CARTAS DA NOVA ATLÂNTIDA


Nous y menons aussi toutes les expériences possibles concernant 

les différentes techniques de greffe sur des arbres frutiers comme sur des

espèces sauvages, ce qui donne beaucoup de résultats.

Francis Bacon, La Nouvelle Atlantide

 

O nome Newton é quase tão vulgar como Silva e, tal como Silva, nem sempre de família. Silva silvarum é um título de Francis Bacon - quem só vê silvas não vê a amora. É muito fácil tornar invisíveis as pessoas com nomes excessivamente comuns:

- Vem prender o Newton porque o acusaram de ter comido presunto na sexta-feira passada? Olha o herege!… Sim, sim, mora já ali ao dobrar da esquina, no número 33, 3º esquerdo

Francisco, noutro contexto e por outras razões, é uma espiga na seara, uma árvore na floresta, uma agulha num palheiro. Por isso fecharei a sua tão recheada biografia de Encoberto sem lhe desvendar o rosto.

As teorias físicas de Isaac Newton deram origem a seitas religiosas, ele foi adorado como um profeta, por isso muitos lhe adoptaram o nome. Em todo o caso, vejamos o que acontece explorando esse veio.

No Museu de Lisboa havia ossos de dodó, provenientes da exploração de Edward Newton na ilha Rodrigues. Edward foi auditor-geral na Maurícia; o irmão, Alfred, professor de Zoologia e Anatomia Comparada na Universidade de Cambridge, era membro da Royal Society of London, sociedade antiquíssima, que antes de ser visível foi invisível, e a cuja direcção presidiu Isaac Newton - o da lei da gravidade, descoberta ao cair-lhe na cabeça o pomo de Adão. Sócrates falava do seu daimon, um espírito que lhe zumbia ao ouvido as revelações. A partir do estabelecimento da lei dos graves, ficou conhecida a génese da descoberta científica por maçã de Newton.

Natural philosophy, philosophical college e invisible college são sinónimos, isto é, o naturalista é um maçon[1]: The corner-stones of the invisible or (as they term themselves) the philosophical college do now and then honour me with their company, diz Boyle, num historial que a Royal Society elaborou de si mesma (Anónimo, 1912). Como tantas academias e grémios, a Royal Society era uma instituição maçónica, que se inspirou na New Atlantis, utopia rosacruciana atribuída a Francis Bacon. Trata-se de uma glossa de Crítias ou a Atlântida, de Platão, com a diferença de a utopia baconiana situar numa ilha um modo de vida decorrente da experimentação e desenvolvimento de técnicas biológicas, destinadas ao apuramento de raças e à criação de novas espécies de animais e plantas. Ora uma das condições da evolução é o isolamento reprodutor.

A Nova Atlântida foi editada pela primeira vez em 1627. Se em Platão o progresso se manifesta sobretudo na arquitectura - abertura de canais, construção de lagos subterrâneos e outras obras notáveis -, na Nova Atlântida a suprema sofisticação é a biotecnologia:

 Temos também parques e cercados de todas as espécies de animais e aves […]. Igualmente por engenho, tornamo-los maiores ou mais altos do que é próprio da sua espécie ou, ao contrário, tornamo-los mais pequenos e detemos o seu crescimento; fazemo-los mais fecundos do que é próprio da sua espécie ou, ao contrário, estéreis e não reprodutores. Igualmente os tornamos diferentes em cor, forma, actividade e muitas outras coisas. Arranjamos maneiras de fazer misturas e cruzamentos de espécies diversas, que têm produzido muitas espécies novas e que não são estéreis, como geralmente se crê dos híbridos (Bacon).

Bensalem, nome da ilha da New Atlantis, não figurava nos atlas. Dotara-se de civilização e cultura superiores e de regime político perfeito, científico. Governavam-na 36 membros de uma sociedade secreta, o Templo de Salomão, dividida em grupos especializados, cada qual com o seu campo de investigação em Filosofia Natural. Os Irmãos que saíam da ilha, sempre em grupos de três, para coligir exemplares, ideias, informações, livros, etc., nos países estrangeiros, viajavam sob falsa nacionalidade, para ninguém descobrir a ilha, caso fossem presos. Levavam muito dinheiro com eles, para comprarem a informação.[2]

É a este governo pelos sábios, a estes sábios que são agentes secretos, e a esta nação de governantes supra-nacionais, que cabe o nome de Colégio dos Invisíveis, Igreja Invisível, Colégio do Espírito Santo[3], Rosa-Cruz, etc.. Em Portugal, a obra de Bacon foi conhecida de homens como Frei Manuel do Cenáculo, braço direito de Pombal na reforma do ensino, e de Jacob de Castro Sarmento, também inspirador da reforma. Bacon é considerado o criador do método científico, ao substituir a retórica escolástica pela indução.

