REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 

 

   INTRODUÇÃO   

   Organizei este pequeno ensaio em duas entradas num período em que o meu país saía de uma grave situação que num futuro podia ter caído em algo irreversível. Um período em que sucessivos esqueletos saltam dos armários anteriormente construídos por uma administração pública liderada por aventureiros políticos que visou – percebemo-lo agora claramente – estabelecer um ambiente autoritário/cleptocrático de tipo peculiar, ainda que não original e que George Orwell aflorou, embora com recorrências imaginativas, numa das suas encenações literárias.

   Eu poderia dizer, parafraseando ironicamente Georges Arnaud, o famoso autor de “O salário do medo”, que “Esta sociedade, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá”.

   Como na obra de Samuel Beckett “Malone está a morrer” é referido a dada altura, “O que interesa é só prestar atenção aos sobressaltos”. Ou, para citarmos Jules Morot no seu “O espírito do bem”, “A casa/ou da vida ou da morte/ costuma sempre ficar um bocadinho mais ao lado”.

   Por outras palavras menos simbólicas, mais chãs e terra a terra: se estamos vivos já nem sequer é por acaso, como assinalava algures Jean Rostand, mas sim porque os senhores do mundo nos consentem, por altamente lhes convir, que existamos em todos os pontos cardeais…E o resto é conversa.

   As 2 análises seguintes, ainda que se refiram a livros diferentes de autores de diferentes origens, apontam para algo que lhes é comum e que, a meu ver, explica um específico universo conceptual e societário em que hoje existimos nesta parte do mundo - a violência camuflada da parte de sectores privados, a “suave brutalidade” de cunho estatal e, por último, o que num geral mundial se apresenta inquietantemente às consciências: o relativo desconhecimento da insídia e dos manejos nefandos de seres criadores/dependentes de um mundo pervertido pela desrazão que subscrevem.

   Não é por acaso que todos eles têm por cenário ou invólucro a escrita e as suas diversas faces do eventual conhecimento, de potencial acesso à sabedoria (ou a sua negação absoluta) e as armadilhas e perversões que eles podem possibilitar ou esconder.

   Dito isto, comecemos. 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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NICOLAU SAIÃO

 

Duas incursões no escuro

da noite e do sol

                      “A mais bela artimanha do diabo é a de persuadir-nos
 de que não existe” – Baudelaire

   
  1. SOBRE “VERSÃO ORIGINAL” 
ENTRE OS FUMOS DO AMOR E DA MORTE DE BILL BALLINGER
 

     “Obrigam-nos a engraxar sapatos e depois alegam que só servem para engraxadores” – Langston Hughes

 

   Chega-se ao fim desta novela discretamente temerosa, uma das mais belas e perturbadoras da literatura de mistério, com uma sensação de perda e de amargura. De relativa surpresa, que contudo possui uma indicação norteadora.

   Nesta tragédia poderosamente encenada e magnificamente urdida na sua progressão enquanto matéria escrita, o acento tónico recai sobre a questão das realidades e dos enganos que estas podem ter em si, uma vez que não é dado ao Homem saber o que está além do que se toma por verdadeiro e afinal contém todo um universo de falsos indícios, de falsas indicações, de desconhecimento dos sentimentos que realmente forjam as relações entre os seres. E que num outro contexto tudo teriam de criativo e de salubre ultrapassando a fábula dos desencontros.

   “Se abro o bico sem ser com um tipo fixe, estou liquidado. E, além disso, quem acreditaria em mim?” pergunta-se o protagonista logo na abertura desta ópera de dois tons em que o discurso pessoal é contrapontado no itálico dos capítulos que explicitam o que, para além dele, vai sucedendo no quotidiano que o ultrapassa. “A coisa não faz sentido. Não faz mesmo nenhum sentido. Tenho pensado no assunto vezes sem conta, debatido a coisa comigo mesmo. E no fim só consigo obter vagas imagens” – continua Dan April (Abril, significativo nome de mês) a questionar-se numa tentativa de entender os acontecimentos que o rodearam e que se transformaram num “retrato de fumo” (o título original é esse) iniciado numa noite do Illinois, nessa Chicago enevoada ou ardente de sol, “quente e preguiçosa”, essa cidade também brumosa devastada anos atrás por um incêndio que a História registou.

    Mas a breve trecho o leitor suspeita, e acaba por concluir devido ao seu estatuto, que a coisa de facto faz sentido, ou melhor: que há um sentido singular, ainda que temível, oculto nesta novela que por seu turno, ao contrário da primeira que analisámos, resulta dos próprios limites do conhecimento ou se debruça, digamo-lo desta maneira, sobre o que se pensa saber.

