REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

 




"Beauty is Truth, Truth is Beauty”
(Keats) 

“Il faudrait que ‘dieu’ ne soit nommé qu’en passant, et comme passant”
(Jean Luc Nancy) 

“Grâce à l'art, l'individu humain peut atteindre l'absolu”
(Tzvetan Todorov) 

“La Estética debiera desaparecer de los planes de estúdio, porque de la vida real del arte há desaparecido hace tiempo”
(Félix Duque) 

“Mon mouvement a un terme. Je l’appellerai ‘Dieu’”
(Jean-Claude Coquet)

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

A estética,

na fronteira da experiência de Deus

 

   
   
   
   
   
   
   
    Resumo
 

A estética está dentro da função das coisas, como percepção e valor, e não apenas como meio – haverá um prazer dos meios? A experiência de Deus não se reduz à experiência do logos, é também uma experiência estética – um complexo de emoções e paixões – na fronteira dos nomes, do mundo e do corpo.

Teses:

  1. falar é tocar a fronteira do outro, que passa, antes de mais, pelo corpo.

  2. a experiência de Deus faz-se na fronteira (dos nomes, das coisas) como uma relação que não anula a passagem (do vento).

O termo aisthésis designa a apreensão dos dados da experiência através dos órgãos dos nossos sentidos e do espírito, e corresponde a um outro conceito ocidental: o de beleza. Beleza na nossa cultura é Venere, Vénus, donde derivam venere e venéreo. Define-se sinaleticamente, como aquilo que suscita prazer no ser visto. Na perspectiva clássica, a primeira condição do belo consiste na devida proporção ou consonância das partes, mais a clareza (S. Tomás). Cada parte deve trazer em si pelo menos o sentido do Todo. Da estética clássica a Shaftesbury e a Lessing, é belo ainda o que é harmonioso e proporcional. A especificidade de uma obra de arte está na sua aspiração para produzir beleza, definida como uma harmonia dos seus elementos constitutivos, sem submissão a um objectivo exterior. Para haver aisthésis o objecto teria de ser fosse claro, articulado, como uma forma geométrica ou anatómica. Há um sentido de aisthésis mais comum: para Tucídedes, são aisthamenoi as pessoas de bom sentido, que vêm as coisas como elas são, em posse das suas faculdades. Como se vê, o termo evolui e outros sentidos lhe abriram o caminho. Estesia quer dizer percepção – o espaço onde o corpo é de certo modo perceptivamente empenhado com o mundo e o habitat. O habitat é uma questão de estesia: a casa é um mundo. Seria preferível falar de bem-estar e mal-estar, em vez de belo e bruto. Gaston Bachelard diz-nos que é preciso fazer topoanálise, só assim sentimos o mundo como topofilia ou topofobia: há espaços amados e odiados: “A topo-análise é o estudo psicológico sistemático dos sítios da nossa vida íntima” (Poétique de l’espace, p. 27). Não podemos pensar o mundo como um lugar belo ou bruto, tal é fazer um juízo externo, estético avaliativo, cultural, objectivado, por um momento em que estamos incluídos no habitat. Melhor é pensar natal, como casa onde se nasce, entre o social e o biológico. Que é uma casa? Mansio (mansão) de manere, quer dizer “habitar” no habitat familiar que representa a oikos, sendo por isso o lugar em que nos mantemos, na permanência e na duração. O prazer de estar em casa não se reduz a uma função (económica ou ecológica). Uma bicicleta não serve só para ir a li ou acolá, entre está o vento e o risco de cair. A estética está dentro da função das coisas. A casa é um valor: casa-prisão, lugar de intimidade, o sentir-se à vontade – a liberdade de se encontrar consigo mesmo.

 
 

 

O termo “estética” (literalmente “ciência da percepção”) aparece num tratado Aesthetica (1750) que Alexander Baumgarten consagrará à nova disciplina. O termo correspondia então ao ideal ocidental em que a percepção compreensiva, a arte, o belo, o gosto, o prazer desinteressado faziam um único conjunto. Que é a estética desde Baumgarten, Burk e Kant senão a recepção que o homem de gosto fazia dos objectos belos, fossem santuários ou condensadores do poder (os palácios barrocos)? O cristianismo trouxe à estética a ideia de criação, antes de mais, na junção do plotinismo e do aristotelismo. “A beleza visível, diz no começo do século XIII Guilherme de Auvergne, define-se ou pela figura e a posição das partes no interior de um todo, ou então pela cor, ou ainda por estes dois caracteres juntos, seja porque os justapomos ou porque consideramos a relação de harmonia que os refere um ao outro.” Alberto Magno deixa-nos uma outra síntese desse entendimento da beleza: a proporção é a matéria, a luz a determinação formal da substância. O génio humano na terra imita o Génio supremo. Um cardeal, Nicolau de Cusa (XV) define o novo dispositivo mimético deste modo: “O homem é um outro Deus … enquanto criador do pensamento e das obras de arte”. Encontramos ecos desta concepção da beleza na obra ainda recente de G. Barzaghi, para quem o belo é a projecção do sujeito, a projecção do entendimento absoluto do Absoluto nas partes singulares[1]. O belo é o modo que cada objecto tem enquanto é investido pela experiência do Absoluto que se chama exactamente experiência estética. Porém, o optimismo estético que conheceu a Idade Média, em que a arte é subordinada à fé, o carácter ancilar da arte como tal vai ser suplantado pela estética de Alberti (De re aedificatoria, 1452). O Quattrocento representa já a laicização da arte. O fim da Renascença é marcado pelo misticismo (Teresa de Ávila) ou o estranho (Paracelso, Böeme), pelo despojamento da Contra-Reforma ou o maneirismo do barroco, outros tantos modos de entender a experiência estética. Com Kant (Crítica do juízo, 1790) recusa-se a ideia segundo a qual é possível fixar uma regra a partir de que se possa ser obrigado a reconhecer a beleza duma coisa. O juízo estético é subjectivo, variável, opondo-se ao juízo lógico, determinante, assente em conceitos. “É belo o que agrada universalmente sem conceito”. Mas nós saímos há muito desse paradigma da arte.  

