REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 15

 

 

 

 

 

RESUMO: Incontestável a influência de Manuel Bandeira na poesia cabo-verdiana, motivando imagens de esperança como a “estrela da manhã” e movimentos literários como o pasargadismo evasionista e utópico assumido pelos escritores da revista Claridade, assim como reações contrárias, como o antipasargadismo, da geração da Nova Largada, de intensa reivindicação político-social. Por causa da emergência histórica da luta anticolonial, a ironia, figura marcante na poética de Bandeira, e o jogo lúdico com as palavras foram relegados no decorrer das décadas. Filinto Elísio, poeta revelado nos anos 1980, recupera essas características de Bandeira e mostra-nos o quanto um olhar ampliado para a obra do poeta brasileiro ainda pode apresentar novos referenciais para a poesia de Cabo Verde.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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RICARDO RISO

Manuel Bandeira e Filinto Elísio

– transgressão e ironia

em prol da poesia

                                                   

 

É notória a influência do modernismo brasileiro na literatura de Cabo Verde, mais precisamente na geração da revista Claridade (1936-1960), representanda, dentre tantos outros, por Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes. Os claridosos, assim conhecidos, visualizavam no exemplo dos modernistas brasileiros uma vertente para pensar o arquipélago, suas contradições e dilemas distanciando-os da metrópole portuguesa. Surge nos intelectuais desse período, pois a Claridade não era uma revista apenas de literatura e abarcava outras áreas do saber, um olhar aprofundando dos problemas sociais do país, ou como afirma Manuel Ferreira: “Os modernos textos brasileiros andaram de mão em mão no momento em que os jovens intelectuais cabo-verdianos descobriam a urgência de rigorosa objectividade socio-literária” (FERREIRA, 1985, p. 261).

Baltasar Lopes, um dos idealizadores dessa proposta, assim narra a recepção dos textos dos modernistas brasileiros:

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Há pouco mais de vinte anos eu e um grupo de reduzidos amigos começamos a pensar no nosso problema, isto é, no problema de Cabo Verde. Precisávamos de certezas sistemáticas que só nos podiam vir, como auxílio metodológico e como investigação, de outras latitudes. Ora aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro doma nostra. Na ficção o José Lins do Rego d’O menino de Engenho e do Bangüê, o Jorge Amado do Jubiabá e Mar Morto; o Amândio Fontes d’Os Corumbas; o Marques Rabelo d’O caso da Mentira, que conhecemos por Ribeiro Couto. Em poesia foi um ‘alumbramento’ a “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, que, salvo um ou outro pormenor, eu visualizava com as suas figuras dramáticas, na minha vila da Ribeira Brava. (idem, p. 259)

 

Para além dos romances regionalistas – e aqui podemos acrescentar “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos –, percebemos o impacto causado pela poesia de Manuel Bandeira na geração claridosa e “as reverberações do tema de Pasárgada, colhido da poesia de Manuel Bandeira, alçaram-no a matriz poética do arquipélago, tendo como seu principal cultor o poeta Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) que o legou entusiasticamente a outros escritores” (GOMES, 2008, p. 115). Dessa maneira, Osvaldo Alcântara, com maior ênfase, e outros escritores cabo-verdianos seguem o verso de Bandeira, “Não quero mais saber do lirismo que não é libertador”, e incorporam o pasargadismo que inspirou o desejo de evasão para outro espaço conotado a justiça social e no poder libertador da palavra poética.

Entretanto, o evasionismo proposto pelo pasargadismo e o desejo de emigrar sofreram severas críticas com o passar dos anos em razão da insustentável submissão colonial, já com a revista Certeza (1944), de cariz marxista, e a geração da Nova Largada contrária ao pasargadismo, ao evasionismo e ao terra-longismo, porém a favor de um olhar que recuperava as raízes crioulas e de veementes críticas ao colonialismo, para dissabor da metrópole, mas ainda assim “conservando a lição do quotidiano e o substracto telúrico veiculados pelos claridosos” (ALMADA, 2010, p. 3). Vários são os poetas da Nova Largada, dentre tantos, Aguinaldo Fonseca, António Nunes, Yolanda Morazzo, Ovídio Martins, chegando a atingir nomes revelados ao final dos anos 1950, tais como Onésimo Silveira, Mário Fonseca, Oswaldo Osório, Arménio Vieira e Kaoberdiano Dambará. Essa postura radicalizada dos novalargadistas é muito bem exposta no poema Anti-evasão de Ovídio Martins, que é enfático no seu antipasargadismo: Pedirei/ Suplicarei/ Chorarei// Não vou para Pasárgada// Atirar-me-ei ao chão/ e prenderei nas mãos convulsas/ ervas e pedras de sangue// Não vou para Pasárgada/ Gritarei/ Berrarei/ Matarei// Não vou para Pasárgada (ANDRADE, 1977, p. 48.)

