REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

   

 

JOÃO RASTEIRO

"No ano da morte de José Saramago"

e

"Poema verde"

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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    No ano da morte de José Saramago
 

A Pilar del Río

  O coração aquece o suco prenhe dos cavalos
e de outros animais. Apenas para iludir
ou amedrontar as pequenas memórias do amor.

É aí nesse espaço e não em todos
os caminhos do pó e da lama infernais
que Blimunda e Baltazar acariciam o pojo
como dois desnudos seres disputando o sol
pela boca dos mais secretos desejos
em busca de todos os líquidos silêncios
do templo e dos múltiplos espaços inaudíveis.

Esses que traçam a sua própria peleja
de vozes. Um deus cheio de pústulas doiradas
pois o fogo imita nos corpos a eternidade da lágrima
que se oculta na sombra inclinada dos círios.

O narrador chega do branco horizonte dos lugares
da azinheira porque ainda não queria morrer
antes das colheitas das águas frescas
que já não desaguam. Mas Blimunda disse: Vem!

E a sílaba acreditou que a morte é lilás
como o amor. E que se há-de perdurar pelo clarão
de coisas assim. Eternamente lilases. A sílaba possível!

Então o narrador despediu-se das palavras rubras
abraçando-as uma por uma até a noite ser queimadura.


 
 

João Rasteiro, 2010

  Poema Verde
 

Ao Albano Martins

                      I

Nada já há a pronunciar em tua defesa
sob o viço das oliveiras. Enterra o teu segredo
num verbo apócrifo e gentio.
Oculta-o de perfil por entre a língua
que nunca possuíste na boca. Agasalha-o inteiro
até clarear o musgo na fissura do chão.
Preserva-o como se só a voz queime intacta
o sulco de uma lua de enxofre.


Ó ser,
cujas alegorias foram as sombras aprazíveis
do ígneo clarão. Como é verde a raiz duma planta
que secou, o mecanismo afectuoso da barbárie
e o curso trémulo do peregrino.
Entre o odor da terra e o calor difuso do coração,
a chuva ancorada sobre a flor de lótus
equilibrando-se corpo virado para as fogueiras
da água que pugna a seiva.


                   II

Há-de o tempo perpetuar aquela farsa arquitectónica
de um poema perfeito. Pois ermas estão as águas,
a divina força de sua granítica soberania
em nossas condenadas elegias.
Parece um lugar para amar no escuro, o indistinto
e primordial eco do anjo no Inverno?



Tu, poeta,
que deslindaste perplexo que há lodo sob as algas,
sob a pele, como uma vã condenação.
Na verdura da sílaba, em ti, qualquer crença nua
no oficio de romeiro, íntima
na sede mais forte dos líquidos, no pranto do sol,
poderá subsistir ao ensejo dos aguaceiros.
Tu, que não perduras no cântico mágico do poema,
mas tão só ciciado nas múltiplas máscaras
do tempo anterior ao acasalamento dos besouros.


                    III

Em cada árvore depois do fogo, o poema
regressa nu e a morte verde, a lágrima
corre como se uma enxurrada tolhesse as palavras
em homem e bicho, em água e sangue, em eco e cântico,
em borboleta e mariposa. Para sepultar os prados.
Falo do inexplicável sopro. Aí, tudo permanece.
E tudo é teu. Tu és o sangue, o verão e a pedra sagrada.
O poema é verde. Sinto-lhe o odor materno.
 

João Rasteiro
2010
www.nocentrodoarco.blogspot.com

 

 

JOÃO RASTEIRO (COIMBRA - PORTUGAL, 1965)
Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos, pela Universidade de Coimbra. Poeta e ensaísta, traduziu para o português vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar e Juan Carlos Garcia Hoyuelos. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro do Conselho Editorial da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento. Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Chile, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005), O Búzio de Istambul (Palimage, 2008) e Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas (Apenas Livros, 2009). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003), o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004 e o 1º prémio – na categoria de autores estrangeiros - do Premio Poesia, Prosa e Arti Figurative-Il Convívio (Verzella, Itália, 2004). Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de la Frontera (Trilce Ediciones – Salamanca). Em 2007 integrou a antología Transnatural, um projecto multidisciplinar sobre o Jardim Botánico de Coimbra. Em 2007 foi um dos poetas participantes nos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Em 2008 integrou a antologia e exposição internacional de surrealismo O Reverso do Olhar. Em 2009 integrou a antologia: “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua – antropologia de uma poética”, organizada pelo poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Em 2009 organizou um número especial (nº 44) da revista Colombiana Arquitrave sobre a poesia portuguesa mais recente: A Poesia Portuguesa hoje. Prepara-se para publicar um novo livro que se intitulará: Diacrítico. Vive e trabalha em Coimbra, no âmbito cultural da C.M.C. Mantém em permanente irrupção o sísmico fulgor do blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/ 

 

 

© Maria Estela Guedes
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