O século XX é o primeiro a fixar-se como objectivo uma arte ateia, uma arte verdadeiramente materialista”[2]. Os tempos modernos vão de par com a secularização da experiência religiosa e a sacralização da arte. Hegel passou um certificado de morte à arte, como Gadamer chamou a atenção para a falta de sentido da estética. O veredicto de Hegel mantém-se ainda hoje: a função sacral da arte (a apresentação sensível da Ideia) desapareceu das sociedades ocidentais. Pode objectar-se que o protestantismo (e Hegel) é iconoclasta. Porém, a guerra entre iconófobos e iconófilos não tem fim à vista. Vogt-Göcknil fala da catedral como algo que nos transmite uma verdadeira informação plástica que traduz o modo como ela informa a nossa sensibilidade. A arte tornou-se “selvagem” (já com Hoffmann e Berlioz) e ocupa as zonas mais obscuras da existência. A arte do século XX, do Carré blanc sur fond blanc de Malevitch a En attendant Godot de Beckett, dos silêncios de Webern às Intégrales de Varèse é um programa do homem sem Deus. A arte pode continuar a existir como ornamentação, como biblots, expressão de determinado status social, como “decorado” da casa do burguês ou como “troféu”, como despojos da história amontoados num museu nacional para fazer ver quem ganhou na corrida para a Fisrt Nation in the World (caso da Smithsonian Institution, com 19 museus ao largo do mall de Washington). O facto é que a arte perdeu a sua função transcendente que consistia em veicular e tornar visíveis valores sagrados (uma Mitologia da razão). Se entendemos por obra de arte aquela arte que deixa transparecer o Sagrado (não o divino) nenhuma época foi mais prolífica do que a da segunda metade do século XX. A arte deixou, entretanto de ter por objecto o belo, como deixou de estar ligada ao prazer e ao gosto. Em vez de estética, fala-se hoje de “filosofia da arte”, de “teoria da arte” ou de “história da arte”, de design. Se a sociedade está “estetizada”, isso significa que o design se tornou o seu “estilo de vida”: a beleza chega-nos de modo industrial através dos objectos de uso quotidiano – o imobiliário urbano ou a “nouvelle cuisine”. O funcionalismo minimalista tem o seu habitat na arquitectura de fábricas, nos Centros Comerciais e restaurantes. O design usurpa hoje o território da arte ornamental de antanho, dando razão a Hegel que dizia que a extensão omnímoda do ornamento e do arabesco usurpa no mundo burguês capitalista a função que outrora tinha a poesia e a arte. Com o design a estética clássica tornou-se quase impossível. É à volta do industrial design que hoje se renovam os temas, a noção, as motivações da estética tradicional. O design é hoje um agente vital de inovação. O desafio dado hoje ao design consiste em conjugar a investigação tecnológica aos processos culturais. Um desafio que não vem já ligado apenas à forma, ao estilo, à qualidade estética e dos materiais, mas que se torna processo de regeneração em função da imitação de novos conteúdos e de uma nova modalidade no trabalho quotidiano das empresas. Na sua acepção de projecto, o design entra inteiramente no processo produtivo, da análise do contexto até à emissão sobre o mercado, abrangendo temas como a sustentabilidade, a formação, a função estratégica da cultura para a qualificação competitiva de um território, da sua economia, da sua qualidade de vida. Designer e empresas, sistema de representação, instituições e universidades, são hoje elementos de uma rede que pode constituir um laboratório de desenvolvimento baseado na continuidade da interacção interdisciplinar e sobre a renovação de competências, do fazer e do projectar. Neste contexto a criatividade assume um papel decisivo para a diferenciação de produtos e serviços mas sobretudo que elemento propulsar de uma nova economia da cultura, capaz de renovar a cultura da economia. Não falta quem entenda que a arte – a Culture in Action - é um conceito que se pode traduzir por Auxílio Social – que teria hoje por missão contribuir para a qualidade de vida! Ora, nem tudo na arte de hoje se reduz a uma niilismo passivo por saturação hiperestética que leva necessariamente à anestesia (Nietzsche chamava-lhe “budismo europeu”).   

 

  A noção de fronteira
 

Partamos da ideia de fronteira e de horizonte (de expectativa) seguindo U. Eco que num ensaio sobre a noção de limite nos diz que para ele esta é uma ideia fundamental da latinidade. “Segundo o racionalismo grego – de Platão a Aristóteles e para além – conhecer, é conhecer pela causa. Mesmo definir Deus significa definir uma causa a montante da qual não há mais nenhuma outra causa”[3]. Reconhecemos aqui o modo de raciocínio típico do racionalismo ocidental: se a então b. Para o racionalismo latino, o princípio que não pode ser posto em causa é a noção de limes, de fronteira, logo de limite. Sem reconhecimento duma fronteira não há civitas. “As pontes são sacrílegas porque franqueiam o sulcus, o círculo de água que define os limites da cidade: é por isso que a sua construção não se pode fazer senão sob o estrito controlo ritual do pontifex. A ideologia da Pax romana funda-se na precisão das fronteiras: a força do Império reside no facto de saber sobre que vallum, no interior do que limen é preciso instalar a defesa[4]. Donde o medo dos Bárbaros (nómadas que erram de terra em terra como se fosse sua, sempre a deixá-la para trás). Tudo tem a sua fronteira, mesmo o tempo: não podemos apagar o que foi. Donde a noção de ordem ou de ablativo absoluto. Eco cita S. Tomás sobre uma questão célebre: “utrum Deus posit virgine, reparare” (questio quadlibetalis, V, 2,3). Deus tem o poder de perdoar e até, por milagre reconduzir uma virgem à sua integridade corporal. Mas mesmo Deus não pode fazer que o que foi não seja, seria violar as leis temporais, contrário à sual natureza. Exercício escolástico, sem dúvida, mas que indicia um princípio lógico. Mesmo para Deus, diz Eco, Alea jacta est. Como se vê, a noção de fronteira implica a noção de limite (a não passar) e de controlo. Do mesmo modo que o infinito não está capturado na forma, mas transita pela forma, assim nenhuma forma pode capturar Deus porque a própria forma se define como abertura infinita, se a vemos como acontecimento e advento.

