REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 10

 

 

 

 

Deusdimar, minha amiga!

Conforme te prometi, logo que pudesse, tô enviando hoje um meile contando a minha primeira semana no Rio de Janeiro, transferida da Saudobrás de Brasília. Tô em Pralá de Confins, aqui bem no interior da Paraíba, acabadinha de chegar, ainda mal terminando de arrumar os badulaques no meu cafofo. Ficou uma gracinha, apesar de não ter vista pro mar nem enchemices que tais. Tô exausta, amiga! Foi uma viagem do escambau, sete horas de ônibus depois do avião: Mas valeu a pena. Aqui ninguém me conhece e eu também não conheço ninguém!

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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CUNHA DE

LEIRADELLA

Feijão, repolho e beterraba

 

   
   
   
   
   
   
   
   

Segunda-Feira

Mal cheguei na Saudobrás e já adorei. Saudade pra todo lado. De tudo. De tudo, assim, do meu bem-bom de Brasília, sabe como? Não conheço ninguém no Rio de Janeiro, e também ninguém me conhece, mas valeu. Ô cidade maravilhosa, cheia de encantos mil! Só o ar que se respira, uau! Entrei no elevador e, junto, entrou o homem mais lindo deste planeta. Moreno, olhos verdes e o corpo sarado, parecendo arrebentar as costuras do terno. Das calças, principalmente. Liiiiiiiiiiiiindo, amiga! Apaixonei na hora. Tô fissuradíssima. Olhei disfarçadamente a hora no meu Swatch de pulso, cê sabe que eu adoro o meu Swatch, e fiz aquele promessão pra Santo Expedito. Santo Expedito, aquele meu santo das causas urgentes e dos problemas que precisam de pronta solução, cê lembra, né? Amiga, prometi pro meu santo ficar parada, paradíssima, na frente daquele elevador todos os dias, na entrada e na saída, se aquele corpão saradão olhasse pra mim. Rezei duas Avés bem rezadas, mas necas de piripitiba. O saradão nem pó. Saiu no andar da diretoria e fim, e lá tive eu de subir sozinha pro meu. Ah meu santo, meu santo, por quê que fizeste isso comigo, hem, meu pai? Mas escornei não. Dez minutos depois, numa boa, já conhecia o pessoal todo do setor, todo mundo me paparicando. Até meu chefe, superdelicado, botou um olhão no meu decote que nem te conto. Mas eu fiz de conta, sabe como? Primeiro dia... Ah, amiga, tô maravilhada com esta cidade. O Rio de Janeiro é lindo, lindo, e o amor é igual. Sem limites. Cheguei em casa esfomeada de tanta paparicação. Não tinha nada na geladeira e saí pra comer uma calabresa. Imagina eu, logo eu, que detesto pizza. Mas adorei. Estou apaixonada, amiga!

 

Terça-Feira

Amiga, olha só. Sabe aquele morenão saradão de quem te falei? Trombei com ele hoje no elevador. Mas diferente. Bem diferente. O corpão entrou, olhou pra mim e sorriu. Amiga, fiquei até sem ação. Boba, boba, com aquele sorriso me lambendo toda, sabe como? Preciso fazer regime. Me olhei no espelho hoje de manhã e não gostei. Botei um lápis debaixo do seio e o cotoco caidão segurou direto. O disgramado do lapisinho ficou lá debaixo coladão, imagina! E a barriga? Nem te conto, amiga!?! Horror! Um horrorão! Tô gorda! Aí, corri no supermercado e mandei ver numa dieta legal. Biscoitos, alfaces e chás. Só e olhe lá. Preciso sarar meu corpinho, muscular meu reto abdominal e firmar os cotocos pra pegar sem sutiã, sabe como? Agora, ó, tô dietíssima, amiga!