Na década de 1950, as guerras de libertação das colônias africanas tornaram-se uma realidade e revelavam ao mundo o absurdo do colonialismo, os ideais pan-africanistas espalhavam-se pelos continentes, fundava-se o PAIGC (Partido Africano pela Independência de Guiné e Cabo Verde) sob a liderança de Amílcar Cabral, mas antes este jovem lançava um importante texto “Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana”[i] (1952), premonitório no dizer de Manuel Ferreira (FERREIRA, 1985, p. 304), acerca dos novos rumos que caberiam aos futuros atores da literatura cabo-verdiana assumirem após o chão fecundado por Claridade e Certeza:

Os seus poetas – o contato com o mundo é cada vez maior – sentem e sabem que, para além da realidade caboverdiana, existe uma outra realidade humana de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que há “gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens vagabundos” que “fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. (...)

Mas a evolução da poesia cabo-verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a “esperança. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene. As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho da evasão, o desejo de “querer partir” não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos poetas – os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum – compete cantá-lo. O caboverdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos poetas. (CABRAL, 1976, p. 21). 

Na virada dos anos 1950 para 1960 a intransigência da ditadura salazarista também seria sentida, a repressão aumentaria sua escala desencadeando as guerras coloniais. Por outro lado, poetas como Mário Fonseca, que parafrasearia a “postulação irritada da fraternidade” (FONSECA, 1998, p. 166) de Aimé Cesaire, marcam a mudança de postura de sua geração e o antipasagardismo seria radicalizado em suplementos literários como Suplemento Cultural (1958), Boletim Gil Eanes (1959) e Seló (1962). Ruptura que seria escancarada por Onésimo da Silveira, representante da “geração que não vai para Pasárgada”, no seu “Consciencialização da literatura caboverdiana”, livro com severas críticas – e injustas, frisamos – aos claridosos, motivando o poeta e ensaísta a afirmar que:

a literatura caboverdiana, estando profundamente ferida de inautenticidade, não traduz nem produziu uma mentalidade consciencializada e daí se ter tornado, como não é difícil verificar, em título de prestígio da elite que a vem encabeçando e não em força ao serviço de Cabo Verde e suas gentes. (SILVEIRA, 1963, p. 8) 

O cantalutismo passaria a prevalecer na poesia, a independência das duas pátrias-irmãs assim sonhada por Amílcar Cabral se concretizaria.

Entretanto, com as décadas de 1980/1990, as transformações político-sociais não se realizam e os escritores começam a sentir a necessidade de discutir os rumos que a nação seguiu, assim como os caminhos da poesia, estagnados desde então. Segundo Carmen Lucia Tindó Secco:

Após a euforia da independência, no final dos anos 80 e início de 90, a novíssima “geração” de escritores começou a denunciar o vazio cultural no Arquipélago, além de constatar que a fome e a miséria não foram extintas. Houve uma desilusão em relação aos valores cantalutistas que animaram a poética da independência. A poesia então, deixou de cantar apenas o social e passou a operar também com os sentimentos individuais, com o existencial e o universal. Esse novo lirismo se caracterizou por construções metapoéticas e passou a repensar tanto os caminhos sociais, como os da própria poesia. (SECCO, 1999. p. 20) 

Salutar recordarmos as pertinentes observações contidas nas epístolas de Timóteo Tio Tiofe (heterônimo de João Manuel Varela) e merecedoras de nosso logro acerca das responsabilidades das gerações posteriores à Claridade – nesse momento por um prisma diferente do mencionado por Cabral, como muito bem apontou o poeta em sua “Primeira Epístola ao irmão António”, datada do ano de 1974. As críticas são incisivas diante do panorama literário do país, pois Tiofe aspira que