 

  Modos de experiência
 

Estamos sempre a ser afectados. A estrutura da paixão é ternária: acção, paixão, acção”. A experiência, consiste numa prova no interior da qual um domínio eventual se adquire historicamente graças à repetição do acto, até ao hábito, que transforma o ensaio em sabedoria ou em saber vivido de longa data. O homem de experiência, nos Gregos, é um velho, cuja sabedoria resulta dum saber experimentado, longamente vivido, senão um mestre da arte, cuja prática – médica, militar ou artística – resulta das qualidades pacientemente desenvolvidas no contacto repetido dos seus sentidos com as formas e as matérias sobre as quais eles se exercem. O velho Céfalo, pai de Lísias é o tipo acabado do homem de experiência platónico (Rep., I). Em ambos os casos, trata-se duma fina sensibilidade finamente aguçada no contacto do mundo. Mas o saber da experiência é o saber do nível da opinião, da doxa. O conhecimento do real supõe que deixemos o nível da experiência, que nos convertamos ao inteligível. Uma outra concepção do que é a experiência (interior) ressalta do primeiro capítulo de L'Expérience intérieure de Bataille e que se intitula “Critique de la servitude intérieure (et du mysticisme)”. Aquilo a que Bataille chama experiência interior é bem o arrebatamento místico, mas sem dogma, sem Deus nem ligação institucional. Helène Cixous vai mais longe ainda: “La foi: mon mouvement, j’existe Dieu”[5].  

Deixemos Platão e Kant e façamos apelo à semiótica. A fé na regularidade do horizonte da experiência, que já Hume considerava como a condição necessária para o conhecimento. Thomas Sebeok dá-lhe outro nome: “semiosfera”, indicando com este termo o universo dos signos em que estamos mergulhados enquanto sujeitos interpretantes e objectos interpretados. Os pássaros de Borges, como as árvores da nossa floresta semiótica participam daquilo a que Ch. S. Pierce chamou os “três universos da experiência”. O primeiro inclui “as puras ideias (airy nothings) às quais a mente do poeta, do matemático puro ou de um outro poderia fornecer uma morada e um nome no interior daquela mente” (CO 6.455)[6]. O segundo universo é o da ocorrência bruta (Brute Actuality) em que encontramos coisas e factos, objectos-significados a que chamamos floresta de árvores e que é o mundo do senso comum. O terceiro é o universo dos signos que “compreende cada coisa cujo ser consiste numa capacidade activa para estabelecer relações entre diferentes objectos”. Tudo o que responde ao terceiro universo corresponde a um signo. Não ao puro e simples corpo do signo, mas á sua alma (the Sign’s Soul), a qual realiza a própria essência ao servir de faculdade intermediária entre o seu objecto (o seu significado) e uma mente. Uma consciência viva, o crescimento duma planta, mas também as instituições humanas, uma imprevista fortuna ou um movimento social pertencem de direito ao terceiro universo, o da relação sígnica: qualidades, factos e leis. Os pássaros de Borges não são incognoscíveis, nem têm significados públicos. Para acederem ao signo devem primeiro tornar-se o analogon de si mesmos, encontrando caminho num códice ou na linguagem. O rumor duma árvore que cai sem que ninguém o escute não é de facto um rumor. É exactamente um airy nothing cuja existência consiste na pura capacidade de ser pensado. Pertence ao primeiro universo, não ao terceiro. Faz parte da semiosfera. Toca-nos como signo, conversação ou escrita só enquanto signo do seu ter sido pensado. Tomar por boa a pertença a um airy nothing ao terceiro universo da experiência e daí negar o significado seria como concluir que Deus não é omnipotente (segundo o exemplo de Husserl) porque não pode tocar o violino uma equação de segundo grau ou que a linguagem não tem sentido (Jakobson) porque pode dizer que as ideias verdes dormem furiosamente sem cor. Entre a ocorrência bruta de um dado e a prova da existência de Deus há um espaço lógico não cumulável. Mesmo Deus é uma abdução, a mais arriscada de todas e todavia a mais sedutora porque permite juntar os três universos da Qualidade, do facto e da Lei, com uma elegância e um sentido de completude que nenhum outro raciocínio possui. No sistema peirceano Deus não garante nem a natureza nem o mundo. É antes a livre actividade do espírito. A hipótese Deus é uma produção espontânea, originada no que Peirce chama “instinto para o jogo”.

 

  Que Deus é esse nas fronteiras da estética?
 

