REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

 

 

A canção é uma forma particular do poema. É a poesia dançando ao som dos seus infindáveis sons e ao ritmo seus dos inúmeros ritmos. É poesia quase corpo quase a transformar-se em palavra, e palavra da poesia que almeja ser corpo. É poesia que se esboça no ser que fala e é fala do ser que quer ser da poesia.

É, mais do que tudo o mais que se diz, um momento em nós. E se o tempo - pelo menos, na aparência - não é raro, os momentos - pelo menos, na aparência - são-no.

Há, por isso, muitos poemas, mas poucas canções. Aqui deixo algumas das que marcaram encontro em mim.

Joaquim Simões

 

 
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Maria Estela Guedes  
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JOAQUIM SIMÕES

 

SEIS CANÇÕES

 

               Joaquim Simões

   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
  Chocolate

Disseste que o chocolate
que me puseste entre os lábios
tinha recheio de amor
com cem mil segredos sábios.

E por lá foste deixando
e demorando os teus dedos,
como quem quer misturar
mais um, em tantos segredos.

Saber é saborear
o sabor que o mundo tem,
se lhe soubermos juntar
o nosso sabor também.

Mas eu fiquei sem saber
ao que me soube no fim:
se aos dedos se ao chocolate,
se mais a ti ou a mim.

Por isso, agora nem sei
o que me sabe melhor:
se ao que sabe o chocolate
se o que tu sabes do amor.

   
  Borboleta preta

vinda de repente
lá do fundo do nada
uma borboleta
preta
de asa rendilhada
transparente
delicada
pousou sobre o teu corpo
nu

e tu
riste deslumbrada
e divertida
ao veres-te ainda mais
despida

   
  A tua pele

A tua pele morena
Em tons de maresia
Faz do nascer do dia
A seiva do meu corpo
Em doida correria

Transforma em melodia
A tarde morna e calma
E torna em fantasia
A dura nostalgia
Que me adoece a alma

Lapida em jóia bela
A noite sem valor
Muda o suor em estrela
Brilhante como vela
Que alumia o amor

E na nova manhã
Que traz o dia antigo
Já não é importante
A diferença entre amante
Amor, amar e amigo

   
  Andando

Vou andando, passo a passo.
Em cada passo que dou,
Passa o tempo, ao mesmo tempo,
A ser tempo que passou.

Desfaço a passada, torno
À primeira posição:
A perna voltou atrás,
Mas o tempo, esse, não.

Atrás de mim, vejo o tempo
No espaço que foi ficando:
O mundo é como o rasto
Do tempo que vai andando.

Há mais mundo, cada vez
Que o meu pé bate no chão;
O tempo sonha que é gente
No bater do coração.

E o som do pé, quando bate
Ao ritmo que vai no peito,
Faz ouvir, cá fora, o dentro
Que quer ser mundo perfeito.

A toda a volta há o espaço
Que alguém fez antes de mim.
Se o cruzo, o tempo parece
Não ter princípio nem fim…

Espaço, tempo, tempo, espaço…!
No meu corpo, em todo o lado!
E o coração torna o tempo
Mais ou menos apressado.

Talvez, se eu estiver à escuta
Enquanto vou caminhando,
Venha a fazer, acordado,
O tempo que for sonhando.

   
  Sonho de mim

Não sinto sempre o que sei
nem sempre sei o que sinto,
nem, sequer, quando me minto.
E quantas vezes pensei

sentir-me em algo, em alguém,
saber-me eu mesmo, por fim,
nesse mesmo querer bem?
E, afinal, não era assim...

Neste falhar-me, quem falha?
Como não hei-de eu errar
aquilo que desconheço?!

O que haverá que me valha?
Onde virei a encontrar
o que nem sonho que peço?

   
 

Volta não volta

(à memória de Vinícius de Moraes)

Vivo, desde há muito tempo,
perdido numa aflição,
por não perceber se caibo
dentro deste mundo ou não,
ou se ele é que já não cabe
dentro do meu coração.

A confusão surge quando
não consigo compreender
se afinal estará o mundo
a minguar sem eu ver,
ou então, devagarinho,
o coração a encolher.

Nem encontrar cabimento
em tornar-se desmedida
a medida do que foi
medido pela própria vida
para viver e ficasse
a vida, em si, dividida.

Depois vem mais a questão
do que há-de ser o sentir,
que o coração não sossega
mesmo que eu esteja a dormir
por não saber, acordado,
como ficar nem p’ra onde ir.

E talvez porque não chego
a nenhuma conclusão,
girando em redor do mundo
por dentro do coração,
lá ando eu, volta não volta,
às voltas numa canção.

 

 

JOAQUIM SIMÕES (PAÇO D'ARCOS / PORTUGAL, 1950).
Licenciou-se em Filosofia, na Universidade Católica Portuguesa. Frequentou o mestrado em Cultura Clássica da Universidade de Lisboa, sob orientação do Professor Victor Jabouille, tendo sido investigador da Linha de Acção 1 do Departamento de Línguas e Cultura Clássicas da mesma Universidade, abandonando, porém, ambas as actividades por motivo de doença. Foi professor do Ensino Secundário em diversas escolas da área de Lisboa e, para além da actividade docente, exerceu funções de orientador de estágio profissionalizante e de representante de uma delas em alguns encontros, nacionais e internacionais, sobre multiculturalidade. Em 1979, publicou um livro de poemas em edição de autor, com prefácio de Manuel Grangeio Crespo. Entre 1980 e 1983 participou no projecto de teatro para a infância e juventude do Teatro do Nosso Tempo, em Lisboa. Em 1982, em parceria com o músico Francisco (Xico Zé) Henriques, constrói um espectáculo, “Astrolábio”, composto por canções feitas a partir de poemas seus. Entre 1989 e 2010, colaborou permanentemente com Manuel Almeida e Sousa e a Mandrágora em diferentes realizações na área da performance teatral. Em 2010, colabora com Maria Morbey Henriques no espectáculo “Banjazz – Um bichinho esquisito”, levado à cena, em Fevereiro, no Centro Cultural de Belém.

 

 

© Maria Estela Guedes
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