REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2012 | Número 23-24

 

Era El-Rei homem de bôa estatura de côrpo, não em demasía, de fórtes membros, enxúto e bem dispôsto, sem defeito algúm. Éra alvo das carnes e os cabêlos da cabêça e os que começávam a pungir da barba, louros.Tinha o rôsto grave e sevéro, com o beiço de baixo um pouco derrubado, cuja composição lhe dáva múita graça e formosúra.

 

Crónica de el-rei D. Sebastião, Amador Rebelo, capítulo 73º, intitulado
“Da pessôa de El-Rei Dom
Sebastião” [*]

JOSÉ PINTO CASQUILHO

Sebastião de Portugal:

20 de janeiro de 1554 - ?

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Resumo

Sebastião, XVI rei de Portugal, sétimo da dinastia de Avis, reinou até 1578 e é referido na grande maioria dos textos como tendo falecido em 4 de agosto desse ano, na batalha de Alcácer-Quibir. Existem no entanto pelo menos quatro peças factuais, três breves papais e um quadro, que apontam em sentido contrário: Sebastião sobreviveu, e sobreviveu longamente, à batalha. Uma máquina probabilística cega funcionando em condições de máxima incerteza concluiria na base de 15 contra 1 que o rei teria escapado. O que foi a sua vida no exílio é um mistério, mas poderá ter sido o prisioneiro de Veneza e por certo foi guerreiro sob a égide da cruz de Cristo de que se reclamava capitão. A existência secreta de Sebastião rei de Portugal tornou-se uma forma pregnante que engendrou vários sebastião, chispas salientes de uma forma profunda que se impõe como verdade.

 

Abstract

Sebastião, XVI King of Portugal, seventh of the House of Aviz, reigned until 1578 and is referred to as having died on 4 August of that year, at the battle of Ksar-el-Kebir. There are however at least four factual pieces, three brief papal letters and a picture, pointing in the opposite direction: Sebastian survived, and survived for a long time. A probabilistic blind machine working in conditions of maximum uncertainty would conclude in 15 against 1 that the King would have escaped. What was his life in exile is a mystery, but he may have been the prisoner of Venice and certainly was warrior, under the aegis of the cross of Christ that he claimed to be His captain. The secret existence of Sebastian King of Portugal became a deep pregnancy that produces various fake Sebastian, salient traits of a deep form that looms as truth.

 

Résumé

Sébastien, XVI roi du Portugal, septième de la dynastie d'Avis, a régné jusqu'à 1578 et est rapporté dans la grande plupart des textes comme en ayant décédé le 4 août de cette année, dans la bataille de Ksar el Quibir. Existent néanmoins au moins quatre pièces factuelles : trois brefs du Vatican et un tableau, qui indiquent dans sens contraire : Sébastien a survécu, et a survécu longuement, à la bataille. Une machine probabiliste aveugle en fonctionnant dans des conditions d’ incertitude maximale répond dans la base de 15 contre 1 que le roi se serait échappé. Ce que a été sa vie en l'exil est un mystère, mais pourra avoir été le prisonnier de Venise et probablement a été guerrier, sous l'égide de la Croix de Christ dont il se nommait capitaine. L'existence secrète de Sébastien roi du Portugal s'est rendue une forme pregnante qui a produit plusieurs sebastião, traces saillantes d'une forme profonde qui s'impose comme vérité.

 

 

Introdução

Ao contrário do que se pode pensar só há relativamente poucos anos lido com a história de Sebastião, rei de Portugal. Cedo ouvi dizer que ele era birrento e obstinado, teimoso que sei lá, megalómano e infeliz, e portanto não me seduzia tal personagem. Além que na sua birra de vã glória levou o país ao desastre de Alcácer-Quibir, a que se seguiu a perda de independência durante sessenta anos. No entanto o assunto regressava periodicamente e comecei a dar cada vez mais atenção. A última chamada veio com o Tango Sebastião que a Estela escreveu e o José Augusto prefaciou. O principal objectivo do texto que agora publico é remover escolhos sobre outros que escrevi há uns anos, e que se centravam num trajecto que terminava na apropriação simbólica por Sebastião da coroa imperial, movimento comum aos príncipes da Europa do seu tempo, onde reafirmei a tradicional evocação de que o rei morrera pelejando em Alcácer Quibir, naquele fatal 4 de agosto de 1578 [v. 1].

Sebastião nasceu no dia do santo de seu nome, em 20 de janeiro de 1554, e não é fácil entender que tal era sui generis - o único rei do nome do mártir -, e que o menino foi reclamado logo de ‘o Desejado’, por ter nos seus ombros o peso de salvar o país já que todos os nove filhos de João III e Catarina da Aústria tinham sucumbido, no tempo dizia-se da maldição de Aviz - hoje diríamos efeitos deletérios da consanguinidade -, muitos por epilepsia. O pai de Sebastião, o príncipe do Brasil João Manuel, falecera poucas semanas antes do nascimento do filho, provavelmente de diabetes juvenil, com dezassete anos. Joana de Aústria, infeliz com o desamparo da morte do príncipe, regressa a Espanha para governar em lugar do seu pai ausente e de seu irmão Filipe que ia viajar aos países baixos, e assim abandona o filho com meses, aos cuidados dos avós e da corte.

Sebastião vê-se criado orfão e rei de Portugal com o encargo de salvar o país, transportando o peso da história do santo, soldado romano supliciado. Com tal entalão é natural que o jovem rei se fizésse guerreiro e quisésse prová-lo primus inter pares, como capitão de Cristo na sua autonomeação, numa incursão contra os infiéis por Marrocos, onde legitimaria o título de imperador em Fez. O jovem Sebastião matou o seu primeiro javali com onze anos, a idade de Alexandre no mesmo feito, e é possível que tentasse mimetizá-lo, na versão de cruzado, a que estava conforme o espartilho católico, inquisitorial, em que cresceu. Saiu-lhe gorada a intempestiva e nas planuras ardentes de Agosto, em Alcácer Quibir, conheceu a derrota. Conheço o sítio, lá está uma placa com três coroas, uma superior de Allah e as duas outras dos reis marroquinos mortos no desfecho: um envenenado ao que se diz, outro afogado na fuga. A batalha dos três reis, assim ficou designada, porque três reis ali teriam morrido, pensava eu, mas não: três reis ali combateram mas só dois pereceram, é a conclusão deste escrito.

Também eu andei muito tempo fabricado na idéia de que Sebastião teria morrido em Alcácer Quibir, afinal todos os historiadores de renome o diziam, talvez haja uma ou outra excepção, desde a escola que tal me era dito e ainda hoje essa é a versão corrente [v. 2, 3], a que acrescia aquela menção de que o rei fora por ali fora a espadeirar no seu lema: morrer sim, mas devagar. Ora parece que foi mesmo isso que aconteceu à letra, num sentido bem mais lato do que se normalmente se pensa. É verdade que pode dizer-se que o regresso mítico de Sebastião é mais uma versão do Paráclito ou paracleto anunciado, o redentor, um messianismo, uma reinvenção sucessiva da esperança ou da fé no amparo do regresso do outro. Mas também por isso essa recorrência tem pertinência no caso.

Não dispunha eu nesse tempo do dispositivo conceptual, ou conceitual, que permite esquissar uma interpretação que reclamo satisfatória, ou mesmo elucidativa. Esse dispositivo é o par pregnância/saliência que foi sucessivamente elaborado por René Thom [4] e Jean Petitot [5], entre outros, e enraíza na distinção aristotélica das dualidades que já têm aspectos discutidos em Platão: substância/forma e potencial/atual, a última fortemente retomada no determinismo laplaciano. Em síntese, existe uma forma pregnante, profunda, potencial, que está num domínio invisível, implícito, num espaço inacessível à observação directa, que pode ter várias dimensões, a que se associam saliências, emergências de sentido, essas sim visíveis e tangíveis, derivadas da pregnância que as sustenta ou alimenta. Das saliências pode-se inferir a pregnância, pois não há efeito sem causa, enunciado conhecido como princípio de causalidade científica, utilizado ao reverso, por meio de abdução, formando uma hipótese explicativa. Essa forma pregnante pode ser entendida como a verdade dessa história, o domínio de existência na sua multidimensionalidade secreta.

Serve isto para falar na sucessão de falsos sebastião que existiram, três ou quatro, para dor de cabeça dos filipes de Espanha – com início em Filipe I de Portugal desde as cortes de Tomar em 1581 -, que logo mandavam prender e até executar, do último tem-se notícia de um italiano enforcado em 1619. Mas será que dessas saliências recorrentes e factuais – os falsos sebastião –  não se deve inferir algo? Creio que sim, na lógica do índice que aponta que não há fumo sem fogo, uma recorrência sucessiva ao longo de um largo intervalo de anos de vários simulacros é sintoma de existência continuada - no caso da existência de Sebastião, rei de Portugal, vivo, algures. Aliás poderia ter sido um dos falsos sebastião reportados.

Sucede que este enquadramento teórico abriga algo que só há pouco tempo conheci enunciado como factos: são referidos vários breves emitidos por papas diferentes a reconhecer Sebastião como legítimo rei de Portugal na presença de cardeais, ao longo de cerca de três décadas, e no último declarando-se o rei casado e com descendência [v. 6]. Ora junte-se a isto o retrato da galeria dos Azuis, a que se atribui a data de c. 1600, e que falo mais à frente (figura 6) e de que há notícia existirem cópias. No total faz pelo menos quatro factos (três breves e um quadro) que provam que Sebastião sobreviveu a Alcácer Quibir, ou então são todos falsos, o que parece absurdo. Na hipótese de qualquer desses quatro documentos ser verdadeiro ou falso jogando com a máxima incerteza ou ignorância, supondo-os acontecimentos independentes, a probabilidade de serem todos falsos é de cerca de 6 em 100, e ao invés a probabilidade de ser pelo menos um verdadeiro e Sebastião ter sobrevivido a Alcácer Quibir é de cerca de 94 em 100. Quer isto dizer que a balança cega inclina-se 15:1 para o lado de que Sebastião sobreviveu a Alcácer Quibir. Mas ademais, no caso, poderá ver-se mais longe.

 

 

Retratos de Sebastião

Vamos incorrer no mundo dos retratos de Sebastião, onde por limitações de espaço vou-me cingir a uns poucos. Existe vasta iconografia que mostra Sebastião desde miúdo, ou mesmo no berço, carregado com os símbolos de Portugal, o escudo de armas, a esfera armilar, a cruz de Cristo [v. 7]. Na figura 1 tem-se o retrato da autoria de Cristovão de Morais, datado de 1571: o jovem rei, armado guerreiro, teria dezassete anos, louro de olhos claros, sobrolho erguido, boca carnuda...Há outras interpretações, e derivas interpretativas, do mesmo quadro [v. 8].

 

Fig. 1 – Sebastião de Portugal por Cristovão de Morais, MNAA, 1571 (fonte: Wikipedia). Na figura 2 tem-se uma representação do rei de que não consegui obter mais informações a não ser que o quadro faz parte da colecção da Fundação D. Manuel II. Mesmo que seja uma representação posterior importa referir que o Sebastião aparece coroado com a coroa de oito arcos fechados, imperial, sendo aliás o primeiro monarca português que a ostenta expressamente, a que acresce a barba ruiva ou ruça - esse será um traço distintivo da imagem do rei em todos os quadros posteriores. No caso deste retrato saliente-se ainda que Sebastião traz no peito o hábito da ordem de Cristo com a cruz embutida naquilo que se virá a chamar o diamante com as armas do rei de Portugal, mais tarde o Sancy [v. 9].

   
 

Fig. 2 - D. Sebastião usando coroa imperial (fonte: Portal da História). Na figura 3 tem-se a representação de Sebastião que se pode tomar como modelo do ideal de capitão de Cristo, como ele se autonomeava, com armadura, hábito de Cristo, faixa, bastão de comando, barba, e as armas do rei de Portugal: coroa imperial sobre o escudo apresentado na versão mais frequente desde João II, assente na asa de dragão, animal mitológico símbolo de Portugal. Enquanto em cima o tempo corre no fio do fuso. Não conheço a cronologia absoluta das referências das figuras 2 e 3, mas não parece deslocado dizer que o rei estará representado cerca dos seus vinte anos.

   
 

Fig. 3 – Sebastião, XVI rei de Portugal, capitão de Cristo

Em 1578 Sebastião tem 24 anos e creio que a figura 4 representa a face do rei por essa idade. Trata-se de um pormenor de um quadro de entre um conjunto, executados vários na escola de Alonso Sanchez Coello, cópias de um retrato original eventualmente desaparecido, de que existem exemplares no Kunsthistorisches Museum de Viena ou no Prado, representando Sebastião, rei de Portugal. Existe quem se incline por atribuir o personagem representado a António prior do Crato [v. 10], depois também autonomeado rei de Portugal por breve período. Discordo, trata-se de Sebastião, numa de suas últimas poses antes de rumar a Marrocos. A coloração da barba e do cabelo, o traçado dos olhos claros, a boca, queixo e nariz, sobrancelhas, não vejo como ter dúvidas.

   
 

E além disso D. António era fisionomicamente bem diferente e cerca de 23 anos mais velho que Sebastião [v. 11]. Na minha interpretação, o rei está representado em pose soberana anunciando a sua partida, com o hábito da ordem de Cristo que abriga o diamante com as armas do rei de Portugal, referido a propósito da figura 2 e representado na figura 5: a cruz de Cristo está engastada sobre o diamante, tendo quatro rubis na continuidade das pontas, formando no conjunto as cinco quinas, amparado por duas figuras antropomórficas ligadas, porventura simbolizando dois rios ou oceanos, já que não parecem ser anjos.

Fig. 4 – Sebastião de Portugal, 1578?

   
 

Fig. 5 – O diamante com as armas do rei de Portugal . A imagem da figura 6 está referenciada como pertença da Câmara dos Azuis nesta data, e é datável da transição entre os séculos XVI e XVII (c. 1600), com proveniência na colecção dos condes Cao Di San Marco, uma família da Sardenha, da província de Cagliari, e mostra-nos o rei de cabelo e barba arruivados, olhos claros, mais maduro. Costuma levantar-se uma objeção estílistica de que a terminação da cruz de Cristo embutida na armadura é bifurcada, o que não seria conforme, mas devo dizer que já encontrei elementos de bronze datados do reinado do rei que lembram essa modalidade de estilo de cruz.

   
 

 

 

Fig. 6 – Sebastião de Portugal

(fonte: Wikipedia), c. 1600.

Neste retrato Sebastião teria então cerca de quarenta anos de idade. Este quadro, que eu saiba, só teve divulgação pública há poucos anos e introduz a prova icônica - a outra dimensão simbólica que acresce aos breves papais -, sobre a vida do rei pós Alcácer-Quibir.

 

 

Discussão

É fascinante que se constate que quase 5 séculos depois a historiografia portuguesa dominante continue a afirmar que Sebastião faleceu na batalha, quando se dispõe de uma deixis, um sistema de indicadores, apontadores, a dizer o contrário. Mesmo a máquina probabilística cega que utilizei atrás inclina-se brutalmente para dizer que o rei sobreviveu à batalha.

A história que se me afigura mais provável é a seguinte: Sebastião viveu, porventura só, ou junto com alguns amigos, vai por ali fora e faz-se à vida como cavaleiro cristão, talvez mercenário. Mesmo vivo era um rei derrotado, e um rei derrotado é abandonado pelos poderosos, talvez com umas excepções, poderá ter recebido apoios secretos. É sabido que Filipe II de Espanha comprou os votos de nobres e clérigos de Portugal, a troco de mercês e de benfeitorias, o que se veio a expressar nas cortes de Tomar, em 1581, de onde saiu Filipe I de Portugal.

Sebastião pode ter sido o prisioneiro de Veneza, é uma história que parece bater certo com a descoberta do quadro da figura 6 em terras italianas, havendo notícia de réplicas, memória local dessa presença. O último breve papal é bem tardio, poucos anos antes da restauração da independência do reino, e há quem especule se Sebastião, também chamado o Encoberto, não terá estado o tempo todo a fazer esforços para restaurar a soberania do país - perdida pela sua temeridade ou por desígnio de Deus, conforme as interpretações -, que teriam sido bem sucedidos no final, afinal.

Estar-se-ia então no caso de que a promessa do regresso foi cumprida secretamente recordando que no quadrado da veridicção o secreto é o lugar daquilo que é e não parece, Sebastião era rei de Portugal e não parecia, será uma aplicação. Ao alijar a coroa para outra dinastia Sebastião libertaria os seus filhos desse peso, dessa cruz, passava a bola do reino por assim dizer - os novos destinatários seriam os duques de Bragança, recordando que havia quem dissesse que Catarina, duquesa de Bragança, era quem detinha a candidatura mais legítima, embora pesasse contra ela o lastro da lei sálica e os interesses de Filipe. Porventura terá havido um acordo também secreto, multissecular, para manter a história secreta de Sebastião e assim alimentar o mito? Ou teria sido desejo de reserva expresso pelo rei?

Pode dizer-se que o cardeal-rei Henrique no seu testamento [v. 12] deixa a questão de tal modo aberta - para ser decidida na Justiça entre seus sobrinhos -, que contempla tacitamente a possibilidade de Sebastião estar vivo, aí incluído. Noutro lugar referi que podia ser essa a interpretação da ausência de castelos no escudo de armas do rei de Portugal nos Calafates, em Lisboa [13], onde zero castelos pode ser convertida em índice da presença de uma ausência: a do legítimo rei.

O mito sebastianista tornou-se elemento essencial da identidade lusitana de então para cá, na opinião de tantos, tratando-se de um messianismo que tem correspondência noutras culturas e povos, cada um em seu estilo, com o seu código de representação - em qualquer caso um código é um sistema de significados que se relaciona com um sistema de significantes [14] - mas que, entre nós, tomou ressonância singular, havendo quem afirme reportando-se à política de Salazar e à sua durabilidade: o mito do sebastianismo desenvolveu-se ao longo da História e serviu, politicamente, para fixar a ideologia dominante, espoliando o povo da liberdade de escolha de seu destino e tornando-o preso a uma imagem irreal de lusitanidade [v. 15]. O mito é o nada que é tudo, dizia Pessoa, e no século XVII o padre António Vieira empenhava-se em demonstrar a necessidade lógica da ressureição de João IV, o primeiro rei da dinastia de Bragança, numa deriva messiânica [v. 16]. Também João VI foi revisto como figura sebastianista em Portugal quando da sua estadia no Brasil [17], e no Brasil, ainda no século XIX, os camponeses esperavam um enviado sebastiânico, réplicas sucessivas da idéia do regresso do redentor. Essa figura também se pode enquadrar no tema universal do eterno retorno, com tantas manifestações diferenciadas [v. 18] - e que recorre sobretudo em períodos de crise, recordando no entanto que, no sentido original, o termo crise, gerado da palavra grega krísis, significa escolha, decisão [19].

Coda

Esta reflexão que ora deixo visa em primeiro lugar corrigir escritos meus que referenciei em [1] e [9], onde repetia a notícia da morte de Sebastião em Alcácer-Quibir. Sou daqueles que acha que não é preciso fazer testes de DNA aos restos mortais que constam nos Jerónimos. Filipe II de Espanha além de prudente era calculado e manipulador, como convinha aliás, e bem pode ter tomado providências adicionais. O seu filho Carlos falecera em 1568, mandado prender pelo pai, e, dizem as más línguas, envenenar, embora haja outras versões. A tese de que Sebastião não só sobreviveu à batalha como esteve décadas a urdir a restauração da independência, discreto ou secreto, é tão sóbria e possante que o rei bem pode quedar-se numa aura mítica merecida. Sebastião é ainda hoje o mais das vezes referido de forma pejorativa: autoritário, doente, birrento, homossexual, incapaz. A crónica de Amador Rebelo, escrita provavelmente no final do século XVI, dá outra visão, bem como as palavras do padre Luís Alvares nas exéquias funebres nos Jerónimos [v. 20]. Em suma poderá dizer-se que o povo lhe tinha amor, e assim terá resguardado a memória da sua não-morte. Que outra força, senão o amor, para ser da morte vencedor? Ao que me dizem, hoje conta-se aos miúdos nas escolas em Portugal a versão de que o rei desapareceu na batalha, assim libertando a data do decesso num domínio indeterminado. A ode de Pessoa terá então ainda outra leitura [v. 21], e acabei de ver que já foi defendido em livro, recentemente, por uma historiadora portuguesa, que Sebastião reapareceu em Itália em 1598 e por lá continuou...

 

 

Referências

[*] O padre Amador Rebelo era companheiro do padre Luís Gonçalves da Câmara, mestre de Sebastião; citação extraída de Aurora Gedra Ruiz Alvarez: O Mito nas Tramas do Grotesco – El-rei D. Sebastião, AletriA, nº14, 2006, p: 186-197, Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

[1] José Pinto Casquilho, A metamorfose das armas do rei de Portugal na dinastia de Avis, Monografias.com, 2008, acessado em Dezembro de 2011, http://br.monografias.com/trabalhos913/metamorfose-dinastia-avis/metamorfose-
dinastia-avis.shtml

[2] Sebastião de Portugal, Wikipedia, acessado em  Dezembro de 2011,   http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal

[3] D. Sebastião, O Portal da História, acedido em  de Dezembro de 2011 http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/sebastiao.html

[4] René Thom, Modèles mathématiques de la morphogénèse (2 ème ed.). Paris : Christian Bourgois Éditeur, 1980, 315 p.

[5] Jean Petitot-Cocorda, Physique du sens – da la théorie des singularités aux structures sémio-narratives. Paris : Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1992, 449 p.

[6] Antonio Villacorta Baños-García, D. Sebastião Rei de Portugal, A Esfera dos Livros Editora, 2006, 389 p.

[7] Manuel Sousa, Reis e Rainhas de Portugal, Mem Martins: Sporpress, 2000, 201 p.

[8] Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id.

[9] José Casquilho, O Sancy – mais de cinco séculos de história, Triplov.com, 2008, acedido em  13 de Dezembro de 2011, http://www.triplov.com/casquilho/sancy/index.html

[10] Annemarie Jordan, Retrato de Corte em Portugal – o legado de António Moro (1552-1572), Quetzal Editores, Lisboa, 1994, 199 p.

[11] Perfil biográfico de António, prior do Crato. Wikipedia, acedido em 13 de Dezembro  de 2011, http://en.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio,_Prior_of_Crato

[12] Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique – o homem e o monarca. Lisboa: Livraria Romano Torres, 1964, 402/XIV p.

[13] José Pinto Casquilho, Das armas de Portugal, Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências (Nova Série), nº 8/9, 2010, acedido em 13 de Dezembro de 2011, http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_08/jose_casquilho/index.html

[14] José Augusto Mourão, Código in Dicionário Crítico de Arte, Linguagem, Imagem e Cultura, Lisboa: CECL&IGESPAR, 2010, acedido em 13 de Dezembro de 2011, http://194.65.130.227/index.php?Language=pt&Page=Saberes&SubPage=ComunicacaoELinguagemLinguagem&
Filtro=23&Slide=57

[15] Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id., p: 186.

[16] Padre António Vieira, Apologia das Coisas Profetizadas (org: Adma Fadul Muhana). Cotovia, Lisboa, 1994, 315 p.

[17] José Tengarrinha, A crise no final do Antigo Regime, in Crises em Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos), Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p: 25-32.

[18] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, 1981, 191 p.

[19] Sérgio Campos Matos, A crise do final de oitocentos em Portugal: uma revisão, in Crises em Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos), Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p: 99-115.

[20] José Casquilho (org.), O elmo de D. Sebastião,
Triplov,
http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Elmo/index.htm

[21] Fernando Pessoa, D. Sebastião, Rei de Portugal,
Triplov,  
http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Fernando-Pessoa/index.htm

 

 

 

 

 

José Pinto Casquilho.
Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
(CECL/UNL).
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