Retomemos as teses iniciais. Falar é tocar a fronteira do outro que passa, antes de mais, pelo corpo. Compreendo um corpo (seja dum outro ou dum objecto) na medida em que eu sou e tenho um corpo. O meu corpo é a condição de possibilidade da minha experiência sensível. Mas o movimento do corpo é sempre movido pela emoção. A realidade da linguagem está em relação directa com o mundo via o corpo próprio, a percepção, a emoção. O discurso é uma prega somática do dizer, como tão bem o entendem os místicos. O corpo é Corpus Ego. A relação de alteridade define-se como um excedente estranho à totalidade; uma relação de inadequação, uma transcendência, de infinition – algo como aquilo a que Descartes chamava a ideia do infinito em nós. Lévinas em Autrement qu’être ou Totalité et Infini ajuda-nos a perceber que o corpo implica que o olhar do outro, ao guardar a sua diferença, me olha numa relação de não-indiferença. Trata-se de descobrir a alteridade no centro da identidade, o outro no mesmo, sem se deixar assimilar por ele. Trata-se de uma relação de proximidade e de implicação: “La tache principale qui est derrière tous ces efforts consiste à penser l’autre-dans-le-même sans penser l’autre comme un autre même. Le dans ne signifie pas une assimilation”[7]. Que Deus é esse nas fronteiras da estética? Um deus à semelhança do que o paganismo (romano) conhece e que Lyotard analisa em  Economie libidinale: “Chaque dieu serait le nom d'une intensité de l'être; à chaque fois que dans l'écoulement du devenir on remarque une accélération ou une décélération, un changement de vitesse, on lui attribuerait le nom d'un dieu”. "Et pour chaque branchement, un nom divin, pour chaque cri, intensité et branchement qu'apportent les rencontres attendues et inattendues, un petit dieu, une petite déesse, qui a l'air de ne servir à rien quand on le regarde avec les globuleux yeux tristes platonico-chrétiens, qui ne sert à rien en effet, mais qui est un nom de passage d'émotions." (p. 17) Não era esse o melhor modo de reconhecer as diferenças irredutíveis e as singularidades destas intensidades – mais do que a sua distribuição (como a apresenta o cristianismo agostiniano) a partir do lugar vazio e sempre igual de Deus? “Deus que vela a sua face não é, pensamos, uma abstracção de teólogo nem uma imagem de poeta. É a hora em que o indivíduo justo não encontra nenhum recurso exterior, em que nenhuma instituição o protege, em que a consolação da presença divina no sentimento religioso infantil se nega também, em que o indivíduo apenas pode triunfar em sua consciência, ou seja, necessariamente no sofrimento. …Ele (o sofrimento) revela um Deus que, renunciando a toda a manifestação solícita, convoca à plena maturidade do homem responsável integralmente. Mas no mesmo instante, este Deus que vela a sua face e abandona o justo à sua justiça sem triunfo – este Deus longínquo – vem do interior”[8]. Não temos que subscrever a ideia de Lévinas que pensa aqui a relação do justo que sofre (judeu) com o seu Deus, reduzindo a experiência de Deus ao sofrimento. Israel deixou há muito de ser uma “categoria religiosa”, passando de vítima a agressor. Interessa a ideia da experiência íntima de Deus: que o deus longínquo compareça ao sofrimento do justo. Por onde passa Deus se a fé em Deus é tão somente confiança num deus desconhecido, de que nenhuma forma se pode apropriar, nem senhor, nem rei, nem juiz? Pela experiência, dizemos. Mas não existe “experiência pura” e sobretudo a da “transcendência completa (e) da alteridade pura”, donde que “nenhuma Revelação com um R maiúsculo pode ser dada na fenomenalidade[9]. Não temos, pois, experiência do que ultrapassa as condições de possibilidade da experiência. J.L. Marion propõe uma solução dos “fenómenos saturados” dizendo que há fenómenos que não se manifestam sob o modo dos objectos. A hipótese duma saturação do visível através da intuição não é apenas possível mas inevitável[10]. Eis como ele define aquilo a que chama fenómeno saturante: “aquele cujo dado manifesto ultrapassa não apenas aquilo que um olhar humano pode suportar sem cegar e morrer, mas aquilo que o mundo na sua finitude essencial pode receber e conter”[11].

 

  Dizer Deus
 

Uma primeira questão se nos põe quando se trata de falar de Deus. Antes de mais, como não falar de Deus (segundo a metafísica, v.g)? (Derrida Psyché, 1987). E se o “Deus (que) vem à ideia” fosse o do face-a-face com o próximo? “La manifestation de soi à l’autre par la parole, parole agonique qui lutte pour sa vérité, est une épreuve, un souffrir Dieu, un pâtir Dieu, une théopathie.” En quoi la parole de la prière est blessée par son destinataire. Et c’est dans cette blessure qu’elle tire toute sa substance et sa force, tant “elle apprend de cette épreuve” (Saggi su arte e tempo). Fazemos a experiência de Deus pela oração, fenómeno saturado, como a música, que excede as categorias e os princípios do entendimento. Oração, invocação, apelo, endereço, imploração, celebração, saudação são outros tantos modos da relação com o infinito, modulações do sopro, palavras do sopro, pneumáticas, em que importa mais o sopro do que as palavras. A poética dos Pensées de Pascal aproxima-se da oração. O “divertissement” exila a alma na exterioridade: “Nous sommes pleins de choses qui nous jettent au dehors” (Fr. 464 B/176 S). Como os poetas espirituais do século XVII, mas através da prosa, Pascal confere às palavras uma dimensão orante. O sintagma “teologia negativa” não diz correctamente aquilo de que se trata – o momento da negação inscreve-se no interior de uma tripla determinação que articula o discurso em (1) via affirmativa, (b) via negativa e sobretudo (3) via eminentiae. Será preferível falar de “teologia mística” (como Dionísio). Que jogo de linguagem poderá dispensar a afirmação e a negação, o verdadeiro e o falso? A predicação? Não, mas, como Aristóteles previra, “A oração é certamente um discurso (logos) não sendo nem verdadeiro nem falso”[12]. Se a estética não se distingue hoje do design como pode ela ser uma nova fronteira da experiência de Deus?

