Pires de Lima (1937)

FENÓMENOS ESTRANHOS
José Augusto Mourão
A BELA E O NATURALISTA
Maria Estela Guedes

"Observatio diuturna, notandis rebus, fecit artem", dixit Cicero num livrinho que se intitula De divinatione Liber II"Observatio diuturna, notandis rebus, fecit artem", dixit Cícero num livrinho que se intitula De divinatione Liber II. Essa passou a ser a divisa do Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina do Porto que se tornou, ao tempo de J. A. Pires de Lima, um centro de estudos de teratologia descritiva. Que fazer dos nado-mortos, senão autópsias? Que fazer do conceito biométrico de anomalia, ou do conceito estatístico de normalidade?

A santa barbada

É verdade. Para ver basta ter olhos. Olhar exige muito mais: é necessário discernir o visível de si próprio, distinguindo nele planos em profundidade e em largura, delimitar formas, observar mudanças e seguir movimentos. Olhar acaba por ser impôr objectivos ao visível e, pouco a pouco, a fazer dele objectos.

A ciência tal qual é. A ciência pura. Puros fantasmas ao serviço de. Agamben, ao fazer a genealogia do conceito de vida, conclui que em toda a medicina grega não há um conceito médico-científico, como se pensa, mas um conceito filosófico-político. "O homem é o ser vivo que não tem nenhuma vocação biológica, histórica, etc.. É um ser de potência que não se identifica com nenhuma figura determinada" (Guerreiro).

O fantasma da inquisição é a pureza da fé. Que destino tiveram os judeus e os ciganos, mas também os atrasados mentais e outras criaturas consideradas como desvios à "raça pura"? Onde nos levará o horroroso culto da uniformização em que todos temos de corresponder a um formato? A que fantasma serve a ciência? De que "vida" se ocupa? Que formas de eugenismo dissimula desde Francis Galton (1890/1962) que defende o apuramento da raça humana através de cruzamentos selectivos? (Agamben). Não teremos entrado há muito na projecção aterrorizadora de uma forma de eugenismo, não ideológico - aquele que designaria categorias de pessoas que não merecem viver - mas técnico? Não se terá a técnica separado da ciência que servia a Vida, que, essa, fala em verdade? Não estará o próprio discurso ético a alinhar-se com o discurso técnico, sob pretexto de caridade: fazer as coisas o melhor possível? Barbosa Sueiro fala, a propósito da anatomia, de "finalidade utilitária - mas de virtuoso utilitarismo".

"O monstro reflecte sempre uma determinada ordenação do mundo, seja este natural ou cultural. Eles são a ruptura da ordem em que cristalizam valores sociais e formas de conhecimento. Produz sentimentos e reacções contraditórias: medo, temor, asco, mas também prazer e lubricidade. Parte às vezes de uma cultura demonológica, outras vezes representação do exótico, do desconhecido, do estranho. Ou se manifesta de forma lúdica (lusus naturae), carnavalesca, ou transporta consigo o estigma da admonição (Deus Irae). O monstro não é só o negativo de formas variadas, mas também de graus diferentes de civilidade. Ambíguo, portanto (Mourão). O recurso à Antiguidade tem aqui alguma pertinência. A definição aristotélica de monstro (teras): "Aliás aquele que não se parece com os pais é já, de certa maneira, um monstro porque, neste caso, a natureza se afastou do tipo genérico" (Aristóteles). Um andrógino é um prodígio que publicamente deve ser exposto como sinal maléfico que o Estado deve fazer desaparecer. Levou tempo para que se passasse a uma outra atitude: interpretar o fenómeno como um erro da natureza, uma má-formação anatómica rara, mas explicável. Os seres dotados dos dois sexos serão vistos como um jogo da natureza, é o que Plínio o Velho explicitamente diz. A bixexualidade foi recebida primeiro como monstruosidade, ameaça, depois como fenómeno explicável e finalmente tolerado, recuperado como um "bem" de consumo (Bisson).