   É por assim dizer, simbolicamente, uma representação desse labirinto ou desse fumo sulfuroso que se depara ao ”laborator per ignem” numa fase em que este caminha para a Segunda Obra e em cujos meandros tem de enfrentar as figuras enganadoras ou sinistras dos dragões velhos cuspindo lava ou lamas mefíticas.

    “Krassy Almauniski abriu os olhos e distendeu-se na cama. Ficou quieta uns momentos antes de se espreguiçar de novo. – Dezassete de Março…Dia de São Patrick – disse para si mesma com satisfação – o dia dos meus anos! – Saltou da cama e caminhou sobre o soalho nu até junto dum pequeno espelho que estava suspenso de um fio passado num gancho pregado à parede. Desabotoou a camisa de seda de homem, passajada, que lhe chegava até quase aos pés e despiu-a.

 - A partir de hoje – disse para si mesma – as coisas vão modificar-se”.

  Por representação, enquanto Dan é a parte de sonho Krassy é a parte de realidade prática que a novela vai explicitar enquanto progride.

   Citemos para melhor compreensão, sem irmos demasiado longe – o que retiraria ao leitor a supresa da sequencia do relato – o texto de apresentação inserido na contracapa: “Ao percorrer os arquivos da Agência de Cobranças que comprara no dia anterior, Danny April encontrou o retrato de uma rapariga.

   Mas ele conhecera aquela rapariga…dez anos antes…Que seria feito dela?

   A ideia de a ver novamente tornou-se uma obcessão…Finalmente encontra-lhe a pista. Mas essa pista onde o conduz? À rapariga de outrora, que ele sonhava meiga e delicada, ou a uma criminosa que, à custa dos mais pérfidos ardis, subira, partindo do nada, até à mais elevada situação financeira e social?

   A acção passa-se em Chicago, a cidade dos mil contrastes, e decorre durante e após a 2ª guerra mundial”.

   Deste núcleo, à volta dessa busca que o protagonista enceta com esperança e a pouco e pouco se transforma em encontro e, depois, em desespero, o autor pinta-nos um fresco sugestivo de situações, de personagens e de imagens que nos subjugam através da progressão do relato.

   Nem sempre o que parece é ou, de forma ainda mais cruel (o que é constitui a verdadeira face do drama mas noutro espaço e num outro tempo, daí o itálico em que esses capítulos estão vasados) Dan April é a figuração clara do mal-amado, do indivíduo cuja existência nunca poderia, num mundo cuja hostilidade a todo o momento se manifesta a despeito das aparências, ir dar aos lugares de felicidade que se lhe antolhava merecer.

    Neste relato, ao contrário do que sucede noutras novelas policiais, não é o autor que funciona como “deus ex machina” mas sim o leitor – que assiste a tudo sem nada no entanto poder fazer. O enigma não se apresenta ante o leitor mas ante a personagem masculina, limitada pelos sentimentos que a envolvem.

    Personagem trágica, tem sem que o suspeite, do outro lado, outra trágica personagem que se desconhece enquanto tal, que não pôde ou não soube guindar-se a um patamar de salutar formulação. Por outras palavras: Danny, ser vencido de antemão, conserva contudo a pureza dos que se lançam na vida com toda a carga de boa-fé, de decência pessoal e de lealdade que confere humanidade à existência, numa mistura de coração e de razão que frequentemente acaba mal. A razão de Krassy é contudo outra e é essa razão, estranhamente – porque não caldeada pelo coração - que irá provavelmente (digamo-lo desta forma) destruir a ambos ainda que por vias dissemelhantes.

    Fábula dos desencontros? Mais lhe chamaria fábula sobre a impossibilidade de, num determinado contexto, a matéria se unir ao espírito – usando esta metáfora dos antigos alquimistas. O que é, na verdade, como os nossos tempos mostram à saciedade e esta novela confere com aprumo, arte e evidente desembaraço, muito mais vulgar do que as diversas moralidades procuram estabelecer ou escamotear…

   
  2. A PROPÓSITO DE “EXTERMÍNIO NO 31º ANDAR”
A AURORA BOREAL DE PER WAHLOO
 

“Porque vos ensinam eles a amá-los, se é para vos tratar assim?
Porque não vos deixam eles em paz?” – William Irish

“O homem é perecível; pode ser. Mas pereçamos resistindo – e se ao fim
o que nos reservam é o vazio e o nada, façamos com que isso seja
uma injustiça” – Étienne de Senancour

 

   Há livros assustadores. Uns pelo espírito, como por exemplo o “Lázaro” de Andreiev, que nos coloca de chofre e sem complacências em frente do facto de que uma vida de ressuscitado seria, afinal, tão angustiante e repugnante como a degustação de uma refeição apodrecida. Outros pela letra, como o “Drácula” de Bram Stoker sobre o qual já se disse que só um leitor completamente destituído de sensibilidade conseguirá ler numa casa deserta e pelas horas mortas da noite.