Mas a linguagem é indigente, é pobre de mundo, como o animal ou a pedra. “A língua que fala mata na boca a língua que saboreia”, escreve M. Serres, que logo acrescenta: “os aperitivos sem gosto anestesiam a língua e a linguagem. A linguagem anestesia a boca como o fazem as bebidas industriais ou as drogas farmacêuticas. Boca de ouro dos bem-falantes, metálica e frígida”. Porém, é através da linguagem que primeiramente fazemos a experiência de Deus, em razão do depósito de confiança que o homem detém, como diria Ibn Arabi no seu Tratado do amor. Este depósito de confiança é a palavra, é a abertura do sentido sem clausura. Nancy interpreta esta confiança deste modo: “são os deuses que nos fazem falar. A linguagem é divina porque nos vem de fora e a ela volta…os deuses são eles próprios linguagem: nomes, mitos, apelos”[13]. O conceito, dizia Barthes, “nasce da identificação do não idêntico”. O conceito é a “força redutora do diferente”. Como falar então? A resposta de Barthes: “Par métaphores. Substituer la métaphore au concept: écrire”[14]. A metáfora é expressão da “iconicidade e da primeiridade” e funda-se na relação “agapástica”, diria Peirce[15]. “Nós temos a experiência fundamental de um Limite que a linguagem pode dizer por antecipação duma única maneira, um limite para lá do qual ela se apaga em silêncio: é a experiência da Morte”[16]. Deus é o horizonte da nossa linguagem (latens deitas). “Certamente é um Deus que se apresenta enquanto pura negatividade, puro Limite, puro “Não”, isto é como aquilo de que a linguagem não deve ou pode falar. Deste ponto de vista, é Algo de muito diferente do Deus das religiões reveladas, ou então apenas retém dele os traços mais severos, os do único Senhor da Interdição, incapaz de dizer “crescei e multiplicai-vos” e repetindo apenas “não comerás do fruto desta árvore”[17]. Se a estética não se distingue hoje do design como pode ela ser uma nova fronteira da experiência de Deus? Deus é uma construção da nossa linguagem: mais trabalhamos nela, mais vacila. Encontra-se na vacuidade de todas as construções. Também se pode dizer que o movimento da linguagem é o espaço em que se elabora a experiência de Deus: há sempre uma relação estreita entre a maneira de dizer e o conteúdo do que há a dizer[18]. Deus é o nome do desmoronamento sem fundo dessa desertificação sem fim da linguagem. Ou da permanente interrogação sobre que forma de presença lhe atribuir no meio dos seres. O traço dessa operação negativa inscreve-se sobre o acontecimento (o vestígio é um ferimento). Ele não é isso que há: ele não é isso que dá, está para além de todos os dons (Silesius). Lévinas fala do encontro do rosto do outro como um choque, uma “epifania” ou uma “revelação”, isto é um acontecimento que surpreende necessariamente o sujeito, ou ainda lhe faz mal, um mal próximo da dor de ver este rosto ameaçado pela violência e a morte que aviva o sentido da responsabilidade infinita de mim diante do outro. Como o acolhimento da palavra revelada inspira a razão humana a coloca em diapasão do Infinito impedindo-lhe pensar que o sentido começa com ela, o acolhimento do rosto abala as certezas que cada um tenta ter sobre o outro e sobre si mesmo. Para Lévinas esta é mesmo uma experiência do Infinito e mesmo “a experiência por excelência” (TI, p. 170). Nós fazemos a experiência de Deus pelo sofrimento, essa é a tese de Lévinas. Que lugar ocupa a dor como condição da definição do sujeito no mundo actual? Inibir a dor é inibir a memória da colectividade humana – evitar o envelhecimento mediante uma languidez programada da existência? A perda do carácter grave do corpo. “Notre souffrance: nous savoir démunis d’horizons et, avec eux, de justifications des malheurs (maladies, injustices) et de fondements pour la punition des crimes (pour la désignation des ‘méchants’). C’est là ce que veut dire l’autodissolution de l’Occident dans le déploiement de sa logique in-finie (dépourvue de fins), qui forme le revers de l’infini logique (la fine n soi à chaque instant presente: l’avers du suicide qui affirme ce présent comme cessation, non comme ponctuation). Contre cette souffrance de l’in-fini (le capital, l’équivalence, mauvais infini), il faut une différentiation, une évaluation autre, et donc une ‘adoration’”[19].

 

  Da linguagem somática
 

Vivemos sob a tirania do logos. Como se apenas houvesse enunciados cognitivos. Como se os enunciados somáticos estivessem apenas reservados às mulheres como seres sensíveis. Helène Cixoux exprime admiravelmente o cenário em que  se trava a guerra do logos: «Oui il y a une tête qu’il faut perdre, la tête qui sait c’est-à-dire qui croit savoir, trop vite, celle que Proust dénonce et fuit, cette tête à intelligence qui empêche la sensation de trouver son nom et les arbres aux tendres bras tendus en supplication de ressusciter. Car ce sont ceux qui croient savoir qui sont les vrais crédules, les croyants, les arrivés, les immobiles. Alors que ceux qui sont en promenade et ne savent pas, et sont tentés par les sirènes de l’oubli et de la mémoire, et scrutent le morceau de rideau vert tendu devant l’écran de verre brisé en se demandant ce qui leur arrive, ceux-là approchent du point d’apocalypse. Une ivresse leur souffle qu’elle va avoir lieu, elle va avoir lieu... Les temps sont proches. Voici: les prisons s’écroulent. Les grilles ouvrent grand leurs barreaux.»[20]  As beguinas sabiam-no melhor ainda. O Evangelho diz-nos que há um modo não linguístico de « tocar » o corpo do Outro. No festim de Betânia um perfume precioso se derrama da mão de Maria Madalena sobre o corpo do Cristo, ungido, e o odor esquisito enche a casa. Com este gesto ela dá-lhe um nome: Cristo. O vinho circula em nós e entre nós, corpos em comunhão: isto é o meu sangue. Nós somos um corpo unânime. Madalena aproxima-se com um frasco de alabastro cheio de nardo precioso na mão, derrama-o  sobre a cabeça , dizem uns, sobre os pés, dizem outros, ungiu o corpo da linguagem e enxugou-o com o seus cabelos. Estaria lá Lázaro, ressuscitado antes, ameaçado de morte ainda; talvez o leproso Simão presidisse à mesa. Último festim antes da última Ceia, festim de perfume e ceia do sangue e do vinho, ceia em casa de Lázaro ou Simão em que os convidados, entre eles, Judas o Iscariote, protestam: “poderíamos ter vendido este nardo e dá-los aos pobres”. Deixai-a fazer, diz o Verbo, ela embalsama o meu corpo como para a minha sepultura. O que ela faz será mais tarde guardado em sua memória. O dinheiro não tem cheiro. Vendei o nardo. Não toqueis no vaso de alabastro, evitai a unção. Judas tenta salvar o salvador. Evitai de lhe dar o cheiro que o marca e o faz notar. O dinheiro, anónimo, não designa ninguém e na mão da multidão logo desaparece. Judas tenta salvar o verbo da inevitável mudança do perfume em veneno. Assumirá a mancha sobre si. Judas estima em 300 denários o valor do perfume de luxo, o verbo será avaliado por 30 peças de prata. Quanto custa o resgate do mundo? Pagou em vida e corpo e sangue? O verbo não tem cheiro, é preciso ungi-lo; a prata nunca terá cheiro. A linguagem dos odores desapareceu, expulsa pela competência dos algoritmos, a química dos perfumes alinha os seus cálculos e moléculas. O verbo nasce do ventre duma mulher. Chamo-te Cristo, diz Pedro. O homem diz, a mulher faz: ele tira o seu nome da unção, bálsamo derramado pela mulher, perfume enxugado pelos seus cabelos. Cristo significa tocado ligeiramente, aflorado. Uma mulher se aproximou dele e enxugou os seus pés com os seus cabelos. Marcado sobre o corpo: o corpo do verbo traz consigo a traço da escrita. A vida e a morte do verbo juntam o escrito e o dito. O odor marca de longe e os leões acorrem: o perfume traz a morte. Madalena é a língua odorante que muito tempo se cheirou na Igreja. Que o teu corpo não se torne estátua nem túmulo, cadáver antes da agonia, morte antes de morrer; evita a anestesia, droga, narcótica; acautela-te do torpor da língua, foge das culturas de proibição. A sabedoria emerge do corpo. Teme a rigidez e o frio do mármore. A estesia elimina a anestesia (Serres, 1985: 205). Acolhe o dom, recusa a dose. Mergulhamos na cultura das mensagens, insensibilizados por elas. Não entes curar-te com fórmulas. Faz uma cura pacífica dos cinco sentidos. O cristão é um corpo tatuado, tangível, sensível, ungido. Não é o dinheiro que nos cobre nem a prata que nos torna invisíveis. O dever de fazer memória é de todos os dias. A graça escapa ao dom mesmo, à troca, a graça equivale ao perdão. A graça indica um mundo fora desse espaço. O corpo recebe sem ter de pagar. A fonte do dom, da graça, Deus, o mundo, o ar, a água, o sol, como nomeá-los? A beleza recebe-se gratuitamente. Não é Maria é a figura do amor gratuito, da beleza sensível, sem equivalentes, do amor sem balança?

