REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 
 

 

 

CASTRO GUEDES

Da corporação teatral

às fracturas sociais…

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Julgo que o mal é generalizado… Portugal, apesar de o regime se declarar e se constituir juridicamente na base da democracia representativa sufragada pelo interesse colectivo geral, nunca foi tão corporativo como o é de facto: umas vezes por via de corporações assumidas (classes sócio-profissionais, mesmo que sob o manto sindical), outras num misto de cruzamentos “lobísticos” (de lóbis ou lobos, decidam os leitores o significado deste neologismo) comandado do interior sector a sector, e em nome da dita “classe” (corporação) organizado no “saque” do erário público que resta, com a locupletação dos “chefes” e as migalhas para quem lhes preste vassalagem.

No caso do teatro, digo com a mais absoluta independência (“paga” com uma solidão quase total), o que se me apresenta como mais gritante é que só a gritaria “una” as gentes do ofício, quando lhes mexem no “dinheirinho” duns, no “dinheirão” doutros. A ausência de reflexão e preocupação com outros múltiplos aspectos deste sector é, por si, chocante. Mas, para mim, do mais chocante é o esquecimento do papel social do teatro em direcção à comunidade, preterido por um culto narcísico doentio. A coisa é tão aberrante que, num encontro em Almada, não vai muito tempo, após riquíssimas comunicações de Barata Moura e Rui Vieira Nery, ouvi a lapidar idiotice quando, da plateia, um artista declarou que lhe “era completamente indiferente que houvesse um único ou mesmo nenhum espectador”!

Não será – já o disse, mas repiso-o – que com posições destas (afirmadas e, pior, praticadas) que se abre o caminho para um “corte cego” da parte do ultra-neo-liberalismo no apoio à produção artística? Com aplauso esmagador da gente comum, porque, de facto, pensamentos e práticas assim não “justificam” o uso de dinheiros públicos. Se o justificassem, eu, por exemplo, como criador de flores no meu jardim, também teria direito a um subsídio, o que é absurdo.

Essa maneira de estar, mesmo que “muito de esquerda reclamada”, vai ao arrepio do que a própria Constituição consagra (e porque o consagra) do e no papel do Estado face à cultura: a sua fruição democratizante, mas não massificadora, que é a leitura contrária de uma visão mercantilista da arte e da cultura como “produto industrial” de “consumo”, logo sujeito às “leis do mercado”. Irónico é resultarem ambas iguais, porque demissionárias do carácter educativo e formativo do cidadão fruidor: em cultura não se trata de “consumidores”; tal como não se trata de satisfação egoísta do criador. Ou a criação visa a fruição para o alargamento de massa crítica (ou, como sua extensão e por excepção de casos, a pesquisa séria) ou que se auto-sustentem, de facto os que falam para dentro. Alguém aceitaria que o dinheiro do sector da saúde servisse para abrir “cliniquetas” num aterro onde só iam os amigos do director clínico mudar de penso rápido, ainda que se dando ares de complexa intervenção cirúrgica?

Por isso, idealizar uma “classe” ou “sector” teatral unido, com práticas antagónicas, é uma impossibilidade, como a “Carta del Lavóro” de Mussolini, logo transformada em “carta straccia” da demagogia. O teatro, como emanação da própria sociedade há-de reflectir o “ponto de vista” de onde parte e onde se encaixa. Garantida a diversidade estética (como parte intrínseca da própria liberdade de expressão), ao Estado cabe zelar pelo interesse geral e não por interesses particulares: nas artes cénicas, porque efémeras, o público é elemento constitutivo da sua própria existência enquanto objecto artístico. As plateias vazias (e a demissão do esforço para as encher) representam absoluto desprezo pelo “PIB” cultural em défice, maior que o económico e parte (repercussiva) da razão deste último. Eventos pontuais (nacionais ou internacionais), no caso específico das artes cénicas, na vez de trabalho regular e continuado pelo “país real” é mais aberrante que o TGV, quando se cortam ligações ferroviárias básicas.

Daí o meu “sit venia verbo” em consensos corporativos ou sequer diálogos cheios de omissão dos beneficiários deste caos libertino, que não libertário. A reanimação do teatro português passa, hoje, pela assunção das clivagens, debates fracturantes, confronto de ideias… Para ao menos, no seu próprio interior, se desenvolver a tal massa crítica, produzindo pensamento, de onde nasça uma verdadeira estratégia verdadeiramente cultural, passe a redundância dos termos… Ou não termos!

 

Castro Guedes, Encenador

castroguedes9@gmail.com

 
  In: O Público, Agosto de 2011
 

 

 

(Jorge) Castro Guedes (Portugal)
Encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).

castroguedes9@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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