(...) os nossos poetas sejam mais exigentes na sua preparação cultural e na factura da sua poesia que os seus predecessores. A poesia cabo-verdiana está numa encruzilhada. Possuímos um antepassado de valor Jorge Barbosa. Precisamos ultrapassá-lo para fazer progredir a poesia do nosso país. (TIOFE, 2001, p. 136)

e assim encerra:

Nunca me cansarei de proclamar: para nós, escritores de hoje, tal é a maior herança que nos deixaram os homens da Claridade. Ela não é pequena, mas, justamente porque reconhecemos a nossa dívida, é importante saber onde pararam, até onde chegaram, para podermos ir mais longe. E aqui recordo: eles lançaram as bases duma “escrita cabo-verdiana” e cabe agora aos que seguem dar uma certa envergadura a essa escrita específica e estruturá-la, torná-la, numa palavra, digna do nome de literatura. (idem, 2001,  p. 144)

Posteriormente, Tiofe, na “Oitava Epístola ao irmão António”, atestaria a transformação da poesia cabo-verdiana e a compreensão da poesia de cariz metafísico de seu outro heterônimo, João Vário. “Há já alguns anos que muitos patrícios começaram a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se o paradigma” (TIOFE, p. 303). A poesia de Vário sofreu pesadas críticas e foi legada ao ostracismo como bem apontou o poeta e ensaísta José Luis Hopffer Almada no artigo “Que caminhos para a poesia cabo-verdiana? Parte II – O Exemplo já antigo de João Vário” (ALMADA, 2010), desde que sua escrita veio à luz em pleno período cantalutista. Tal discriminação já havia sido relatada por Manuel Ferreira e que reclamava a reintegração de João Vário às letras do arquipélago:

Trata-se de um corpus a ser reintegrado, como se disse, na literatura cabo-verdiana, ainda que os temas, as mensagens, a linguagem, independentemente da sua importância e qualidade, não se ajustem àquilo que se vem convencionando chamar-se a cabo-verdianidade. Mas (...) não há mais fundamento para uma discriminação deste teor, exclusivamente de caráter estético-ideológico. (FERREIRA, 1986, p. 63-64)

Como veio a emergir nas décadas de 1980/1990, o panorama mudou com a empolgação de uma nova geração de poetas que começava a se revelar em publicações diversas como Sopinha de Alfabeto, Voz di Letra, Ponto e Vírgula, Aríope, Raízes, Fragmentos etc. até serem reunidos na Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas caboverdianos, organizada por José Luis Hopffer C. Almada. No prefácio da obra, Almada faz analogia à flor do deserto, a mirabilis, e procura mostrar a força de uma geração amargurada com os descumprimentos das promessas feitas pela revolução, e assim exprimir a força do verbo poético como local de reflexão do tempo em que vive:

Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular.

Mirabilis – de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol.

“No Deserto cresce a Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”. Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia. Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta. Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da poesia mirabílica. (ALMADA, 1991. pp. 26-27) 

Hoje é com bom grado que “a existência de um sistema literário cabo-verdiano consolidado tem servido de esteio aos novos poetas e ficcionistas para trilharem caminhos diferenciados”, como afirma Hopffer Almada (ALMADA, 2010, p. 3). Sendo assim, ter a liberdade para revisitar a obra de Manuel Bandeira sem as referências à “estrela da manhã” ou ao pasargadismo, ou ao antipasargadismo, podemos dizer que é uma conquista consolidada pela chamada geração mirabílica, frisando sempre a heterogeneidade dessa geração que jamais se configurou um grupo unificado. Fato este que não impede de receber críticas daqueles que acusam esses poetas de “inautenticidade e apatridia literárias”, pois se deveria respeitar

uma imaginada ou real autenticidade literária caboverdiana, devendo ser, por isso, tratada como património e causa intocáveis e devidamente preservada de malfazejos desvios, contaminações e outras conspurcações estéticas, estético-ideológicas e temáticas (ALMADA, 2010, p. 1). 

No entendimento dessa crítica, isso seria assaz grave, pois esse “novo evasionismo teria como característica diferenciadora e distintiva a fuga pura e simples ao tratamento de temáticas tipicamente caboverdianas” (ALMADA, 2010, p. 1).

Todavia, a arte é feita de transgressão, de desafios ao cânone estabelecido e ninguém melhor que o cabo-verdiano da ilha de Santiago, Filinto Elísio Correia e Silva, para representar essa postura em seu já longo percurso literário, que passa pela poesia, crônica e romance com enorme desenvoltura e excelência. Dentre tantos títulos, destacamos Li Cores & Ad Vinhos (poesia, 2009) e Outros sais na beira mar (romance, 2010).