 

  Do deserto
 

Só ouço o apelo do Logos quando lhe respondo por pensamentos e palavras.  Só ouço o apelo de Deus pela resposta da fé, da revolta ou da perturbação. Sentir-me-ei sempre em atraso em relação ao apelo. “A beleza já resplendia, mas os meus olhos não estavam abertos, o Logos falava já, mas eu bacharelava e não o escutava, Deus dirigia-se a mim, mas eu tinha-me inscrito nos assinantes ausentes”[21]. O princípio é que não há verbum mentis que não se deva transformar em verbum vocis (ou verbum manus). Mesmo quando fazemos a experiência de Deus no deserto. “Tende cuidado com as vossas almas. No dia em que o Senhor, vosso Deus, vos falou do seio do fogo em Horeb não vistes figura alguma” (Dt, 4,15). A evidência do Absoluto dá-se no elemento da dissemelhança. Quando os teólogos comentavam o salmo: “in imagine pertransit homo”, era para construir o tema da regio dissimilitudinis em que o homem se imaginava caminhando, à procura do seu deus, como num deserto[22]. Denis, o Areopagita, fala de uma entidade “atópica e monstruosa” das “similitudes dissemelhantes”, algo que abordava através da prescrição de “devestir imagens”: “Un feu sensible, pour ainsi dire en tout et qui resplendit sans mélange á travers tout, et pourtant séparé de tout, étant à la fois totalement lumineux et comme secret, inconnaisssable en soi s’il ne s’y adjoint unne matiére […] sous les espèces de l’or, de l’airain, du vermeil et des pierres multicolores.”[23] Que pode ver o homem que caminha nas catedrais do século XIII, pergunta Didi-Huberman?: “Il éprouvera directament les gigantesques frémissements colorés. Il verra la lumière – ratio seminalis  des uns, inchoatio formarum des autres – apparaître et se retirer, traverser la grande nef matricielle, toujours changer l’objet de sa caresse et, qualquefois, atteindre son propre visage. […] Alors, il s’éprouvera lui-même comme marchant dans la lumiére. Et il se souviendra peut-être, oint de luminosité rouge, du sang partagé sur l’autel, en face du Sinaï, pour marcher dans l’histoire des hommes la grande alliance avec l’Absent”[24]. Nenhum poema diz melhor a experiência do deserto que o Granum Sinapis de Eckhart. O caminho do deserto é o da Abgeschiedenheit, da Entbildung, da desimaginação, na medida em que importa deixar as imagens, ultrapassá-las para conhecer esta Einformichkeit, a unificação do nosso ser na única imagem que é o Verbo. A despossessão é o grão de mostarda que nos introduz no coração da vida trinitária.

 

  Da imagem
 

Devemos a Tertuliano o ter incluído a problemática da encarnação como resposta cristã à alternativa que opunha a imagem pagã à recusa da imagem bíblica. Didi-Huberman resume esse projecto assim: “extirpar uma eficácia imaginária da encarnação fora da eficácia imaginária da imitação”[25]. A imitação está ligada ao mundo visível: o idólatra sente prazer diante duma estátua de mármore; a encarnação, pelo contrário, cava na realidade o abismo do real, do impossível. O vestigium - traço e presença – opõe-se aos artifícios da representação do signum. Para Eckhart, a imagem de Deus semeada na nossa natureza” torna-se pela graça uma verdadeira assimilação. Se Deus é “visto” só o pode ser no espelho da alma através da sua imagem. Ao tornar-se totalmente imagem, a alma não tem mais nada a ver, deixa de ser o sujeito de um ver. Torna-se reflexo que nada pode reflectir para si porque é ela mesma que é o reflexo[26]. A teologia da imagem é antes de tudo uma mística trinitária: nós somos em Imagem aquilo que Deus é em poder. É na Imagem que o Intelecto e a vontade encontram o princípio das suas operações. Onde está a Imagem está também a operação da alma. Passemos do século XIV ao nosso tempo e ao cinema. O cinema pode introjectar a violência – sublimada – nas veias das nossas cidades. O massacre é encenado como espectáculo mediático. Blade Runner mostra-nos “replicantes” que atacam no centro do coração o último reduto do especificamente humano: as emoções (incluindo o sentimentalismo e a amizade) e a memória. A partir daí todos sabemos que o inimigo está dentro e que não podia ser diferenciado pelo seu corpo e conduta. “Homem” seria aquele ser capaz de solidarizar-se, não com o seu grupo identitário (até as formigas o fazem), mas com o estranho e esse “facto diferencial”: com o outro e com os outros. Ser capaz de “cuidar do Todo” como já um dos Sete Sábios, Ferécides de Siro, pedia.

