporânea vamos encontrar, dentre outras colaborações, ainda um poema de José Bruges D'Oliveira, "Canção" (p. 52), mergulhado todavia no lirismo sentimental, ao lado de "Fim" (p.59), de Judith Teixeira e de "O lord" (p. 54), poema  publicado  post mortem, de Mário de Sá-Carneiro.  Bruges  D'Oliveira dará prova convincente de adesão ao  orfismo  só um  pouco mais tarde,  como veremos.  Judith Teixeira, ao contrário, já  agora dá mostras  de haver  compre-endido a  mensagem  de  desencanto e sensibilidade exacerbada, legada pelos órficos, num poema em que a náusea da guerra (“Asa
negra")  e a opiomania são as duas faces da contradição existencial. A última quadra do poema é sugestiva solução de linhagem simbolista: a sensação de dor se converte em sensação de som e cor.

 

Asa negra que esvoaça...

Negros dias ensombrados!

Roubaram-me toda a graça

aos meus olhos macerados.

 

Nevrótica, fim de raça...

Os meus nervos delicados

vão sucumbindo `a desgraça

dos tristes degenerados.

 

Trago nos nervos a morte!

Sou uma sombra em recorte

de tristeza e de ruína...

 

Virou dentro em mim a dor...

Só lhe perco o som e a cor

em orgias de morfina!

(13) CASTELÃO D'ALMEIDA -- Canção rubra. Contemporânea. Lisboa, ano I, v. 2 (1o. número especial): 31-3, natal de 1922.

(14) BRUGES D'OLIVEIRA -- Duas canções. Contemporânea. Lisboa, ano I, v. 3 (7): 16, jan. 1923.

(15) PALMA CARLOS, Adelino da -- Ascensão.  Alma Nova. Lisboa, v. 2, 3 série (13-5): 12, jan.-mar. 1924.

(16) MORAES, Castelo de -- Névoa. Athena. Lisboa, v. 1 (2): 65-7, nov. 1924. O mesmo poema, dedicado a Fernando Pessoa, seria estampado em Orpheu 3, anos antes, mas já se sabe que esse número não saiu à época. Portanto o mencionado trabalho desse autor fora produzido necessariamente bem antes, provavelmente em 1916. Paradoxalmente poder-se-ia dizer que Castelo de Moraes era poeta órfico não o sendo de fato, já que não houve a recepção de seu nome e trabalho, enquanto durou o movimento do Orpheu. Cf. ainda MORAES, Castelo de  -- Névoa, Orpheu. Lisboa, Ática, 3:95-102 (edição fac-similada).

(17) Idem, Orpheu 3, p. 97.

(18) Cf. VAZ, Gil  -- 'Quatro sonetos': Redoma; Amor; Ofélia;  Espectros.  Athena. Lisboa ,  v. 1 (2): 63, 63, 64 e 64, respectivamente, nov. 1924.

(19) SAA, Mário -- 'Poemas da razão matemática': Chácara do infinito; Versos frios. Athena. Lisboa, v. 1 (3): 105-6 e 106-8, respectivamente, dez. 1924.

(20) Id. -- Inverno. Contemporânea. Lisboa, ano I, v. 4 (2): 65, jun. 1926.

(21) PESSOA, Fernando -- "[Sensacionismo -- 5]". Em sua: O banqueiro anarquista e outras prosas. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1988, (sel. e introd. de Massaud Moisés), p. 252.

(22) TEIXEIRA, Judith -- A cor dos sons. Contemporânea. Lisboa, ano I, v. 4 (1): 41, maio 1926.

 

 

 

 

Ricardo Daunt (Brasil)
Ricardo Daunt tem-se dedicado nos últimos 40 anos à pesquisa
e criação literária. Publicou ensaios e resenhas nos principais periódicos
brasileiros. Publicou também em diversos veículos de comunicação de Portugal,
como a Colóquio Letras e a revista Vértice. É doutor em literatura
portuguesa pela Universidade de São Paulo
e realizou dois pós-doutorados na área de literatura comparada. Foi
professor visitante na Yale University e deu aulas no curso de mestrado da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bem como em outras instituições de
ensino. Produziu obras de contos, novelas, romances e ensaios.  Escreveu, entre
outros, T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven e a Obra poética
integral. Organização,
apresentação, tábua cronológica e cartas reunidas por Ricardo Daunt;  os romances
Manuário de Vidal, Anacrusa
e Migração dos cisnes, além dos
contos e novelas de Homem na prateleira,
Grito empalhado, Endereços úteis e Poses. Avulsamente tem publicado poesia e
ensaios sobre poéticas da modernidade, modernismo português e brasileiro.

 

 

© Maria Estela Guedes
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