REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

 

 

 

ESPECIAL

NICOLAU SAIÃO

NOS 20 ANOS DE “OS OBJECTOS INQUIETANTES”

Prémio Revelação/Poesia APE/IPPL -1990

Uma antologia

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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NICOLAU SAIÃO

Os objectos inquietantes

antologia -index

                                                                            Nicolau Saião
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
  LUA
 

Há palavras que toda a gente conhece

que são quase comuns a todas as pessoas

Palavras propagadas através da gelada

superfície dos números e dos tempos

que nos cercam com o seu peso imaginário

de coisas construídas.

 

Por vezes um cadáver entre as pontes

justifica a grande evidência.

 

Pensemos na palavra Lua por exemplo.

Não há ninguém que não saiba o que é a Lua.

Por presença constante em todos os espaços

paralela ao ser dos seres e dos signos

de aqui até ao infinito

a olhamos de verbo a verbo.

Mas meditemos

 

no que efectivamente significa

- ela e o seu rumor transposto

ela e o silêncio multiplicado

da sua imagem mortal.

 

No fundo   nada significa

A não ser pelo oculto existir do sensível

plano da luz e da penumbra

no mundo das cidades.

 

Está no alto   é verdade   emitindo ruídos

tão nítidos e negros tão débeis na distância

que houve que edificar um espectrómetro sonoro

a fim de lhe captar os arquejos

de animal pré-histórico. Está algures

 

num deserto da Austrália

esperando pacientemente algo de novo e vital

e o seu rosto escarlate de serpente

não é um objecto mais para o tempo da pedra

e do metal incompletos. Da sua carne

brota um falo por vezes   é uma antena

para as plantas e os lagartos perpétuos.

 

Quantas vezes

o gélido e inquietante murmúrio das areias

se confundiu na sua brancura devastada?

Ei-lo no descampado: uma sombra uma ausência

proibida e sábia

longo e espiralado como um nervo do crâneo

como um rápido sulco fotográfico

no peito em ruínas.

 

Há rostos ao longe  memória de hecatombes.

 

Não é que a Lua seja inconfessável abismo

embora tenha um corpo projectado e essencial

de vida e morte. Não falemos sequer

nos seus enquadramentos diversos

nas suas presenças repentinas, nos seus credos

ou no fugaz tecido laminar da sua

franja de esquecimento. Apenas

a palavra conta, conquanto nada ultrapasse

o exterior universo do seu Universo próprio.

 

E ainda

que tudo lhe faculte a impossibilidade

de estar nos outros como em si ou de ser afinal

matéria de febris prestígios

 - uma parede   trapos velhos   carnagem -

não está em nada não reside em nada

 

- ela não está em nada não rola sobre nada

que da boca não saia   quer seja acto ou urina

um rasgão de tiros na noite um vidro a mais

quer seja a incontável câmara do sangue

dos olhos esmagados

das negruras com que o sopro do tempo passa

 

e flutue

e penetre

e comunique

e seja enfim em todo o lado o segmento infindável

 

da dúvida.

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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