 

  Da música
 

Deus passa pelo “ouvido interior da imaginação”: “o ouvido interior é a estrela polar do compositor”, dizia E. Varèse, esse alquimista do som. É ela que o conduz ao deserto. Debussy escrevia: “N’écouter les conseils de personne, sinon du vent qui passe et nous raconte l’histoire du monde”. Como Debussy, Travinski e Webern, Varèse dá à música uma liberdade inaudita: “Ne reliez ma musique avec rien d’extérieur ou d’objectif. Ne cherchez pas à y découvrir un programme descriptif. Regardez-la, s’il vous plaît, dans l’abstraction. Pensez à cette oeuvre ayant une vie propre, indépendante d’associations littéraires ou picturales.” A sua música contribuiu para libertar a linguagem musical dos diferentes poderes que a assediavam desde a Renascença e a sujeitavam a fins diversos: retóricas musicais, mensagens com teor religioso, filosófico, literário ou político. Entregar a música a si mesma era acordá-la com o Aberto: “La vérité et la beauté doivent toujours être surprises juste au-delà de notre attente; nous ne les tenons jamais”?[27] A música “toca-nos”, não como um objecto, mas como um fenómeno saturado: uma intuição que nenhum conceito poderá retomar adequadamente.

 

  Coda
 

Esquecemos o que dizia Schelling, que a razão é a potência da interrogação e da descoberta, mas também do “estupor”. É preciso imaginar a caverna para compreender que uma Forma só existe para lá das aparências que alimentam a imaginação: a razão está para lá das armadilhas da intuição sensível. A crença na monoestesia (o uso de um único sentido, o ver, v.g.) é fruto de um preconceito intelectualista: “Em todos estes mundos de percepção as esferas das sensações visuais e auditivas, olfactivas e gustativas manifestam uma compenetração muito mais íntima e um entrelaçamento mais apertado que a nossa percepção ‘teórica’ que tende a fazer sobressair as ‘qualidades’ das coisas” (Cassirer, 1988: 48). Há uma dimensão estésica da argumentação que faz ver e sentir aquilo que se tenta compreender. A arte deve, como o exigia a estética clássica, agradar, mas sobretudo instruir. Persuadir não é só provar, mas também agradar e emocionar: delectare et movere. A estética deixou há muito de servir a teologia – é uma região autónoma, pelo menos desde o século XVIII. O que significa que a sua referência teológica ou mitológica passou a ser facultativa. Depende do receptor muito mais do que do autor ou do produtor ou performer. A estética tornou-se design ou espectáculo: o feio adquiriu direito de cidade naquilo que ciosamente o século XVIII chamava  “Belles Lettres”. Os Museus e as galerias, assumem desde 1733 (British Museum) a função de serem contemplados e apreciados unicamente pelo seu valor estético. As grandes cerimónias são espectáculos esteticamente bem conseguidos – dependem de dispositivos rituais ou tecnológicos; inclinarão para aquilo a que Romain Rolland chamava a “experiência oceânica”: onde o limiar com o Santo? Os efeitos perlocucionários não são mensuráveis: situam-se no foro interior do sujeito que os acolhe. A beleza é frágil. Habitar, permanecer, construir são apenas “estações” a meio da viagem. A beleza espiritual nunca se confunde com a oração, mas alimenta-se dela e a ela conduz. O olhar orante reconhece o visível como o sacramento do invisível. A arte enquanto deleite manifesta uma recusa para pensar a morte. A arte para Pascal só tem sentido se faz nós vigilantes. O prazer estético apenas gera o vazio. A beleza é venenosa. Esta concepção da beleza que integra categorias do classicismo – o natural, a claridade – e que se inscreve no pensamento bíblico e patrístico há muito que deixou de ser o paradigma a partir do qual a arte contemporânea existe. Bruno Latour define a realidade como resistência. Dois átomos em em colisão são imanentes mesmo se nenhum espírito humano alguma vez os viu: “Since whatever resists is real, there can be no “symbolic” to add to the “real” … I am prepared  to accept that fish may be gods, stars, or food, that fish may make me ill an d play different roles in origin myths … Those who wish to separate  the “symbolic” fish from its “real” counterpart should themselves be separated and confined”[28]. O que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e contadores de mitos acerca de deidades íctias partilham é muito simplesmente isto: ninguém realmente sabe o que é um peixe. Tudo deve ser negociado com a realidade do peixe, tendo em conta os seus padrões migracionais, sacrais ou nutricionais. O peixe resiste a todos os esforços para o reduzir a um conjunto de traços conhecidos. Podemos dizer que Deus é real porque resiste a qualquer separação ou fronteira? Se o nome anula a passagem, também a nós nos anula como passantes. O mundo não é feito de formas estáveis, mas apenas de linhas da frente numa batalha ou numa história de amor entre actantes. Os estados estáveis são o resultado de numerosas forças. Concluamos com esta afirmação de Latour: “There is no natura end to (controversies...) In the end, interpretations are always stabilized by an array of forces”[29]. Todas as fixações teológicas e metafísicas de Deus nos fazem ajoelhar diante dos altares, dos templos e dos livros. O vento e o Ma (chinês), dizem o entre formas: as nuvens não estão no alto do céu, mas em toda a parte na paisagem, entre os rochedos, entre tudo; são as nuvens que colocam o entre e o entre é o que faz viver; o vazio necessário para que o “pleno” aconteça; o que é preciso para que possa passar o vento. O espírito não está fora do mundo, abre-se no meio dele. Há transformações silenciosas que fazem o seu caminho em nós, que se infiltram, se ramificam e deixa no corpo as marcas da sua passagem. Assim a passagem de Deus por nós. Podemos aceitar a inadequação da linguagem e da história para revelar totalmente os traços da sua passagem, a “súplica”, a “adoração” que suplantam a “cognição” como modos da experiência de Deus: “O Nome não nomeia Deus como uma essência; designa aquilo que passa para lá de qualquer nome…O trabalho do teólogo é silenciar o Nome e deixar que ele nos nomeie – enquanto o metafísico está obsecado com a redução do Nome à presença, anulando assim o Nome”[30]. Uma fronteira se ergue entre o criador e a criatura: passará o vento, passará o Nome e nós com eles?