O sempre ousado Filinto Elísio recupera uma característica de Manuel Bandeira que foi pouco explorada na literatura cabo-verdiana, trata-se da verve irônica que tanto marcou a versátil obra poética do modernista brasileiro. A ironia e o seu poder de desestabilizar, ampliando e ressignificando os sentidos anestesiados pelo cotidiano encaixa-se perfeitamente na subversão da linguagem, naquilo que Roland Barthes assim enuncia como “trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (BARTHES, 1977, p. 16). Trapaça praticada por Elísio desde a saudosa e provocadora revista Sopinha do Alfabeto (1986), idealizada pelo artista plástico e poeta Mito Elias, que foi lançada durante o cinquentenário da revista Claridade e “contribuindo assim para o combate à quase letargia cultural em que nos mergulhamos.”

Nos poemas de Bandeira a ironia aparece de diversas formas. Portanto, é importante recordarmos a sua presença na poesia como ao final de “Pneumotórax”: “ – O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado./ – Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/ – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino” (BANDEIRA, 1976, p. 63).

Ou seja, diante do inevitável mal, a ironia faz-se presente e eleva a pertinência da arte na vida. De outra maneira, o sujeito lírico recorre à banalidade do cotidiano para expor a tragicidade do homem no “Poema tirado de uma notícia de jornal” e com o seu final inesperado que, de tão estúpido, chega a ser irônico: “João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número / Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.” (idem, p. 73).

Célebres são os poemas onomásticos reunidos no livro Mafuá do Malungo, como se o poeta quisesse decifrar signos ocultos nos nomes, sente-se estimulado a criar poemas inteiros a partir de antropônimos, desvelando a ludicidade com que trata a poesia, como no singelo Eunice: “Eunice meiga,/ Eunice linda.../ Que mais ainda?/ – Eunice Veiga!” (idem, p. 197). Decifração que o faz apelar para o neologismo, diante daquilo que a vivência diária está impossibilitada de oferecer e das regras normativas e restritivas da língua determinam, que somente a palavra poética, libertária por si, pode manifestar: “Beijo pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/ Que traduzem a ternura mais funda/ E mais cotidiana./ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./ Intransitivo:/ Teadoro, Teodora. (idem, p. 136).

As figuras de som como a onomatopeia e as propostas modernistas de transgressão irônica apropriam-se de temas populares e do folclore, alimentando o fazer poético e tornando-se marcantes no poema “Berimbau”: “Os aguapés dos aguaçais/ Nos igapós dos Japurás/ Bolem, bolem, bolem./ Chama o saci: - Si si si si!/ - Ui ui ui ui ui! uiva a iara/ Nos aguaçais dos igapós/ Dos Japurás e dos Purus.” (idem, p. 56).

O jogo lúdico com as palavras possui uma associação fundamental na poesia de Bandeira, a musicalidade. Esta originada da própria essência da poesia, ainda assim recriada pelo poeta que se apropria de canções populares para transformá-las em poemas, tais como “Na rua do sabão” com os seus versos iniciais “Cai cai balão” e em “Rondó do Capitão” e o seu “Bão balalão”. Nos dois poemas a ironia se apresenta de forma melancólica. No primeiro, um menino pobre monta o seu balão e o solta, só que as outras crianças da sua rua tentam derrubar o seu balão, mas “como se o enchesse o soprinho tísico do José”, alcançando o céu e caindo longe dali, “caiu no mar – nas águas puras do mar alto” (idem, p. 55). Enquanto no segundo, versa-se a partir do suplicante pedido para que o senhor capitão retire o peso do coração do sujeito lírico, a amargurada esperança.

Após essa breve apresentação das manifestações transgressoras da ironia e da ludicidade com as palavras na poesia de Manuel Bandeira dentro do panorama literário brasileiro de sua época, podemos passar para o poema “arre_pendência” do seu novo livro, Me_xendo no Baú, de Filinto Elísio, e tentarmos demonstrar como a vertente irônica está presente na obra deste praiense, quais os recursos utilizados e quais as associações com Bandeira.