 As Magnalia Naturae, praecipue quoad usus humanos (Maravilhas naturais, sobretudo as que se destinam a uso humano), que vamos traduzir do francês[4], constituem um programa de investigação com items que, como tantos esplendores da Nova Atlântida, hoje são realidades da medicina, da pecuária, da agricultura, da genética, da tecnologia militar, etc., e até mesmo banalidades da nossa vida quotidiana:

Prolongar a vida.

Devolver, em qualquer grau, a juventude.

Retardar o envelhecimento.

Curar das doenças reputadas incuráveis.

Minorar a dor.

Purgas mais fáceis e menos repugnantes.

Aumentar a força e a actividade.

Aumentar a capacidade de suportar a tortura ou a dor.

Transformar o temperamento, a obesidade e a magreza.

Transformar a estatura.[5]

Transformar a fisionomia.

Aumentar e elevar a capacidade cerebral.

Metamorfosear um corpo noutro.

Instrumentos de destruição, como os da guerra e o veneno.

Tornar alegres os espíritos, dar-lhes boa disposição.

Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre outro corpo.

Acelerar o tempo no que respeita às maturações.

Acelerar o tempo no que toca às clarificações.

Acelerar a putrefacção.

Acelerar a decocção.

Acelerar a germinação.

Fabricar compostos ricos para a terra.

Forças da atmosfera e nascimento das tempestades.

Transformação radical, como a que se verifica na solidificação, amolecimento, etc..

Transformar as substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordas e oleosas.

Produzir alimentos novos a partir de substâncias que actualmente não são utilizadas.

Fabricar novos fios para as roupas; e novos materiais, a exemplo do papel, do vidro, etc..

Predições naturais.

Ilusões dos sentidos.

Maiores prazeres para os sentidos.

Minerais artificiais e cimentos. 

Até que ponto as utopias são utopias, isto é, espelhos do nosso desejo para o futuro, e não realidades conhecidas de apenas um grupo de iniciados, em dado momento histórico? Utopia começa por ser o nome de uma ilha, justamente numa descrição utópica.[6] A ilha é um laboratório natural, local privilegiado para a experimentação científica, tanto mais que o isolamento salvaguarda o segredo. Bensalem é uma ilha secreta, governada por sábios que controlam o conhecimento, tal como os alquimistas, e de resto toda a ciência avançada. Quando o público vem a saber dos clones, já a investigação nesse campo dura há cinquenta anos. Quando o público vem a saber dos engenhos de guerra mais sofisticados, é quando eles espalham a morte e a destruição.

Reesetan ou Nevvton, nas cartas, pergunta se as ilhas do Atlântico não serão restos do continente afundado. A Atlântida deu origem a uma teoria biogeográfica que florescia bem a meio do século XX: as espécies endémicas das ilhas eram relíquias da fauna e flora atlantes, caso do Macroscincus coctei, segundo Bertin, um dos representantes da escola.

Baltasar Osório, referindo-se a essa teoria, diz en passant que Platão transportou para a Atlântida a sua República. De facto, a Atlântida, antes da catástrofe que a fez afundar-se, concretizava a concepção platónica de Estado perfeito. Osório não perfilha a teoria biogeográfica, lança sobre ela um sorriso.[7] Ele, Bettencourt Ferreira, Júlio Henriques, outros professores universitários, pertenciam à Academia de Ciências de Portugal, presidida por Teófilo Braga, escritor, positivista[8] e maçon, da qual saiu um órgão consultivo de Estado. Teófilo converteu depois a Academia em Ordem dos Templários de Cristo, pois publicou nos Trabalhos da Academia o regulamento de um instituto com esse nome. Teófilo - nome que não é de baptismo - veio a ser o nosso primeiro Presidente da República, e cinco anos mais tarde bisou.

A questão platónica tem como principal espelho a república, no âmbito da utopia política; no da social, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, conducentes ao progresso e felicidade de todos os homens e de todos os povos. Os dispositivos para atingir estes alvos foram superiormente aprovados, no coração ainda da monarquia, como o demonstram os extraordinários textos científicos publicados nos boletins oficiais.