 

Quarta-Feira

Acordei com dor de cabeça. Acho que foi a folha de alface ou o biscoito do jantar. Ou o mate, que tava azedão. Mas vou desistir não. Preciso me manter firme na dieta. Tenho que emagrecer dois quilos até o fim da semana. E vou conseguir. Ah, vou! Nem que tenha que mandar ver meia dúzia de clisteres, vou conseguir. Tô balofa, amiga, comparada com aquele corpão saradão! Ah, esqueci te falar! O nome dele é Filomeno. Ouvi um colega falando na porta do elevador. E tem mais. Também já sei que se divorciou faz dois meses e tá sozinho. A moça que serve cafezinho, a Francinha, me falou. Aí, quando ele entrou no elevador, olhei pra ele e sorri, e ele me cumprimentou. Mas sorrir e olhar, é pouco, né? Preciso me insinuar mas sem parecer vulgar, sabe como? Aí, no fim do expediente, passei numa butique finérrima e mandei ver um vestido decotadão, dois números abaixo do meu. Vestiu que nem pele. Legalérrimo. Amanhã vou mandar ver, amiga!

 

Quinta-Feira

Filomeno me cumprimentou hoje, quando entrou no elevador. Seu sorriso escorreu por mim abaixo e só parou lá, cê sabe onde, né? Fiquei até dura, amiga! Ele me perguntou se eu era a saudosista que tinha vindo transferida de Brasília e eu, tadinha de mim, tremendo, tremendo, só fiz: "hum-hum". Ele volta e pergunta se eu tava gostando do Rio e eu só disse: "hum-hum". Ele pega e pergunta se eu já conhecia o pessoal  e eu só repeti: "hum-hum". Aí, ele abre aquele sorriso acabaacaba e me pergunta se eu só sabia falar "hum-hum" e eu só consegui grunhir: "hã-hã". Será que ele notou a minha tremedeira? Será que deu pra ele ver que eu tava todatoda? Ai, amiga, amiga, tô tão apaixonada! Mas tô resolvida! Amanhã vou perguntar pra ele se ele quer me mostrar o Rio de Janeiro no final de semana. Tô nervosa, amiga! Preciso me controlar e acalmar. Acho que vou quebrar meu regime hoje. Tô fazendo uma sopa de legumes. Espero que me acalme e não me engorde. Vou comer a legumada toda. Preciso dar um chega pra lá neste sufoco, amiga!

 

