Último episódio - Já escuto o rufar dos tambores












“NÃO tenhas medo, Alexandre”, escuto o caburé-açu dizer.
“Então o senhor fala?!”, exclamo, admirado.
“Nem tudo o que dizem de mim é verdade, amigo”, prossegue a águia.
“Como sabe o meu nome?”
“Queres mesmo saber? Te achas pronto?”
“Sim, quero saber”, peço-lhe.

Sem alterar o ritmo do vôo e virando o pescoço de vez em quando para olhar-me, o gavião começa a contar: “Um dia os homens, impotentes contra a enfermidade e a morte, pediram ao Ser Supremo que lhes enviasse socorro. Então o Ser Supremo, chamado Um, mandou-me à Terra como seu representante, mas os homens não me deram atenção e não entenderam a minha linguagem de pássaro. Então retornei ao Um e pedi que me desse o dom da palavra ou enviasse à Terra um homem com poder de ajudar seus semelhantes. O Um disse-me: – volta para a Terra e mostra ao homem a sabedoria dos outros animais do meu jardim e a importância da convivência entre todas as espécies. Debaixo de uma árvore, encontrarás uma mulher adormecida; outorga a ela o dom da clarividência. Voltando à Terra, encontrei a mulher e tive relações íntimas com ela, daí nascendo um filho, o primeiro homem a compreender plenamente a minha linguagem e dos outros pássaros”.

“E quem é esse homem?”, pergunto.

“Esse homem és tu, por isso Potira conseguiu transformar-te em passarinho e entendes o que estou falando”, responde o caburé-açu.

“Então és meu pai? Não compreendo!”

“É que o ventre de uma mulher expulsou-te para a luz, e a luz te cegou, mas não precisas morrer para voltar a enxergar as coisas invisíveis, basta ajustar os símbolos à realidade, procurar o homem na paisagem da vida e fixar a vida no panorama da Terra. Anda, vê, perscruta, percorre o vale imenso e profundo. Lá está a explicação de tudo. Basta saber ouvir, pois as histórias estão tatuadas nas gentes, talhadas nas pedras, calcadas nas árvores, delineadas na terra, submersas nas águas. Todos podem lê-las. É só querer descer ao chão e escutar, com amor, os corações subterrâneos. Aí estão as legendas remotas, os mitos sagrados, os hieróglifos eternos, os totens propiciatórios. Aí estão os homens e os bichos, a música e as figuras, os hábitos e as cerimônias. Queres voltar a compreender a origem de tudo, o passado, o presente e o futuro?”.

“Sim, quero”.

“Então fecha os olhos e só torna a abrir quando eu mandar”, ordena-me a águia. Hesito. Lembro das palavras dos sabiás: “Cuidado com os gaviões e as corujas!”. Devo confiar no grande caburé?

“Estás com medo?”, pergunta ele, com os dois enormes olhos fixos sobre mim. Voamos agora acima dos outros pássaros. Como uma grande caravela a singrar a noite, o caburé-açu está todo dentro do círculo da Lua. “Enquanto for noite, não tenho que temer o caburé-açu, ave de rapina diurna”, penso, fechando os olhos, e enxergo-me, imediatamente, numa larga planície, onde marcham milhares de soldados cobertos com armaduras antigas, sujos da terra e do sangue de muitos povos. Ao lado de carros atrelados a animais esquálidos, formam infindável coluna serpenteando sob o sol a pino. Cornetas gritam, tambores ribombam e o passo das legiões levanta nuvens de poeira. Acima da massa elevam-se centenas de estandartes coroados pela águia de metal com as asas abertas, emblema da Roma imperial. Com a mente atordoada pelo alvoroço daquele exército, fecho os olhos por alguns instantes. Quando os abro novamente, já me encontro numa tribuna construída no ponto mais alto de um gigantesco coliseu, onde milhares de homens, em uniformes negros, movimentam-se, formando suas evoluções desenhos simétricos, recortados por imensas bandeiras com a cruz ariana e com a águia. Um fio de energia, como um raio, atravessa-me o corpo e captura um pedaço de minha alma a cada vez que a massa brada a estranha saudação: “Heil!”.

“O que vês ainda vai acontecer; um grande mal convulsionará as entranhas da Terra, mas não será o fim, males maiores virão”, explica o caburé-açu.

Imensa montanha levanta-se de repente diante de mim. Além dela, enxergo bela e próspera planície, cheia de bosques e cidades onde as pessoas parecem felizes.

