REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

 

 

CRISTINO CORTES

 

Louvável tradição

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  
 
 
 
 

É para um livro feito a meias entre dois poetas portugueses muito próximos, António Ramos Rosa e Manuel Madeira, que eu me proponho chamar hoje a atenção. Trata-se de « Cartas Poéticas » entre os dois poetas, e foi publicado em Outubro de 2007 pela Labirinto. Recolhe exactamente 67 cartas/poemas de cada um dos autores, isto é, 134 no total. Não é pois, para os critérios normais em poesia, um livro pequeno. 

Os dois autores, e amigos, são praticamente da mesma idade, e quase conterrâneos.  Ambos são algarvios, Ramos Rosa de Faro, Manuel Madeira de S. Bartolomeu de Messines. Nasceram ambos em 1924, a 21 de Agosto Manuel Madeira ( ainda que neste caso as informações divirjam ), a 17 de Outubro Ramos Rosa. Qualquer deles está, portanto, na casa dos seus respeitáveis 84 anos, felizmente ainda lúcidos e actuantes. E nenhum deles é o que se pode considerar um poeta pouco experiente. 

Mais conhecido sê-lo-á, inequivocamente, António Ramos Rosa. Desde sempre dedicado à poesia, muito cedo abandonou as suas outras actividades __ de professor e tradutor __ para se lhe consagrar por inteiro. O resultado é uma produção torrencial, sendo quase impossível estabelecer a lista dos títulos publicados e felizmente de todo inviável a organização de uma qualquer « Poesia Completa ». 

 Reflexo dessa dedicação quase monástica é o crescente reconhecimento público do seu papel enquanto poeta: em 1980 ganhou o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários; em 1988 ganhou o Prémio Pessoa; em 1989 o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores ( que viria a repetir em 2006 ); em 1991 ganhou o Prémio Bienal de Poesia de Liège e foi poeta europeu da década galardoado pelo Colégio da Europa; em 1992 foi o vencedor do Prémio Jean Malrieu. As distinções honoríficas são a outra face deste reconhecimento: Grande Oficial da Ordem de Santiago da Espada em 1984; Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 1997; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Algarve em 2003. 

Refira-se, ainda, que em António Ramos Rosa o ofício poético tem co-existido com o de pensar sobre o mesmo, em termos ensaísticos e críticos. ( Creio que foi ele o primeiro a publicar na imprensa recensões sobre livros ainda não saídos. ) E ultimamente o grande poeta até se tem destacado no desenho __ e nessa actividade já várias vezes se mostrou ao público, e com assinalável êxito, dizem as crónicas. 

O curriculum de Manuel Madeira, forçoso é reconhecê-lo, é menos impressionante. Viveu em Lisboa a maior parte da sua vida activa __ à semelhança de Ramos Rosa, aliás __, como empregado de comércio e técnico agro-alimentar. Várias vezes perseguido pela PIDE foi colaborando poeticamente __ e não só __ onde o deixavam. Está representado em várias antologias, das quais se destacam a da poesia portuguesa do pós-guerra, 1945/1965, coordenada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira para a Editora Ulisseia, e, por várias vezes, nos Cadernos de Poesia Viola Delta, dirigidos por Fernando Grade.  

Em 1998 a Universitária Editora incluiu-o na Antologia de Homenagem a Federico Garcia Lorca e em 2004 eu próprio tive o grande gosto de o convidar a participar na colectânea de homenagem a Pablo Neruda que, por ocasião do centenário do respectivo nascimento, para essa mesma editora então organizei. ( Comove-me sempre muito que Manuel Madeira refira explicitamente esse facto nas badanas dos seus livros. É um comportamento raro, além do mais. ) 

Mas em termos de livro mesmo eu creio que o primeiro que Manuel Madeira publicou, indiscutivelmente digno do nome, terá sido o volume de 2004, chancela da Editorial Minerva, « No encalço do real inalcançável », reunindo poesia de mais de 50 anos ( 1949 – 2004 ). E em 2007, quase simultaneamente com o volume das Cartas Poéticas de que aqui tratamos e com semelhante formato gráfico ( ainda que sob a chancela Atelier / Produção Editorial ), saiu um outro volume « Um pouco de infinito em toda a parte ». 

Pois foram estes dois amigos, oh meus amigos, que há pouco resolveram dar público testemunho de uma tradição poética de tão nobres pergaminhos como é a epistolografia. Os dois amigos decidiram escrever-se em verso __ e é o resultado desse exercício que no presente volume nos é apresentado. Essa sua iniciativa merece ser devidamente registada e enaltecida __ e é esse louvor, e exposição de modelo que oxalá pudesse originar muitos outros praticantes, que eu aqui pretendo assumir. 

