REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 16

   

Mário de Carvalho é dos ficcionistas portugueses com mais potencial de audiência, não só em Portugal como no mundo. Não sei se é o mais conhecido, digo que tem características para figurar no topo de uma tabela dos dez mais lidos. A sua maior virtude, capaz de lhe conferir essa distinção por parte dos (escassos) leitores portugueses, é a graça, a oferta de histórias de prazer, como «O chochman», no seu mais recente livro de contos, «O homem de turbante verde», que gostamos de saborear sem quaisquer pretensões literárias, saboreamos pelo prazer de ler, sentados numa cadeira de encosto, na varanda, nestas pacíficas tardes que vão sendo de Verão, ou bem junto à lareira, debaixo de gorros e lãs grossas, quando o frio não afasta do corpo as suas garras.

O prazer, entretanto, não é um viajante solitário. As histórias, de andamento ligeiro, envolvem cargas muito pesadas. Se não fosse o riso, aqui e ali, a desdramatizá-las, podiam na generalidade ser consideradas negras, e algumas até se apresentam como guiões de thrillers, cheios de suspense e ação violenta, à boa maneira americana.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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MARIA ESTELA GUEDES

"O Celacanto" de Mário de Carvalho

e outras histórias

 

                                                                  
 

Não será bem o caso de «O celacanto», narrativa de mistério e aventura, a desembocar, por força dos desvios zoológicos, num cenário surrealista. Porém não lhe falta a dinâmica da busca do objeto perdido, como no filme da esmeralda. Antes de mais, entretanto, Quem sabe o que é o Celacanto? - pergunta o narrador, ignorando completamente aquilo a que o nome se refere. Muito poucos, não é verdade? Apesar de nem a ciência o saber bem, o Celacanto estimula a imaginação. Herberto Helder, n' «Os passos em volta», inclui um conto com esse título, e há bem pouco tempo, em Inhotim, Minas Gerais, estive no interior de uma gigantesca instalação, parte da qual intitulada "Celacanto provoca maremoto", na Galeria Adriana Varejão (1). Aliás, o Celacanto de Mário de Carvalho também faz parte de uma instalação, da qual é roubado num guarda-chuva, mas depois lá regressa à galeria de arte, pelos seus próprios meios voantes.

Alguém sabe o que é um Celacanto? - pergunta o protagonista. Por acaso, sei, se bem que muito pouquinho. De outras celacantices li dezenas de textos, mas do Celacanto propriamente dito, só um ou dois. O suficiente para concordar que foi considerado espécie extinta, por só se conhecer em registo paleontológico, até há coisa de uns cinquenta anos, pouco mais, pouco menos, quando a comunidade científica, e mais especificamente comunidade dos ictiologistas, teve de engolir uma abada de sapos, ao verificar que os Celacantos eram pescados ao vivo, comidos e digeridos, pelas populações limítrofes do Canal de Moçambique. Ignoro se os lagartos gigantes (Macroscincus coctei) já foram redescobertos nas ilhas de Cabo Verde, mas são outra das espécies ditas extintas com probabilidade de redescobrimento ao vivo.

Parece depreender-se das minhas palavras que Mário de Carvalho é um autor tão realista que a sua literatura se funde ou confunde na científica, e realmente existe um nível de verosimilhança espantosa no que escreve, apesar de se tratar muitas vezes de excursões imaginárias ou até de divertimentos. A verosimilhança, mesmo quanto ao modo de locomoção do Celacanto, não decorre de colagens ao historiográfico, sim das capacidades de criador literário. Mas há sempre colagens, nem era possível inventar no vazio: aproveitamento de factos vividos, mas sobretudo lidos nos jornais e vistos na televisão. Ou podem as referências estabelecer-se com a literatura, o que se patenteia logo nas epígrafes de partes do livro, para não entrar no interior de contos como «Na terra dos Makalueles», em que se invocam elementos do romance de aventuras, e em especial de «As Minas de Salomão». Todo o ficcionista usa dados da physis, digamos assim,  e Mário de Carvalho não constitui excepção. Porém o que o define é uma tremenda imaginação, ao conduzir a narrativa, que começa por parecer normativa, para desfechos absolutamente inesperados, com frequência situados fora dos limites da physis.

Não, Mário de Carvalho está nos antípodas de um Aquilino Ribeiro, que trago à colação por ter estado ontem num local onde viveu, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa. À direita da dupla igreja, fica um edifício de pedra comprido, que, ao seu tempo, era um colégio jesuíta. Ali fez alguns estudos. Conversando com um idoso proprietário de café, disse-me este que ainda conhecera o escritor, de uma vez em que ele viera à Lapa, já de cabelos brancos, para o funeral do Padre Ferreira, que fora seu professor. Para minha surpresa, o meu interlocutor, comentando que "terras do demo" é designação de Aquilino para esta região, relacionou "demo" com pobreza, não pela carga negativa tão vária que pode assumir a expressão "terras do diabo", sim pela forma do verbo "dar" - terras pobres, de mendicidade, em que se estende a mão pedindo alguma coisinha para comer: "dê-mo".

Aquilino escreveu "Demo" e não "dê-mo", mas é óbvio que subjaz à confusão a cultura oral, própria de épocas em que era muito alta a percentagem de analfabetos no nosso país. Fique esta nota ortográfica alienígena a emparelhar com a distinção que Mário de Carvalho faz no livro entre "besta" e "bésta"...

Nunca esquecerei aquele seu conto sobre a guerra colonial, passado em África, «Era uma vez um alferes», vertido para filme por Luís Filipe Costa. A cena foi rodada num bocado de parque com palmeiras junto aos velhos Estúdios do Lumiar e demonstra que é falso o julgamento, vindo do senso comum, segundo o qual o escritor só deve, ou só sabe, escrever sobre o que conhece. De toda a farta narrativa que surgiu no pós-25 de Abril, acerca dos tormentos passados no mato pelos soldados, e neste livro, «O homem do turbante verde», permanece o rasto dessa queimadura psicológica, o que senti como relato mais verídico foi esse conto de Mário de Carvalho que, tanto quanto sei, não fez a guerra colonial.

Desde a violência de um grupo terrorista, no conto que dá título ao livro e o abre, até à violência individual, no último, «O reduto», muitas formas de agressão e de resposta a ela se patenteiam pela mão de Mário de Carvalho. Aliás, «O reduto», ao apresentar um homem paranóico, que transforma a casa num reduto de onde se propõe defender-se de agressores (imaginários?), desvia a violência de fora para dentro, apontando o dedo à família, como base doente da sociedade, também ela um foco gerador de violências brutais.

 

MÁRIO DE CARVALHO

 

O homem
do turbante verde

 

Portugal
Editorial Caminho, 2011

  (1) Maria Estela Guedes, «Inhotim - Artesãos do paraíso», em: http://www.triplov.org/novaserie.revista/numero_10/inhotim/index.html
 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.