“O que estás vendo agora é o Reino da Mentira. Parece o paraíso, mas lá estão os demônios que tramam contra tudo o que o Ser Supremo criou. Sem meu consentimento, fizeram da minha imagem símbolo. Olha mais além. O que vês?”. Terra pobre, devastada pela peste e pela guerra, miséria e pranto é o que vejo.

“O choro destes é a alegria dos que vivem além da montanha; isso também está no futuro, mas ninguém pode evitar, convém mesmo que aconteça”, explica.

Nesse instante, levanta-se do Grande Vale amazônico uma voz impressionante, não pelo tom aparentemente débil, mas pela força de suas palavras. Diz a voz: “Imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos, as coisas podem optar pela Fome umas das outras, e se devorando se devolverem como sombras do Um ao Um, ou pelo Jejum das outras”.

“De quem é a voz?”, pergunto.

“É um anjo frágil que o Um enviou para nos proteger com asas imaginárias; seus olhos atravessam névoas, nadas, sombras, as sombras que estão no vários e se tornam coisas para se darem em alimento umas às outras, enquanto aqui permanecerem, podendo esse alimento ser visível e invisível, e visíveis e invisíveis as bocas nas coisas, sempre famintas umas das outras, e também podendo ser os alimentos bênçãos e venenos, e as bocas por onde se colhe o alimento abençoadas e venenosas”, fala o caburé-açu, como que lendo meus pensamentos.

Continuo de olhos fechados, sentindo o friozinho das alturas. O caburé-açu prossegue: “Observa a imensidão do Grande Vale, que se estende entre a cordilheira e o mar. Estás inserido nessa imensidão, mas, aqui e agora, és único e tens uma missão que é só tua, a qual, mesmo que ela te pareça contraditória e impossível, perseguirás e realizarás, para que surja nova consciência e nova realidade se liberte, e tua espécie evolua e a Mãe-Terra expresse sua melodia no concerto das esferas. Estás pronto para percorrer terras, rios e mares e ouvir a palavra das árvores e dos animais. Mas apressa-te a encontrar o teu destino; caso contrário, tua existência neste mundo não valerá a pena. Quem és tu? Somente saberás se conheceres o que tua alma deseja em seu mais profundo íntimo: és aquilo que tua missão te tornar. Sabes, e então fixas um ponto: a tua meta. Vai direto a ela, sem hesitação. Não importa a velocidade, mas a determinação. Não é possível que aquilo que elegeste pertença a outro. Toma o que é teu e depois aprende a suportar a privação do outro. Não há por que lamentar tal fato: a Mãe-Terra é generosa”.

As palavras do caburé-açu soam graves e suaves, repletas de sabedoria; devo confiar inteiramente nelas? “Cuidado com os gaviões e as corujas!”, não foi o que me disseram os sabiás? “As coisas têm fome uma das outras e se devorando se devolvem do Um ao Um”, o que o caburé-açu quer dizer com isso? “Pega o que é teu e depois aprende a suportar a privação do outro”, e isso, o que significa?

“Devo confessar-lhe que não acredito em Deus”, digo ao caburé-açu, com pesar e esforço, sentindo que devia dizer toda a verdade.

“Conheço tuas idéias”, diz o caburé-açu, “as idéias que expões, e que imaginas serem o produto do teu cérebro, representam o fruto do orgulho, da preguiça e da ignorância, um erro deplorável; na verdade, não conheces a Deus, não podes conhecê-lo, e, por não o conhecer, és infeliz”.

“Eu também poderia afirmar-lhe que é o senhor quem está errado”, retruco.

“Eu nunca ousaria afirmar que possuo a verdade”, diz o caburé-açu, surpreendendo-me pela clareza e precisão das palavras. “Ninguém pode atingir, sozinho, a verdade. Esse templo, que há de tornar-se a morada digna do Todo-Poderoso, deverá ser erguido pedra por pedra, com o concurso de todos, em milhões de gerações, desde o primeiro homem até nossos dias”, acrescenta a águia.

Temeroso, permaneço de olhos fechados, enquanto o caburé-açu continua, com a voz forte, autoritária e exaltada: “Não o conheces e Ele está aqui, nas minhas próprias palavras. Também está em ti e nas palavras sacrílegas que acabas de pronunciar. Se Deus não existisse, não falarias nele. De que, em quem falávamos? A quem negavas? Quem o inventou se ele não existe? De onde nos veio a idéia deste Ser incompreensível? Por que o mundo inteiro e mesmo tu supõem a existência de um ser tão incompreensível, todo-poderoso, eterno e infinito em todos os seus atributos?”. O gavião se cala e fica em silêncio por muito tempo, um silêncio aterrador, que eu não posso e nem quero romper.

“Ele existe, mas é difícil compreendê-lo”, recomeça, por fim, enquanto vai batendo suas grandes asas. “Se duvidasse da existência de um homem, eu iria buscá-lo e trazendo-o pela mão o apresentaria. Mas, pobre mortal que sou, como poderia mostrar o Todo-Poderoso, o Eterno, o Misericordioso a um cego ou a alguém que fecha os olhos para não vê-lo, não compreendê-lo para não ver, para não compreender sua própria abjeção e sua própria depravação? Quem és tu? Imaginas-te um sábio só porque ousaste pronunciar estas palavras sacrílegas?”, prossegue a águia, fazendo sentir-me a criatura mais desprezível. E não pára: “És mais tolo e insensato que uma criança que, brincando com o mecanismo de um relógio, ousasse afirmar que não acredita no artesão que o engendrou, só porque não compreende a finalidade do relógio. É muito difícil de conhecê-lo. Desde séculos, desde o seu primeiro antepassado, o homem em vão trabalha para atingir esse conhecimento, e ainda está infinitamente longe de consegui-lo”.

Não ouso interrompê-lo nem fazer perguntas, mas, de todo o coração, desejo acreditar em suas palavras, deixar-me convencer pela lógica de seus argumentos, ou, como uma criança, ser levado por sua entonação, seu tom persuasivo e afável, pelas vibrações de voz que, às vezes, quase o impedem de falar. Todavia, o medo que sinto do caburé-açu faz renascer em mim a dúvida, esta filha dileta do demônio.

“Não compreendo que a inteligência humana não possa atingir o conhecimento ao qual o senhor se refere”, digo, num “bu, bu, bu” tartamudeante.

Em tom paternal, o caburé-açu responde-me: “Não o compreendemos com a inteligência, só através da vida conseguimos compreendê-lo. A sabedoria e a verdade supremas são como a água pura que desejamos beber. Eu poderia apanhar esta água num vaso impuro e querer julgar seu grau de pureza? Só pela minha própria purificação interior é que poderei conseguir que a água recolhida atinja um determinado grau de pureza”.

“Sim, sim, é verdade!”, respondo-lhe.

O caburé-açu continua: “A sabedoria suprema não é fundada só na razão, nas ciências profanas como a física, a história, a química, etc., nas quais se baseia o conhecimento racional. A sabedoria suprema é única. A sabedoria suprema é uma ciência, a ciência do todo, a ciência que explica toda a criação e o lugar ocupado pelo homem. Para conter essa ciência dentro de si, é indispensável purificar e regenerar o eu interior. E é por isso que, antes de conhecer, precisamos crer e aperfeiçoar-nos. É para atingir esta finalidade que nossa alma recebeu a luz que se chama consciência”.

“Sim, sim”, aprovo-o.

“Contempla teu ser interior com os olhos da alma e vês se estás contente contigo próprio. A que ponto chegaste deixando-te guiar unicamente pela razão? És jovem, inteligente, instruído, mas o que fizeste com todos os bens que te foram concedidos? Estás contente contigo mesmo e com teus atos?”, pergunta o caburé-açu.

“Não, odeio minha vida!”, respondo-lhe.

“Se a odeias, então modifica-a. Purifica-te e, à medida que fores te purificando, conhecerás a sabedoria. Examina tua vida, como a viveste? A sociedade até aqui te deu tudo e, em tuas andanças e tropelias, quase nada lhe devolveste. Nasceste pobre mas, ensoberbado pelo conhecimento que julgas ter adquirido, achas-te superior, zombas dos humildes. Não disseste que amas Potira, a pequena selvagem? Mas ainda não reconheces nela a mesma essência humana das mulheres de Lisboa”, diz o caburé-açu, e cala-se, parecendo fatigado com a longa conversa.

Receoso, abro um pouquinho os olhos e observo de soslaio os movimentos do caburé-açu, que, olhando para frente, continua planando.

“Não te disse para abrir os olhos só quando eu mandasse?!”, censura-me o gavião.

Surpreendido, torno a fechá-los, dizendo: “Agradeço-lhe suas palavras; estou inteiramente de acordo com o senhor. Mas não imagine que eu seja tão mau assim. De toda minha alma, gostaria de ser o que o senhor deseja que eu fosse; peço-lhe que me ajude, instrua-me”.

“O auxílio só pode vir do Um”, diz o caburé-açu, “mas, para obtê-lo, é preciso, antes de tudo, que creias nele. Pergunto-te: renuncias às tuas antigas convicções, acreditas agora em Deus?”.

“Sim, sim, creio em Deus”, respondo, duvidando, porém, das minhas palavras.

“Queres mesmo elevar-te até o Todo-Poderoso?”

“É o que mais desejo!”

“Então escuta”, diz o caburé, “além da pureza de costumes, precisas também amar a humanidade, ter coragem, generosidade e, mais que tudo, amar a morte. Sim, amar a morte, isso não é impossível, basta não ver nela uma implacável inimiga, mas uma amiga que liberta desta vida de misérias a alma fatigada com seus esforços virtuosos, levando-a para um lugar de recompensa e repouso”.

“Deve ser assim, mas ainda sou tão fraco que amo a minha vida, cujo sentido só agora começo a perceber”, digo-lhe, suspeitando que o gavião, com o seu palanfrório, está apenas querendo dizer que pretende comer-me. Ele nada diz, mas sei que não afasta os olhos de mim.

Apesar de voarmos muito alto, não sinto frio, suor banha meu corpo, o que acho muito estranho. Também já não ouço o fragor de asas; quero saber onde estão os outros pássaros, mas não me atrevo a abrir os olhos.

“E agora, o que estás vendo?”, pergunta o caburé-açu.

“Sete mulheres, à minha esquerda, vestidas com belas roupas indígenas e muitos colares, portando jarros d’água e instrumentos musicais, e, à direita, sete guerreiros, alinhados com suas armas. Algumas mulheres batem tambores, e todos entoam um cântico; é o que vejo”, respondo.

“Queres que te conte o significado dessa visão?”.

“Sim, quero”.

“Ela prenuncia o teu sacrifício”, explica o caburé-açu, “mas não te angustias, o que tiver de ser será; se as coisas optarem pelo Jejum, sobreviverás; se optarem pela Fome, serás devorado. Queres saber o que acho? É melhor ser devorado, pois, como diz aquele anjo: há um dom que nos é dado pelo Um para alimentar a permanência; aliado dos jejuns, esse dom é o da Amizade das coisas pelas coisas”. O gavião faz uma pequena pausa, depois diz: “Pronto, agora podes abrir os olhos!”. Hesito, pressentindo o que me espera. “Abre! O que tiver de ser será!”, insiste.

Antes de abrir os olhos, salta-me à lembrança aquele provérbio de Publílio Siro, que nunca deveria ser esquecido: “Omnis dies ordinandus est velut ultimus” (todo dia deve ser vivido como o último).

“Abre!”, torna a insistir, já rispidamente, o gavião. Escuto um rufar de tambores, mulheres entoam trovas de escárnio, e uma voz de homem, já bem conhecida, grita: “Soltem o covarde!”.

Quando abro os olhos, ao invés de enxergar o caburé-açu, vejo Nhaêpepô-oaçu à minha frente, mirando-me terrivelmente. O tapuio manda entregarem-me uma clava, para que me defenda com eficácia. “Agora te quebro a cabeça!”, grita Nhaêpepô-oaçu, partindo contra mim, mas apenas brinca, como faz o predador com sua presa. Salta e volteia a espada para impressionar-me, bravata aliás inútil, pois estou tão fraco e enfermo que mal consigo suster-me de pé, quanto mais proteger-me, terminando por ser derrubado por dois violentos golpes que Nhaêpepô-oaçu desfere-me nos flancos, sendo eu, porém, imediatamente erguido por ele, repetindo-se o jogo até minha completa exaustão.

Imobilizado pelos dois homens que puxam as extremidades da corda que me prende a cintura, vejo o tacape do matador abater-se sobre a minha nuca. Em meu delírio, debaixo do sol a pino, ainda enxergo meu miolo saltando da cabeça espatifada. Vejo Potira, aos prantos, correr para juntá-lo numa cuia, antes que o devorem as velhas gulosas. Pena por ver-me morto ou simples vontade de comê-lo, ou as duas coisas? Felizmente, não tive tempo para descobrir por que a cunhantã queria o meu miolo, pois, já me crendo no outro mundo, fui trazido de novo para este por um grito tão estridente e apavorado que a todos paralisou: “Peró oiepotar!!! Peró oiepotar!!!” (os portugueses chegaram!!! os portugueses chegaram!!!). No instante seguinte, em meio à balbúrdia que se instalou na aldeia com o inesperado ataque das tropas comandadas pelo sargento-mor Jacomedes Carvalho Maciel, vi-me abandonado à minha própria sorte no meio do terreiro, ficando ao meu lado apenas Potira.

F I M