REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 17

 

 

As pessoas se mostram surpresas, temerosas e até indignadas diante da considerável proliferação de escorpiões que tem chovido sobre Buenos Aires, cidade que até data bem recente desconhecia esse gênero de aracnídeo.

Aquelas sem imaginação recorrem a um método por demais tradicional para defender-se dos escorpiões: o emprego de venenos. As menos rotineiras enchem suas casas de cobras, rãs, sapos e lagartixas, com a esperança de que estes devorem os escorpiões. Umas e outras fracassam lamentavelmente: os escorpiões se recusam terminantemente a ingerir venenos, e os répteis e batráquios a ingerir escorpiões. Umas e outras, em sua inépcia e precipitação, só conseguem uma coisa: exacerbar — mais ainda, se isso é possível — o ódio que os escorpiões professam por toda a humanidade.

Utilizo outro método. Tenho procurado, infrutiferamente, difundi-lo, mas como todo precursor, sou um incompreendido. Acredito, sem vaidade, que este não só é o melhor, mas também o único método possível para defender-se dos escorpiões.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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FERNANDO SORRENTINO

 

Para defender-se

dos escorpiões

Tradução de Ana Flores [De En defensa propia, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1982]

 

Seu princípio básico consiste em evitar o confronto, manter breves escaramuças ocasionais e não demonstrar-lhes que somos seus inimigos. (Sei que é preciso andar com o máximo de cuidado, sei que a ferroada de um escorpião é fatal. É claro que se eu me embutisse num escafandro de mergulhador estaria completamente a salvo dos escorpiões; mas também neste caso os escorpiões teriam plena certeza de que tenho medo deles. Porque eu tenho muitíssimo medo deles. Mas não se pode perder o sangue frio.)

Uma medida elementar — eficaz e livre de ostentação e de nefasta espetacularidade — consta de duas simples etapas. A primeira é amarrar a boca das calças com uns elásticos bem apertados para que os escorpiões não possam subir pelas minhas pernas. A segunda, fingir que sou muito friorento e calçar todo o tempo um par de luvas de couro para que eles não me envenenem as mãos. (Mais de um espírito-de-porco tem visto apenas as desvantagens que este método acarreta no verão, sem levar em conta os inegáveis méritos gerais.) Quanto à cabeça, convém que fique descoberta: é a melhor maneira de apresentar aos escorpiões uma imagem valente e otimista de nós mesmos, além do fato de que os escorpiões não costumam arrojar-se do teto sobre o rosto humano, embora alguns o façam às vezes. (Pelo menos foi o que aconteceu à minha falecida vizinha, mãe de quatro encantadores meninos, agora órfãos. Para piorar, esses fatos eventuais engendram teorias errôneas que só servem para fazer a luta contra os escorpiões mais árdua e difícil. Na verdade, o viúvo, sem nenhuma base científica, afirma que os seis escorpiões se sentiram atraídos pela cor intensamente azul dos olhos da falecida e deduz, como evidência fraca de afirmação tão temerária, o fato completamente casual de que as ferroadas foram de três a três em cada uma das pupilas azuis. Eu sustento que isto é uma simples superstição forjada pelo medroso cérebro desse indivíduo pusilânime.)

Assim como na defesa, no ataque também é preciso brincar de ignorar a existência dos escorpiões. Como quem não quer nada, diariamente consigo matar — assim, por baixo — de oitenta a cem escorpiões.

Procedo de uma maneira que, a bem da sobrevivência do gênero humano, espero que seja imitada e, se possível, aperfeiçoada: com ar distraído, sento-me num banco da cozinha e fico lendo o jornal. De vez em quando olho o relógio e resmungo num tom suficientemente alto para ser ouvido pelos escorpiões: “Poxa! Esse maldito Pérez que não telefona!” A impontualidade de Pérez me irrita e aproveito para bater com raiva os pés no chão: desta maneira massacro no mínimo uns dez escorpiões dos inúmeros que cobrem o piso. A intervalos regulares repito minha expressão de impaciência, e assim vou matando uma boa quantidade. Nem por isso me descuido dos também incontáveis escorpiões que cobrem completamente o teto e as paredes (que se tornaram cinco ondulantes, palpitantes e movediços mares de alcatrão): de vez em quando finjo um ataque de histeria e jogo algum objeto pontudo contra a parede, sempre amaldiçoando aquele Pérez do diabo que custa a telefonar. Uma pena que tenho quebrado vários jogos de xícaras e pratos e que vivo entre frigideiras e panelas amassadas, mas é alto o preço que se paga para defender-se dos escorpiões. Por fim, inevitavelmente alguém me telefona: “É o Pérez!”, grito, e me precipito em direção ao telefone. Claro que com tanta pressa e tanta ansiedade, nem percebo os milhares e milhares de escorpiões que forram maciamente o chão e que explodem sob meus pés com um gelatinoso e crocante ruído de ovo pisado. Às vezes — mas só às vezes: não convém abusar deste recurso — tropeço e caio esparramado, o que faz aumentar sensivelmente a área do meu impacto e, conseqüentemente, o número de escorpiões mortos. Quando novamente me levanto, me vejo com a roupa toda condecorada com os pegajosos cadáveres de muitos escorpiões: desprendê-los um por um é tarefa delicada, mas me permite saborear meu triunfo.