 De regresso aos Newton, Seabra (1907) diz que uma das espécies de ave enviadas de Angola por Francisco fora descrita por Alfred Newton: Stercorarius pomatorhinus, em cuja sinonímia lança Stercorarius pomatorinus. Quem descreveu Stercorarius pomarinus foi Temminck, não Alfred Newton. Seabra cometeu uma série de lapsus linguae, e com isso, sem querer, ligou Alfred a Francisco. Algo permaneceu sem pecado original no meio de tanto estercorário, ou de tanta gaivota europeia: a maçã[9].

 Outra utopia atlante, aliás a mesma, governada pelas filhas de Atlas, é o Jardim das Hespérides, onde cresce uma árvore que dá pomos de ouro. Atlas, além de livro de cartas geográficas, é a vértebra que sustenta a cabeça, alusão ao gigante que suporta aos ombros o peso do céu. Entre os desenhos dos ossos dos antepassados do lagarto de Cabo Verde, apareceu um atlas de mamífero. E embora nos ilhéus onde vivia só cresçam gramíneas, vimos Baltasar Osório (é da sua responsabilidade a versão portuguesa da obra de Brehm) dizer que ele se alimentava de toda a espécie de frutos polposos. Peracca é peremptório: o alimento preferido do Macroscincus coctei eram as maçãs. 

Há uma obra singularmente importante sobre a Hespéria, que motivou perplexidade, por se dar a um trabalho científico um título esotérico - Coleoptera Hesperidum, catálogo de Wollaston dos coleópteros de Cabo Verde. Wollaston defendia a tese de que a mudança das espécies, ao contrário do que pensava Darwin, não precisava de milhões de anos, podia ser muito rápida.[10]

Uma das personagens invisíveis mais interessantes desta história é um guia e colector, que acompanhou Leonardo Fea, Boyd Alexander e Francisco Newton nas ilhas do Golfo da Guiné, na Guiné e em Cabo Verde. Esse guia caboverdiano, que Newton trata por rapaz, dizendo que o acolhera como irmão, veio a ser vice-cônsul do Brasil em Cabo Verde, presidente da Câmara, laureado pela Academia Francesa das Letras, etc.. É o poeta José Lopes da Silva, autor de livros como Hesperitanas e Jardim das Hespérides. A obra de José Lopes, um independentista, está muito marcada pelas realidades políticas e ideológicas do seu tempo. Ele ultrapassa a história de Newton, que morreu cedo (se tiver morrido cedo, pois a notícia que citámos do seu funeral pode ser uma armação: os funerais não se dirigem como peças de teatro, se alguém os dirige não é decerto o armador de Leça da Palmeira, e em geral os corpos são enterrados em tal localidade, não apenas num indeterminado cemitério). Por isso não interessa muito saber que se pôs ao lado dos aliados contra os alemães e louvou a obra social de Mussolini. Mussolini foi director do Avanti!

Coração ao largo e avante - lemos nas cartas de Francisco.

Também Júlio Henriques (1889) sofre um pede lapsus, ao dar como colector de uma planta de Angola, em vez do nosso F. Newton, o redescobridor do Didus ineptus, Dido inepta ou dodó - E. Newton. Edward, irmão de Alfred Newton. E com este lapsus lapidis, naturalmente sem querer, relaciona Edward com Francisco. O dodó é uma ave extinta, personagem de Alice no País das Maravilhas, cujos ossos foram descobertos na Mare aux Songes ou Lago dos Sonhos, ilha Maurícia, exactamente no mesmo lugar onde por incrível coincidência também estava o atlas de mamífero de Didosaurus mauritianus, antepassado do lagarto caboverdiano. Didosaurus ou Sáurio Dido.[11]  

 As cartas da Nova Atlântida só por paródia são utópicas, se por utopia entendermos efabulação gratuita: ao suprimirem a ilha Rodrigues, ao variarem brutalmente as altitudes de montanhas como a de Santa Isabel e do ilhéu Branco, ao deslocarem para o hemisfério sul as ilhas do Golfo da Guiné, ao colocarem o ilhéu das Rolas a oeste de S. Tomé, ao criarem treze ribeiras em Ano Bom, ao acrescentarem ao ilhéu das Rolas mais dois ilhéus, ao mudarem de região povoações e acidentes geográficos, os naturalistas estão a alertar para o facto de essa Nova Atlântida ser um espaço onde se desenvolviam experiências e aplicavam técnicas biológicas.

 Provemos agora um pomo da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal: o nome de Francisco Xavier O’Kelly d’Aguillar Azeredo Newton, para fins legais, de oficialíssima identificação, sempre foi só Francisco Newton. Os outros, como tantas deixas em diversas áreas do conhecimento, são fios de Ariadne que os naturalistas nos convidaram a seguir, de outro modo não teríamos chegado sequer a meio do caminho.