A carta é uma das modalidades poéticas de mais antigas tradições. Na Roma imperial, pela pena de Horácio, atingiu um dos seus pontos de mais elevada perfeição. No Renascimento retomou-se essa prática, e em Portugal foi cultivada, e às vezes com brilho, pelos mais distintos poetas desse século de seiscentos, como Sá de Miranda, António Ferreira e Luís de Camões. Depois o modelo seguiu, com altos e baixos, e Bocage foi, no raiar do século XIX, um dos seus mais capazes praticantes. Recordo-me bem de, quando há quarenta anos comecei a ler poesia, sem grande método nem orientação de quem quer que fosse, ter ido parar à edição das obras completas, em seis volumes, que o Professor Hernâni Cidade organizou para a Bertrand. E logo as cartas me pareceram uma bela disciplina __ para um poeta principiante. 

No caso em apreço não é de escola de poetas que se trata. ( Ambos passaram as suas provas com mais do que distinção e louvor. ) Mas o mérito de voltar a pegar nesse molde, esse permanece __ e é essa experiência que eu gostaria de ver mais seguida e experimentada. Estou convencido, como decerto poderia dizer Fernando Pessoa ( pela voz de Álvaro de Campos ), que com ela nada perderia a poesia. Muito pelo contrário, até poderia ser que lucrasse __ como decerto lucrou com este notável exemplo que António Ramos Rosa e Manuel Madeira resolveram levar a bom porto. 

E são cartas mesmo, oh meus amigos. António Ramos Rosa é quem toma a iniciativa e desencadeia o processo. Manuel Madeira responde às iniciativas dele __ e é assim em todo o livro, uma sucessão de carta-resposta. Se um abre o volume o outro o fecha. São 67 missivas em cada sentido, como dissemos. Segundo informações que me foram pessoal __e epistolarmente! __ prestadas por Manuel Madeira, o tempo desta correspondência, ideia e iniciativa de António Ramos Rosa, foi o período de 1995/1996.  

Não houve concertação prévia quanto a objectivos ou temas a tratar, ao sabor do acaso ou da disposição de momento ambos se tendo confiadamente entregue… Mas Manuel Madeira era o que, por vezes, mais se atrasava na resposta: e daí as referências mais explícitas a uma ou outra carta de Ramos Rosa __ para ele saber a que carta sua, cada uma de Manuel Madeira então respondia, pois é razoável admitir que este, para recuperar o tempo perdido, de vez em quando lhe mandasse mais do que uma no mesmo correio. E depois, não se sabe bem porquê, o exercício terminou. 

António Ramos Rosa inicia o processo e marca o tom, como se diria de uma apresentação musical. O seu texto é marcado por uma maior capacidade imaginativa, ele é mais metafórico e afirmativo. No geral Manuel Madeira responde-lhe, concorda com ele, explicita um pensamento, dá pormenores. Ele é o único que cita versos do seu correspondente __ e é mesmo o único, creio, a citar também outros autores. Os poemas de Ramos Rosa, no geral, são mais curtos; os de Manuel Madeira quase sempre mais extensos. Qualquer deles utiliza o verso livre e longo, organizando o fluxo discursivo com recurso predominante a uma ou duas estrofes. Creio que António Ramos Rosa jamais utiliza o verso da página; Manuel Madeira fá-lo com alguma frequência. 

Os temas tratados nem sempre se adequam a um registo epistolográfico; em alguns casos parece-me que se trata de poemas suficientemente autónomos que tanto poderiam estar neste livro como em outro qualquer. Poderia exemplificar com algumas « cartas » de António Ramos Rosa: sejam as número 15, 23, 29, 36, 40 ou 46. Em alguns casos, também, a divisão efectuada parece-me artificial: os poemas 44 e 45, por exemplo, bem poderiam ser entendidos como um único. O segundo é a natural continuação do primeiro, porquê a divisão Poeta António Ramos Rosa?  

Acrescente-se ainda que António Ramos Rosa publica sob esta forma de cartas excertos do longo « prefácio epistolar » com que em 2004 « apadrinhara » o grande livro de Manuel Madeira, Na verdade esse prefácio começa por reunir, sucessivamente, o que aqui são as cartas número 9, 13 e 51. Depois vai por outro caminho, provavelmente original. ( Vista a cronologia de que Manuel Madeira me deu conhecimento é claro que as coisas se passaram ao contrário: na altura de fazer o prefácio Ramos Rosa foi-se às cartas e aproveitou algumas. É justo, tanto mais que as mesmas eram então inéditas__ mas uma notazinha, agora, não faria mal. ) 

Manuel Madeira faz-se muito eco duma pretensa explicação científica do universo, tudo pretendendo saber e explicar __ o que parece ser uma espécie de sua marca pessoal, pois também comparece em outras obras. Nesse registo, no entanto, digamos até que por ele porventura limitado, o poeta constrói belos poemas, muito me agradando referenciar alguns que particularmente me tocaram. 

O poema 61, por exemplo, é uma bela antevisão do que trará a morte. No poema 54 explicita a satisfação que ainda lhe dá o encontro sexual __ de alguma forma se fazendo eco, mas mais concreto e positivo, do masturbatório prazer que António Ramos Rosa refere no seu poema 43, imaginando a nudez de uma rapariguinha ( qual figura de Botticelli ) que não será dele.  