 

* * *

 

Agora vou me permitir uma breve digressão para relatar um episódio, por si só ilustrativo, que me aconteceu há uns dias e no qual, sem querer, vivi um papel que me atrevo a classificar de heróico.

Era hora do almoço. Como sempre, encontrei a mesa coberta de escorpiões, a louça coberta de escorpiões, a cozinha coberta de escorpiões… Com paciência, com resignação, com o olhar distante, fui empurrando-os para o chão. Já que a luta contra os escorpiões consome a maior parte do meu tempo, decidi preparar para mim uma refeição rápida: quatro ovos estrelados. Estava comendo, afastando de vez em quando um ou outro mais ousado que havia subido na mesa ou que caminhava pelos meus joelhos, quando, do teto, um escorpião especialmente vigoroso e robusto caiu — ou se jogou — no meu prato.

Petrificado, larguei os talheres. Como devia interpretar tal atitude? Era uma coincidência? Uma agressão pessoal? Uma prova de fogo? Fiquei perplexo por uns instantes… Que queriam de mim os escorpiões? Estou bem treinado na luta contra eles, logo, percebi: queriam obrigar-me a modificar meu método de defesa, fazer-me passar decididamente ao ataque. Mas eu estava bem seguro da eficácia da minha estratégia: não conseguiriam enganar-me.

Vi, com cólera reprimida, como as patas grossas e peludas do escorpião chafurdavam no ovo, vi como seu corpo impregnava-se de amarelo, vi como a cauda peçonhenta se agitava no ar, como um náufrago que pedisse socorro… Objetivamente considerada, a agonia do escorpião era um belo espetáculo. Mas me deu um pouco de nojo. Quase me entreguei: pensei em lançar o conteúdo do prato no incinerador. Tenho força de vontade e soube conter-me a tempo: se fizesse tal coisa, ganharia o aborrecimento e a reprovação dos milhares e milhares de escorpiões que, com renovada suspicácia, me contemplavam do teto, das paredes, do chão, da cozinha, das lâmpadas… Teriam, então, um pretexto para considerarem-se agredidos e, aí, quem sabe o que poderia acontecer.

Armei-me de coragem, fingi não perceber o escorpião que ainda se debatia no prato, comi-o distraídamente com o ovo e até passei a casca de um pão para não deixar nenhuma migalha de ovo e escorpião. Não foi tão repugnante como eu temia. Um pouquinho ácido, talvez, mas esta sensação pode ter sido por eu ainda não estar habituado à ingestão de escorpiões. Com o último bocado, sorri satisfeito. Depois pensei que a quitina do escorpião, mais dura do que eu havia desejado, poderia me cair mal no estômago e, com delicadeza, para não ofender o resto dos escorpiões, tomei um copo de sal de frutas.

 

* * *

 

Existem outras variantes desse método, mas, aí sim, é necessário lembrar que o essencial é proceder como se ignorasse a presença — mais ainda, a existência — dos escorpiões. Mesmo assim, agora me assaltam algumas dúvidas. Parece-me que os escorpiões começaram a perceber que meus ataques não são involuntários. Ontem, quando derramei uma panela de água fervendo no chão, notei que, da porta da geladeira, uns trezentos ou quatrocentos escorpiões me observavam com rancor, com desconfiança, com censura.

Quem sabe meu método também esteja fadado ao fracasso? Mas por enquanto não conheço outro melhor para defender-se dos escorpiões.      

 

 

Fernando Sorrentino (Argentina)
Fernando Sorrentino nació en Buenos Aires el 8 de noviembre de 1942. Es profesor de Lengua y Literatura. Sus cuentos se caracterizan por entrelazar de manera muy sutil, y casi subrepticia, la realidad con la fantasía, de manera que el lector no siempre logra determinar dónde termina la primera y empieza la segunda. Suele partir de situaciones muy “normales” y “cotidianas” que, paulatinamente, se van enrareciendo y convirtiéndose en insólitas o turbadoras, pero siempre recorridas por un arroyo sinuoso de espléndido y sorprendente sentido del humor.
Algunos de sus libros de relatos son Imperios y servidumbres (1972), El mejor de los mundos posibles (1976), Sanitarios centenarios (1979), En defensa propia (1982), El rigor de las desdichas (1994), Existe un hombre que tiene la costumbre de pegarme con un paraguas en la cabeza (2005), El regreso (2005), Costumbres del alcaucil (2008), El crimen de san Alberto (2008), El centro de la telaraña (2008). Numerosos cuentos suyos han sido traducidos a diversas lenguas europeas y asiáticas. Su página web es la siguiente: http://www.fernandosorrentino.com.ar