 

 

[1] “Mistica cristiana come estetica assoluta”, in Divus Thomas nº 30, 2001, p. 35.

[2] Alain Badiou, Le Siècle, Paris, Seuil, 2005, p. 217.

[3] Umberto Eco, “La notion de limite”, in Divinatio. Studia culturologica series, vol. 21, 2005, p. 11.

[4]  ibidem, p. 12.

[5]  Helène Cixous, Photos de racines, Des Femmes, 1994, p. 27.

[6] “All mere Ideas, those airy nothings to which the mind of poet, pure mathematician or another might  give local habitation and a name within the mind.” (C.S. Peirce, A Neglected Argument for the Reality of God, originalmente publicado em “The Hibbert Journal”, 7, outubro 1908, pp. 90-112, agora in The Essential Peirce: Selected Philosophical Writings, Vol. 2 (1893-1913), Peirce Edition Project, Indiana University Press, 1998.

[7] Lévinas, “Questions et réponses”, in Le Dieu qui vient à l’idée, Vrin, p. 130.

[8] E. Lévinas, Difficile Liberté: essais sur le judaisme, Paris, Albin Michel, 1963, LGF, 1984, p 201-206.

[9] M. Zarader, “Phenomenologie and Transcendence”, in James E. Faulconer (éd.), Trancendence in Philosophy and Religion, Indiana UP, 2003, p. 110, 118.

[10]  Jean-Luc Marion, Le visible et le Révélé, Paris,Cerf, 2005, p. 165.

[11] Jean Luc Marion, Le croire pour le voir, Parole et Silence, 2010, p. 149.

[12]  De l’interprétation 4, 17a 4.

[13]  Jean-Luc Nancy, L’Adoration, Galilée, 2010, p. 100.101.

[14]  Barthes, Oeuvres Complètes, Seuil, 2002, Le Neutre, p. 201.

[15]  C. S. Peirce, Pragmatisme et sciences normatives, Peirce, Oeuvres II, Cerf, 2003.

[16]  Umberto Eco, art. cit., p. 26.

[17] Ibidem,  p. 28.

[18]  P. Gire, Maître Eckhart et la métaphysique de l’ Exode, Paris, Cerf, 2006.

[19] Jean-Luc Nancy, L’Adoration, Galiléee, 2010, p. 108.

[20] Héléne Cixous, Philippines, 2009, p. 84.  

[21] Jean-Louis Chrétien, Répondre. Figures de la réponse et de la responsabilité, Paris, PUF, 2007, p. 115.

[22] Didi-Huberman, L’homme qui marchait dans la couleur, Minuit, 2001, p. 20.

[23] Denys l’Aréopagite, La Hiérarchie celeste, XV, 2, 329 A-B, et XV, 7, 336 B-C, Cerf, 1970, p. 169 e 183.

[24] Didi-Huberman, op. cit.,  p. 22.

[25] Georges Didi-Huberman, L’image ouverte, Paris, Gallimard, 2007, p. 148.

[26] Alain de Libéra, Introduction à la mystique rhenane d'Albert le Grand à maître Eckhart, O.E.I.L., 1984, p. 243.

[27] Edgar Varèse, Écrits. Textes réunis et présentés par Louise Hirbour, Christian Bourgois, Musique/Passé/Présent, 1983.

[28] Bruno Latour, The Pastorization of France, Harvard University Press, 1988, p. 188.

[29] Ibidem, p. 197.

[30] Jean-Luc Marion, citado por Horner, Jean-Luc Marion: A Theo-logical Introduction, Burlington,Ashgate, 2005, pp. 212-213.

 

 

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (PORTUGAL)
Professor Associado com Agregação no Departamento de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa onde ministra as cadeiras de Semiótica, Discurso e Metodologia da Crítica e Hiperficção e Cultura.
McLuhan Fellow (Universidade de Toronto).
Presidente do CECL (Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens).
Director do Instituto de S. Tomás de Aquino (ISTA) e dos Cadernos ISTA.
Membro da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM), do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL), do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, do Comité Executivo da Associação Internacional de Estudos Semióticos, da Comissão de Creditação da Revista Faces de Eva, do Conselho Científico da Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, membro de Aconselhamento permanente do Nucleo de Estudos de Comunicaçao e Sociedade da Universidade do Minho.
Algumas publicações: Vazio Verde (1985); Dizer Deus - Ao (des)abrigo do Nome (1991); A Palavra e o espelho (2000); Visão de Túndalo - Em torno da
semiótica das visões (1988); Paixão, Discurso e Sujeito (1996); O Regresso do sagrado (1998) em colaboração com Ana Luísa Janeira, Carlos João Correia e António Carlos Carvalho; A sedução do real. Literatura e semiótica (1998); As Grandes Exposições no Mundo Ibero-Americano, coordenação com M. Estela Guedes e A.M. Cardoso de Matos (1998); Semiótica e Bíblia (1999), coordenação com M. Estela Guedes e Nuno Peiriço; Discursos e práticas alquímicas (2001), com Raquel Gonçalves; Ficção Interactiva. Para uma Poética do Hipertexto, Edições Universitárias Lusófonas (2001).

 

 

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