Eram frescos, na sua juventude, estes dois amigos. Mas… o que é que eles haviam de fazer, se as costureirinhas colaboravam e o fresco das tardes de Verão debaixo das figueiras próximas de tanques e poços a outra coisa não convidava?! Leiam, por exemplo, os poemas números 9 e 20 de Ramos Rosa __ e as respostas de Manuel Madeira __ e imaginem o que por ali se terá passado. Ah!, não se esqueçam, também, dos vinte anos que então tinham. 

Os temas desta correspondência são muito variados. Sendo António Ramos Rosa a dar o tom por ele me guiarei. Ele faz-se eco do seu ofício de poeta, recorda os tempos da juventude, pergunta-se se os sonhos ainda persistem. Conta histórias __ como no poema número 37. Umas vezes é amargo e pessimista, outras é mais solar e epifânico. Nem sempre é claro, alguns poemas afiguram-se pouco compreensíveis. Ele fala sobre realidades exteriores quais sejam o tempo, o vento, o fogo, o espaço, o desejo… o desejo sexual, na verdade, está muito presente, e em qualquer deles, seja sob a forma de experiência, observação ou metáfora. Por vezes dirige-se claramente ao seu interlocutor, outras nem tanto. 

Eu creio, pois, em resumo, que este é um belo livro __ e que o é para qualquer um dos seus dois autores. A ambos deverá ser creditado este louvor de se abalançarem à nobre tarefa de recriar a correspondência enquanto modalidade poética. Que muitos outros poetas se imponham a si mesmos uma semelhante disciplina __ e que muitas outras cartas, com ou sem resposta, possam vir a ser publicadas. 

E eu sinto que não me poderei eximir ao desafio de dar um exemplo da arte poética de cada um dos poetas participantes. Não é nada fácil, sobretudo querendo escolher um par mensagem – resposta. Não podem ser muito grandes, nem pressupor o conhecimento de textos anteriores. Mas tenho de correr o risco e assim sendo, tudo ponderado, decido-me pela « carta » número 35, com a vantagem de o aspecto formal ser semelhante em ambos os poetas, uma estrofe apenas, com 16 e 19 versos, respectivamente. « Eu não sei mas não sabendo eu sei que não sei », começa António Ramos Rosa. « Paro para escutar melhor o grito da criança », responde-lhe Manuel Madeira, pegando na última imagem do interlocutor.  

Pela minha parte, oh meus amigos, o que eu sei é que nada substitui a leitura integral destas « cartas » entre os dois grandes poetas, e velhos amigos, que dão pelos nomes de António Ramos Rosa e Manuel Madeira. Com esta recomendação termino, em jeito de adicional estímulo transcrevendo os poemas seleccionados.

Cristino Cortes

 

 

Trigésima quinta carta a Manuel Madeira

 

 

Eu não sei mas não sabendo eu sei que não sei

E não sabendo eu sou a inteligência

Que subiu a esse ponto da montanha

De onde se avista a luz de um maravilhoso deserto.

E tanto é claridade como treva

E tanto é o inominado como o nome vazio

E tanto é o ignorado como a nudez que deslumbra.

Em vão procuro porque já encontrei

O que ultrapassa o ser e o nada,

O que não tem lugar e é sem tempo.

Este é o caminho estreito

Por onde vou surdo e cego

Como uma criança

Que acaba de nascer e grita

Mas o seu grito é tanto do seu ser como do seu nada

E tanto da luz que a cega como a ilumina.

 

( Poema de António Ramos Rosa )

 

 

Trigésima quinta carta a António Ramos Rosa

 

 

Paro para escutar melhor o grito da criança

Que acabou de nascer e nada ou pouco sabe da razão de ser

Do seu grito cego mas é a mim que eu oiço

Interrogar o vazio que nasceu comigo

E ainda hoje estrebucha para ser escutado

Porque o vazio sou eu porventura ansioso e aberto

Consciente embora da vaga incompletude

Que só é anulada com a minha morte

Sei que vegeto como qualquer insecto ou planta

E que também eles têm virtual a incontida ânsia

De eternidade contida todavia pelos predadores

Para eles e para mim todo o ser oscila

Entre o desejo obscuro de se eternizar

E a impossibilidade rubra de atingir esse fim

O intervalo é preenchido com a consciência do inexorável

Que abre por outro lado as portas à negação

Que invade de roldão o espaço disponível e me devora

Como qualquer predador devora a presa

Deixando-a apenas cheia do que lhe falta 

 

 

( Poema de Manuel Madeira )

 

 

 

 

Cristino Cortes nasceu em Fiães ( 1953 ), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia, reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu, quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou 10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância, em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em 2008, por ter sido o último.
  Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros. Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias. Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio, tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram apresentações públicas em diversos locais do País.
Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia.

 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL