REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 21

 
 

 

 

 

HOMERO GOMES

A maldição da leitura

primeira parte

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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          Às vezes, acho desagradáveis os textos que começam com epígrafes. Parece que o autor não confia no próprio taco, então pede ajuda pra algum autor consagrado, prostituindo a ideia do ilustre, encaixando naquilo que pretende transmitir, não importando as contradições teóricas existentes entre a fonte e o caldo resultante. Eu iria fazer isso, também.  

Mas como não sou de ferro, cito aqui o Afrânio Coutinho, crítico e teórico da literatura, falecido às vésperas do século XXI. 

A literatura é um fenômeno estético. É uma arte, a arte da palavra. Não visa a informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar.
(Afrânio Coutinho)
 
Sempre quis escrever sobre leitura. Aliás, já venho postergando esse texto há alguns anos, mas essa frase bonita do Afrânio veio a calhar. Ela é perfeita para postar no Facebook ou no Twitter, colocar na agenda, ao lado de alguma ilustração bonita. Ou na folha de rosto do trabalho de conclusão de curso em Letras, ou algo assim. Mais do que isso, essa citação bate de frente a uma posição comum entre acadêmicos seguidores de Antônio Cândido.
 
Nas entrelinhas, ela diz o seguinte: a literatura deve ser vista isoladamente, não depende do contexto social e dele não recebe influência. Não é fruto de condições econômicas nem de posturas ideológicas. A literatura é arte pela arte, filha órfã.
 
Não concordo nem discordo do Afrânio. Nem do Antônio. Mas muita gente vai querer botar o dedo na ferida dizendo que “não, a literatura não está isolada da vida”. Também acho. Nem da vida nem da história; o que eu pretendo com a citação acima é me colocar contra os que defendem a leitura de texto literário como salvação. Como se a literatura fosse mais do que ela própria se propõe a ser: construção artística com as palavras. Como se a leitura fosse algo miraculoso. Não é.
 
Primeiramente, literatura é arte. Antes de tudo, é isso o que ela é. O leitor, por isso, se configura como um espectador de obras confeccionadas com intuito estético e que, além de ver uma criação humana tocando o belo (e na contramão, o grotesco, o feio), constrói seu próprio objeto no momento em que passa os olhos por ele.
 
Salvação? Isso é responsabilidade de outro tipo de profissional, como os resgatistas – socorristas ou dos militares dos Corpos de Bombeiros. Ler não salva ninguém de nada, nem da ignorância.
 
A literatura não salva ninguém 
Embora toda afirmação não seja definitiva, posso dizer que a literatura se limita a ser ferramenta. Ferramenta de maldição ou de salvamento. Mesmo assim, ela está lá paradinha diante do espectador, como o sanitário de Duchamp.
Essa forma de arte, da arte da palavra, não possibilita ao homem se tornar um ser melhor, não pretende tirá-lo do caos. Nem mesmo livros de auto-ajuda possibilitam uma vida mais tranquila, mais rica de sentido. Isso talvez melhore a conta bancária de alguns autores, mas não resolverá os problemas pessoais, de relacionamento, os traumas, nem os conflitos internos de ninguém. Estamos sozinhos. Os livros são apenas amantes desinteressados.
Se a literatura é arte, talvez, só traga mais caos à vida que já é turbulenta por natureza. Não que haja uma função definida para as artes; não arriscaria definir aqui em um texto tão curto e despretensioso. Mas se “a literatura é uma arte”, como afirma Afrânio Coutinho, ela nada tem a ver com os seus problemas, preocupados leitores e leitoras; então, deixe-a em paz e procure dialogar consigo no espelho e com as pessoas com as quais precise acertar umas rusgas. Não espere que a literatura faça isso por você.
Pois, mais do que fruto de uma necessidade de mercado, a literatura é consequência da consciência da coletividade, e retorna a ela apenas como possibilidade de diálogo.
Em vez de um reflexo da autonomia política, a literatura é o resultado do desenvolvimento da consciência nacional, desabrochando tanto na política quanto na literatura. (Afrânio Coutinho)
Melhor do que pensar nela como produto de um mercado que está se desenvolvendo a cada dia. Amplificando suas vozes e mecanismos. A despeito da riqueza que a leitura gera em um país de miseráveis, leia porque você gosta não porque espera que o mundo se torne um lugar melhor para viver. Ou porque na tevê andam dizendo que isso vai melhorar sua condição de vida. Acho que isso é mais um conto-da-carochinha.

 

Os livros não mudarão o mundo 
Se fosse assim, a Bíblia e o Corão já teriam feito isso a muito tempo, mas o que eles conseguiram? Não preciso nem dizer. As manchetes falam por si.
Não estou criticando ninguém. O que não se pode afirmar é que o mundo e as pessoas podem sempre ser influenciados beneficamente por aquilo que leem. Nem sempre. Somos animais antes de tudo. Bichos e funcionamos como tais. Se possuímos cérebros altamente desenvolvidos, azar o nosso; talvez, ganhamos esse presente antes da hora, não sei. Mas se fomos presenteados com a capacidade de leitura, então que se procure ler por que essa maneira de dialogar com o outro pode ser boa para nós mesmos. Mas sem esperar muito disso.
Por que o mundo não tem muito a ver com as histórias que estamos lendo. Não. Quem escreve pode até pensar nele, em seus problemas, na crise econômica global, mas o livro é um mundo em si mesmo. Só podemos aprender dele mesmo e nada do mundo ao redor. Meio estruturalista isso, mas não vou me preocupar com a mistura quase inevitável de visões teóricas que um ensaio como este levanta; se eu quiser misturar Gadamer e Frye, por que não?
Entretanto, isolar a literatura e os escritores da realidade não significa dizer que eles não possuem dentro de si esses problemas remoendo o espírito, que não há consciência social, preocupação com os rumos da economia local ou o que seja. Para continuar usando/prostituindo Afrânio Coutinho, cito:
A literatura surge sempre onde há um povo que vive e sente. (Afrânio Coutinho)
Mas isso não significa dizer que toda a literatura deve ou procura discutir questões de importância nacional/local, que reelabora acontecimentos históricos para refletir sobre eles e encontrar possíveis soluções para problemas concretos. Nada disso.
O que pode existir, e que já foi comentado por Machado de Assis, é um sentimento íntimo – que pode ser expresso pelo escritor em seus textos ou não – dando a medida de homem de um tempo histórico, de um contexto socioeconômico, de um espaço geográfico definido. E no diálogo consequente, a história da humanidade poderá aparecer, efetivando o diálogo sócio-histórico entrecruzando horizontes de possibilidades, levantando-se questionamentos, instigando dúvidas, resultando em tolerância ou preconceitos. Contrariamente, poderá surgir apenas os arquétipos construídos num diálogo auto-referencial da literatura com ela mesma, deixando a história e as relações de poder de lado.
Esse sentimento íntimo muda (se mudar) apenas o ser humano no íntimo dele mesmo. Se ocorrer algo no mundo, está fora do controle da própria literatura e de sua leitura, constante ou não, comprometida ou não, adequada ou não. A literatura não muda o mundo, nem muda o homem. Uma conversa não precisa necessariamente resultar numa revolução política. Mas pode chegar a isso, entretanto a responsabilidade não é do diálogo constituído no texto literário, está além dele mesmo.
 

 

 

Homero Gomes - (Curitiba/PR - Brasil, 1978).
Vem colocando trechos de seu livro «Jamé Vu» na Internet, enquanto ele permanece no prelo <www.twitter.com/hgomesjamevu>. Escreveu Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura edição 2007 – <www.twitter.com/sisifodesatento>, Três (teatro), Mimesis (poemas e micro-prosa-poética) e A jornada de A Bao A Qu (infanto-juvenil). Colaborou com os periódicos brasileiros Rascunho, Cult, Ficções e, atualmente, é colunista de O Bule <www.o-bule.blogspot.com>.
Contato:
homero.gomes@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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