Sexta-Feira

Amiga! Tô arruinada! Morta! Ontem à noite não resisti e comi até! Fiz uma sopa com feijão, repolho e beterraba, e mandei ver, sabe como? Comi que comi! Menina, hoje saí de casa que nem um camião da Comlurb. Abarrotada. Empanzinada até. Um gasômetro ambulante, pior do que spray matamosca. Era só gás, já pensou! Pum! Pumpumpum e dá-lhe pum! Nem te conto, eu peidava que peidava! Amiga, cê não imagina a minha vergonha de contar isto, mas se eu não desabafar, eu me mato. Me jogo pela janela ou boto a cabeça no travesseiro e me sufoco. No ônibus foi um horror. Bastava um solavanco e lá tava eu! Um futum que nem eu mesma suportava, sabe como? Eu fazia tudo pra prender, esvaziava o pulmão, me torcia toda, apertava as pregas do olhinho, tudo! Mas não tinha jeito. O ônibus pulava e eu pum! E tome pum! Teve uma hora que alguém gritou: "Aí! Peidar até pode, mas jogar merda aqui dentro é sacanagem, viu!?! E tava certo. O que valeu é que meu Santo Expedito tava comigo e uma senhora gorda, dois bancos à minha frente, pagou o pato. Todo mundo olhava pra ela e xingava, tadinha. Ela ficou vermelha, roxa, arco-íris total, e eu só aproveitando a mudança da cor pra aliviar. Vermelha, pum! Roxa, pum, pum! Arco-íris, sai de baixo, que vai tudo! Já não era só puuum, era vruuum mesmo. Mesmo assim, o meu maior medo era soltar demais e sair um daqueles de trovão, sabe como? Amiga, só não morri de vergonha porque não era minha hora, viu? Desci no ponto correndo e corri feito que nem pega-ladrão. Pra aliviar e aproveitar o ventinho que soprava. Mas era meu dia de cu doce não. Na entrada do prédio da Saudobrás tem uma senhora que vende pastel, beijú, café, essas coisas de camelô. Eu ia passando e um freguês pegou um pastel, justo na hora em que o meu futum entendeu de mandar ver. O sujeito jogou o cujo no lixo e reclamou: Pô, dona Maria! Este pastel tá podrão, podrão, cheirando mais que bode velho, ué! Vergonha que nem te conto, amiga! Aí, entrei na Saudobrás resolvida a subir os vinte e quatro andares pela escada, pra esvaziar o gasômetro. Meu azar foi que Filomeno, mal me viu, sorriu e ficou segurando a porta, esperando. Aí, amiga, já viu, né? Recusar como? Entrei de cabeça baixa e ele, sempre me olhando e sorrindo, apertou o botão do meu andar. Eu prendi tudo, até a respiração. O elevador subia cheio, mas foi esvaziando e no décimo quinto nós ficamos sozinhos. Cheguei até a me sentir aliviada, sabe como? Quem sabe, com menos peso, o elevador andava mais rápido, né? Mas não era meu dia. Eu rezando, me torcendo, apertando as pregas, Filomeno sorrindo e, de repente, o elevador dá um tranco e as luzes apagam. A luz de emergência acendeu, Filomeno sorri, ai, aquele sorriso, amiga!, e diz pra mim: É a bruxa das sextas-feiras. Toda sexta-feira é isto. Mas a luz volta logo, logo, preocupa não. Mal sabia ele que eu não tava preocupada, eu tava era apavorada. Amiga, juro por Deus que tentei prender até. Juro mesmo! Mas não deu. Não teve jeito. A dor começou fininha, fininha, mas foi engrossando, engrossando e não deu pra aguentar. Aí, antes que saísse um que nem trovão, deixei escapar um tiquinho, sopradinho, bem devagarinho. Abaixei e fiquei respirando rápido, tentando aspirar o futum , abrindo e fechando a boca, como se tivesse me sentindo mal, com falta de ar. Já imaginou uma situação dessas? Peidar e ficar tentando aspirar o peido, pra que o homem mais lindo do mundo não perceba que cê peidou? Horror! Horrorão, amiga! Filomeno, tadinho dele, preocupado comigo, tentando me segurar, e eu aspira que aspira. Olha, se percebeu a cheirada do futum, não deu a entender. Quando achei que a catinga tinha passado, voltei a respirar normal. Disse pra ele que eu era claustrófoba e tinha hora que me sentia mal nos elevadores. Mas, mesmo pregando mentira, não era meu dia. Não era mesmo! Mal ele me ajudou a levantar, tive que soltar e foi aquele arraso. Puro bodum catingoso, sabe como? Filomeno, tadinho, azulou, mas não disse nada. Eu, mais puta que puta em dia de Sexta-Feira Santa, abaixo-me e toca de  respirar auau, que nem virgulina em trabalho de parto. Mas valeu de nada, amiga! Filomeno me olha, espantado, e tapa a boca e o nariz. Ah meu santo Expedito por quê que aquele elevador não despencou e eu não fui peidar nas profundas dos infernos, hem? Que nada, o santo não tava nem aí, e deixou foi rolar o vamos ver. Resultado, as pregas não aguentaram e o maior futum do mundo lascou no elevador até sair pelo ladrão. Filomeno, apavorado e já começando a arroxear, apertou o botão da emergência. Amiga, nem te conto! Cena triste, viu! Filomeno esmurrando a porta, gritando e esperneando, desesperado, e eu lá, na respiração cachorrinho, tentando aspirar a catinga, pedindo a Deus e a todos os santos que o elevador despencasse e eu evaporasse. O elevador não despencou, mas o fedorão foi indo, foi indo, e Filomeno se acalmou. Acalmou assim, tirou o paletó e enrolou na cabeça, e ficou respirando pelo buraco da manga. Quatro horas depois, amiga, fomos resgatados pelos bombeiros, meu gasômetro vaziinho, vaziinho, o vestido decotadão sobrando pano até na bunda, e Filomeno, tadinho, desmaiado e mais roxo do que repolho roxo roxão. Do hospital fui direta pra casa e nunca mais vi Filomeno. Queria era sumir no oco do mundo. E sumi. Pralá de Confins ninguém sabe onde fica. Nem o chefe que abonou a minha transferência imagina onde, satisfeitão por ter uma funcionária disposta a morar no cu do Judas, muito mais menos do que fedor de cavalo de bandido, sabe como? E sopa de feijão, repolho e beterraba, se alguém me convidar, jamé, eu mato, viu? Apague este meile depois de ler, tá?

Sua amiga,

Jocilene

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

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