Filinto Elísio tem pleno domínio do ritmo, da métrica, da musicalidade da palavra poética, assim como Manuel Bandeira. No poema “arre_pendência”, a transgressão da linguagem proposta por Elísio remete-nos à ironia e à musicalidade do brasileiro, mas a transgressão da linguagem se anuncia na contaminação de termos e sinais gráficos da internet na poesia. Elísio criativamente faz farto uso das consoantes, o que nos faz recordar Bandeira no celebradíssimo poema “Os Sapos”: “O meu verso é bom/ Frumeto sem joio./ Faço rimas com/ Consoantes de apoio” (idem, p. 25). Esse predomínio das consoantes é uma característica da linguagem usada pelos jovens que suprimem as vogais em seus textos na internet. Enquanto isso, o sujeito lírico elisiano associa o som dos fonemas ao sentido das palavras: “S exílio/ S lírio/ C de cílio/ e de você/ esse delírio” (ELÍSIO, 2011, p. 49). Valendo-se da ironia e da ludicidade com as palavras, Elísio nos apresenta esse delírio surrealista de fortes conotações concretistas e assim incorporando a importância do aspecto visual ao poema. Para além do exposto, contemporâneo que é e procurando expandir os limites do fazer poético, apropria-se da maneira como as consoantes são empregadas na web: “acha o povo/ seu/ k/ minho” (idem, p. 49).

O seu propósito de “desoficinar a poesia” neste Me_xendo no Baú chama atenção pelo farto uso da tecla “underscore”  - “_” - (ou underline), deslocando nossos sentidos como no título do poema, um neologismo que já nos impressiona por si, mas também pela carga de ironia que contém, “arre_pendência”. E não há arrependimentos nos riscos aos quais o poeta se submete.

Depreendemos que a poesia elisiana se propõe inovadora, por isso o sujeito lírico afirma aos leitores: “existencializa-te/ cristaliza-te/ upgrada-te” (idem, p. 49); ou seja, há uma necessidade de renovar os olhares perante as novas tecnologias que pertencem ao nosso cotidiano, procurar absolver a revitalização da linguagem poética e assim encarar as experiências que o sujeito lírico anuncia. Entretanto, parecendo prever o apedrejamento que será exposto com suas transgressões, o sujeito lírico protege-se inserido no caminho vanguardista escolhido, provoca com as novas manifestações da arte – o grafitti e a webart – e solicita: “mas/ não me piches/ no graffiti/ nem me_gapixels/ em photoshop” (idem, p. 49).

Além do diálogo com a ironia e a ludicidade de Bandeira, este “arre_pendência” de Filinto Elísio apropria-se dos versos iniciais do poema “Rondó do Capitão” do poeta brasileiro. Este poema foi mais um dentre vários inspirados nas cantigas infantis e temas folclóricos. Elísio, que brinca com as palavras como Bandeira, recria os versos da cantiga, “bão balalão/ senhor capitão”, fazendo deste uma anáfora e renovando o segundo verso: “bão balalão/ cabeça de cão” e “bão balalão/ não tem coração” (idem, p. 49) para em seguida expor livres associações de ideias, típicas do automatismo surrealista.

Consciente de que “broxa rima” (idem, p. 49), o sujeito lírico experimenta a onomatopeia em “ta te ti to tu/ ou/ tu to ti te ta” (idem, p. 49) para logo após incorporar o olhar crítico e castrador dos que rejeitam as inovações, “(andas maluco tu)” (idem, p. 49). O sujeito lírico segue fazendo arte com as palavras, explorando a polissemia, homenageando pensadores, degustando o sabor da palavra, “viva sartre/ arte/ tarte de limão” (idem, p. 49), para encerrar de forma inusitada e irônica essa grata transgressão poética: “consorte// queres beijo/ ou/ pão de queijo?” (idem, p. 49).

Assumir a transgressão da linguagem poética requer uma dose excessiva de coragem, algo que a obra literária de Filinto Elísio vem demonstrando com enorme escala ao longo dos anos. Neste arre_pendência, e podemos estender para todo o conteúdo de Me_xendo no Baú, Elísio parece estimulado pelos versos do poema-manifesto “Poética”, de Manuel Bandeira, no qual o vate brasileiro afirma estar “farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado”, portanto vaticina: “Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/ O lirismo dos clowns de Shakespeare// - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação” (BANDEIRA, 1976, p. 63-64).

Sendo assim, explorando novas possibilidades semânticas que os recentes meios de comunicação podem oferecer, mantendo a preocupação e a busca incessante por uma palavra cada vez mais depurada, Filinto Elísio navega com desenvoltura entre a tradição e a modernidade do sistema literário cabo-verdiano com uma escrita que recupera de Manuel Bandeira a sua ironia e a sua ludicidade, de maneira desassombrada das reivindicações sociais da “estrela da manhã” ou de quaisquer referências pasargadista ou antipasargadista comuns às letras do arquipélago, porém de extrema necessidade em suas épocas.

Com seu “hino de liberdade”, o poeta apresenta-nos uma original proposta poética que provavelmente incitará e incidirá aos mais jovens a busca por novos caminhos, mostrando-os a vitalidade da poesia produzida em Cabo Verde, da possibilidade de se percorrer uma trajetória que pode se afastar do telurismo evasionista identitário ou de reivindicações sociais novalargadistas e dialogar com propostas vanguardistas distantes daquelas que determinada crítica de alguns em algures, de natureza tradicionalista, pretende manter engessadas. O poeta praiense demonstra que ainda há um vasto mar a ser navegado, transgredindo e ressemantizando palavras, deslocando imagens e sons, desestabilizando os sentidos inertes e esmorecendo aqueles que querem uma poesia sem riscos. Filinto Elísio, este vate, faz da sua insularidade na literatura de Cabo Verde um vasto mar a ser navegado. Sem medo.

  Notas
  [i] Amílcar Cabral, “Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana”, in Cabo Verde – Boletim e Propaganda e Informação, ano III, nº 28. Praia, Cabo Verde, 1 de janeiro de 1952.
  BIBLIOGRAFIA:
 

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ALMADA, José Luis Hopffer C. Problemáticas lusógrafas e o papel da língua portuguesa na emergência da identidade literária caboverdiana e na universalização da poesia caboverdiana contemporânea. África e Africanidades. Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11, p. 1-43, novembro, 2010.

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SILVEIRA, Onésimo. Consciencialização na literatura caboverdiana. Lisboa: Edição da Casa dos Estudantes do Império, 1963.

TIOFE, Timóteo Tio. O Primeiro e o Segundo Livro de Notcha. Mindelo: Pequenas Tiragens, 2001. 

WEBGRAFIA:

ALMADA, José Luis Hopffer C. Breves apontamentos a propósito de recentes polémicas sobre a identidade literária caboverdiana. Disponível em < http://tertuliacrioula.com/2010/08/que-caminhos-para-a-poesia-caboverdiana-parte-1/ > Acessado em 27 de agosto de 2010.

ALMADA, José Luis Hopffer C. Que caminhos para a poesia cabo-verdiana? Parte II – O exemplo já antigo de João Vário. Disponível em < http://tertuliacrioula.com/2010/08/que-caminhos-para-a-poesia-caboverdiana-parte-2/ > Acessado em 27 de agosto de 2010.

SOPINHA DE ALFABETO. n. 1, p. 1, 1986. Disponível em < http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag1.htm > Acessado em 24 de fevereiro de 2011.

 

 

Ricardo Riso é o pseudônimo de Ricardo Silva Ramos de Souza, nascido a 10/04/1974, no Rio de Janeiro – Brasil, graduado em Letras pela Universidade Estácio de Sá; concluiu (ouvinte) a pós-graduação lato sensu em História, Cultura e Literaturas Africanas e Afro-brasileiras da Universidade Castelo Branco; é titular da seção de crítica literária e integrante do conselho editorial da revista acadêmica África e Africanidades (www.africaeafricanidades.com); autor do blog Riso - Sonhos não envelhecem - http://ricardoriso.blogspot.com. Colaborador do semanário cabo-verdiano A Nação e da seção Africanidades da Literacia – Revista Cultural - http://literaciaafricanidades.blogspot.com. Para além da atividade crítica, preocupa-se com o acesso do público brasileiro aos autores africanos de língua portuguesa. Dentro desse objetivo concretizou parcerias com as editoras Artiletra (Cabo Verde) e União dos Escritores Angolanos, e hoje seus livros são encontrados para venda no Rio de Janeiro. Na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa apresentou comunicações em congressos e seminários, e ministrou palestras em instituições como UFRJ, UNESA, FERLAGOS e Colégio Pedro II. E-mail: risoatelie@gmail.com

 

 

 

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