   Outros, por seu turno – e é o caso desta “utopia negra” vasada nas luzes boreais que conformam as sociedades escandinavas – porque o que neles se encena está a acontecer paulatinamente. E não só naqueles rincões.

   O caso sucedido há um par de semanas na politicamente correcta Noruega, onde os monstros particulares são produto de uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como os avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que finge supor que os cidadãos são um resíduo angélico para que se não vejam as partes demoníacas do seu poder governativo, mostra-o sem véus e sem disfarces.

    Nesta obra de entrecho quase linear, duma secura de estilo necessária para que a sugestão resulte, Per Wahloo (que com sua mulher Maj Sjowal deu na época a lume um belo punhado de polars bem inseridos no género, mas com um timbre de novidade que os distinguiu) segue passo a passo os sete dias duma investigação que um inspector da polícia efectua para que naquela sociedade pacífica e onde o Estado mais ou menos cordial procura que o cidadão viva sem traumas (e onde o único crime significativo e punido aliás sem muita violência expressa é a embriaguês, que entretanto se multiplica) tudo continue a ser sereno.

   Nesta sociedade o controle é exercido pela leitura: leitura de revistas e de jornais com visão positiva, onde o próprio fenómeno desportivo (fautor de paixões e frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a não ser a que possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das vedetas que o integram.

   O consórcio que o domina é constituído por gente esclarecida e de “boa formação” partidária e propugnadora de uma igualdade social estabelecida de maneira amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o indivíduo ou indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma por bons serviços, assinado por altas individualidades. E o além está muito longe…mesmo quando ao virar da esquina.

    Mas há sempre alguém que, com impetuosidade maldosa, “sem olhar à felicidade social a que se conseguiu chegar” (sic), resolve meter um pauzinho na engrenagem. Por puro sadismo (como se diz neste ocidente cristão, civilizado e culto) ou por maldoso anarquismo (como há dias disse publicamente um comandante da polícia metropolitana inglesa, que ao mesmo tempo solicitou aos cidadãos britânicos que, e cito, denunciassem os vizinhos que soubessem que perfilhavam ideias anarquistas – o que quer que isto seja…)? Ou, ainda, por impiedade, como se diz naqueles países do oriente que têm a dita de existir em teocracias?

    Alguém, portanto, usando precisamente uma folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma vez que o papel é pacificamente controlado), endereçou às autoridades uma carta inquietante, sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam dar-se. E embora as forças vivas tenham essa carta por eventual simples brincadeira, tal como uma outra insistência significante, nunca fiando – a própria brincadeira indicaria já um escabroso, quiçá injusto, desvio e Jensen - polícia compenetrado e eficiente sofrendo no entanto de um doloroso e crónico desarranjo gástrico que nem a comida cientificamente confeccionada e posta à disposição dos cidadãos pelo ministério da saúde que tem a seu cargo as dietas racionais consegue tranquilizar – mergulha num universo de entrevistas e de encontros que pouco a pouco lhe patenteia os meandros do jornalismo, se jornalismo se lhe pode chamar, e da criação escrita quando a criação escrita é apenas um simulacro que ora leva ao suicídio dissimulado (ou assistido) ora à entrega a um ambiente de mundanidade, de sucesso e de notoriedade bastante semelhantes ao que usa utilizar-se nesta Europa das pátrias e, suspeito-o com alguns tremores relativos, nas sociedades alfabetizadas de outros continentes…

   Homem sério e bom profissional, ético tanto quanto as circunstancias peculiares o permitem, nesta viagem iniciática de uma semana nem sequer negra em que a desesperança do protagonista é irmã colaça da desesperança sentida pelo leitor enquanto mergulha na naturalidade do relato, a regra da “detective novel” é subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam preferiam não saber e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta mas à ocultação. Nas sociedades racionalmente policiadas, como por exemplo a sociedade lusa, o polícia, (que funciona como Némesis justiceiro) age preferencialmente como aquele que camufla o enigma ou, dizendo ainda mais esclarecedoramente, faz com que o enigma seja uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio” entre as classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…

    No entanto, nem nestas mansões quase celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que fôssem).

   Dizia António Maria Lisboa, numa frase bem respigada por Cesariny, que “Todo o acto premeditado ou todo o acto leviano tem a sua guilhotina própria”.

    A mim sempre me pareceu que ele tinha razão ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que Jensen – e muito mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a verdade que assistia ao infausto poeta surrealista lusitano.

   À sua deles própria custa – mas isso seria já uma outra estória…

ns

 

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTACTO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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