REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

   

 

 

 

 

RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA

Pequenos delitos

 

 

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Maria Estela Guedes  
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Foi durante a guerra no Iraque, a primeira, em 1991, do Bush pai. Eu estava desempregado e um conhecido me disse que um gringo vinha recrutando mercenários para lutar contra os árabes no Golfo Pérsico. Pagamento adiantado. Aceitei de bate-pronto, deixei a grana com a minha mãe e parti com uma rapaziada. Íamos matar árabes, mas, por mim, podia ser o que fosse: judeu, persa, africano, tailandês, nordestino. Não fazia a menor diferença. Fomos alocados no pelotão de vanguarda, aquele que chegava para arrebentar com tudo. Tinha uns canadenses com a gente. Um pessoal psicopata que fugiu do tédio e do frio para matar. E a gente fugindo da pobreza, coisa de subdesenvolvido. Três semanas e muita carnificina depois, éramos todos iguais em nossas diferenças, embora tivessem uns com mais apetite para estupros e empalações. Os pelotões ianques pareciam ter mais pavor da gente do que dos civis com seus cintos-bombas. Um bando de frescos com quarenta quilos de mortíferos brinquedos de alta tecnologia no lombo. Pra gente bastava uma metralhadora e uma faca no estilo Rambo. Aliás, como Rambos latinoamericanos é que passamos a ser chamados, embora o nosso coronel fosse um franco-argelino cinqüentão tão anacrônico que parecia ter saído direto das trincheiras da Primeira Grande Guerra para a confusão do deserto babilônico. Sim, tenho estudo. Diploma de História que de nada adiantou para preencher com um emprego a minha carteira de trabalho. Mas isso fora águas passadas; enquanto durasse a briga de família Bush-Hussein, tínhamos garantida a matança – com soldo extra diretamente correspondente ao número de árabes que derrubávamos. E era fácil derrubar aqueles bastardos sujos. Tinha um judeu no nosso pelotão, o cara era do Sul, Santa Catarina talvez, o pai sobrevivera a Desdren e conhecera Vonnegut. Tornei-me fã do judeu só por causa disso. Ele contava as histórias do pai. E o pai, dizia ele, falava sempre do Vonnegut, o sádico doido de pedra que matava com um sorriso de Coringa na cara e que depois da guerra surtou de verdade escrevendo tudo ao contrário e se proclamando pacifista. Eu e o judeu não cairíamos nessa, não, de jeito algum. Com a gente o trato era pacificar, sim. Rambos, lembra? Pelotão de pacificadores. Os primeiros, lá na linha de frente. Os primeiros na matança, nos estupros, empalações – canadenses desgraçados, gente boníssima –, saques, pequenos delitos comparados ao grande roubo que as grandes famílias senhoras da guerra faziam por ali. Nem ligávamos; a gente vicia rápido em sangue. Toma gosto. Vivíamos entorpecidos pela matança. Eu tinha uma satisfação especial em pisar com a minha bota de três quilos a cabeça do inimigo e cantar aos berros “Alá, Alá meu bom Alá, mande água para ioiô, mande água para Iaiá...” Já estávamos ambientados, até que um dia eu e o judeu quase caímos numa emboscada e tivemos que nos esconder numa mesquita. Tudo tão confuso que a memória tropeça mesmo agora, ou trapaceia, sei lá. Fui alvejado no ombro esquerdo e o judeu sangrava na cabeça. Morreu na mesma noite, ao meu lado, bem dentro da mesquita. Eu precisava sair dali, pensava, e reencontrar o pelotão. Foi então que apareceu na minha frente um árabe raquítico, e isto é um pleonasmo, mestre sufi foragido. Talvez nem fosse árabe, podia ser persa, não faço a mínima idéia e, naquela altura, dava na mesma. Tampouco importa agora. Fosse ele o que fosse, mais importante foi o que ele me disse naquela noite. Isso depois de me ajudar a enterrar o judeu dentro da mesquita e de fazer um curativo no meu ombro esquerdo. Ele se chamava Hallaj e me disse que se queremos algo devemos enfiar o pé na porta e arrombá-la. Deve ter sido metaforicamente, porque logo completou que isso fazia o homem, mas que o verdadeiro deus, que não era o deus dos homens, e sim apenas o deus, ou Alá, seria encontrado apenas por aqueles que o vislumbrassem em estado de êxtase. Quase nada do que ele dizia para mim fazia sentido algum, era místico demais, complicado demais, esotérico demais. Acabei adormecendo e quando amanheceu Hallaj desaparecera. Consegui alcançar o pelotão. Passei seis dias na enfermaria e no sétimo dia retornei ao front. Ainda lutaríamos por mais quatro semanas, até que as famílias entrassem num acordo quanto ao petróleo e dessem por acabada a carnificina. E era através da carnificina que eu vislumbrava em êxtase o tal do deus propagado pelo enigmático mestre sufi. Hoje quase compreendo o que ele tentara me dizer.

 

 

Rodrigo Novaes de Almeida (Brasil, Rio de Janeiro, RJ-1976). 
Escritor e jornalista. Publicou, pela Multifoco Editora, o livro de contos “Rapsódias – Primeiras Histórias Breves” (2009), pela Mojo Books, a ficção “A saga de Lucifere”, e participou das antologias Portal Stalker, Portal Fundação e Portal 2001 (org. Nelson de Oliveira). Colunista do http://o-bule.blogspot.com/ Bloga em http://bit.ly/RnaBlog 
Contato: 
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