A norma anatómica (Sueiro, 1950) faz lei. "Monstra vero per excessum sunt", escreve Vandelli (1776). Porém, o normal foi sempre a crux da ciência. As normas são essenciais aos discursos que animam a vida social. A sua constituição esquemática explica o impacto afectivo que acompanha a sua aparição discursiva. A norma parece exigir uma boa distância, da parte das ocorrências que ela avalia, e que não devem tomar o seu lugar. As normas manifestam uma sensibilidade dupla, correspondendo a uma topologia com duas entradas (pouco/assaz/demasiado), que regula os comportamentos aproximativos, nomeadamente a imprecisão exigida, de todos os fenómenos normativos, do domínio da gramática ao da jurisdição. Mas, em último caso, na norma trata-se da estabilização do imaginário através da referência ao semelhante, mecanismo que caracteriza a identificação categorial e analógica, diz P. A. Brandt.

Não obstante, mesmo entre cientistas o conceito de norma está sujeito a discussão. Carlos May Figueira (1864) considera impossível aceitar a ideia de Pareo, segundo a qual haveria hermafroditas com dupla aptidão geradora. Geoffroy Saint-Hilaire (fundador da teratologia em bases científicas) tem a melhor classificação: "hermafroditas com excesso e sem excesso). Para Luís Guerreiro (1921) o corpus da anatomia é o corps - cadáver. E, no entanto, tudo isto é considerado Biologia.

É fácil identificar um monstro. É fácil idealizar a forma humana, as suas variações musculares. Para o naturalista a vida não tem mistérios, tão bem ele vê, tão bem educou o senso crítico. Não será então necessário bem ver para melhor compreender? Se não podemos negar ao corpo medical uma existência histórica, científica ou ideológica, é pelo menos necessário reconhecer que esse corpo não é todo o corpo (quer dizer o todo duma imaginação do seu real) e trabalhar pelo menos com o mínimo de imaginário com que Valéry tentava descobrir nele funções figurativas, ordens fantasmáticas.

Todo o discurso médico contemporâneo, higienista e moral, de que as bonecas de Pierre Spitzner são uma espécie de caricatura, apoia-se num catálogo desordenado das aberrações de imagens do corpo (Schefer). Para lá das aberrações iconológicas, é necessário notar que a "escrita" médica não tende a fazer significar algo ao corpo. E não se esqueça o seguinte: "From the point of view of the subject, the representation of the body, even when narrowly biological, is always an image of the self: identity, genealogical resemblance, cultural norm and configuration, etc.” (Abel)”. E todavia, haverá, no discurso dos saberes, discurso mais marcado por uma espécie de regularidade do fantasma (o do corpo como objecto, como labirinto, etc.) do que o discurso da medicina?




Os naturalistas dão o nome de monstros a certos desvios à norma anatómica.

Honestamente devo confessar que estes monstros me causam horror.

Francamente confesso que a muito acentuados desvios à norma só ocorre chamar-lhes monstros.

Com sinceridade confesso: graças a Deus, a maior parte dos monstros são fetos nado-mortos.

E também: por muito que nos museus se elevem a centenas ou milhares os frascos com fetos dentro, a verdade é que raramente nascem monstros. É certo que em meados do século passado essa percentagem aumentou por causa da Talidomida, um remédio administrado às grávidas que provocava malformações nos fetos, mas ainda assim o monstro é um fenómeno estranho que ocorre com baixíssima frequência.

Com franqueza declaro: graças a Deus, com a nova tecnologia, hoje é possível à medicina impedir que nasçam crianças monstruosas.

Com boa vontade aconselho : vá ao médico se tem pila bífida ou algo assim, porque essa e outras monstruosidades são sanáveis. O rapaz a que pertenciam os genitais da foto vivia infeliz, tinha vergonha de os mostrar, mas foi operado e logo deixou de ser um monstro.

Pénis bífido (Pires de Lima)

PORÉM:

a) O que é a norma? Qual a sua natureza, em que se funda ela? Quem determina qual é a norma e a partir de que série? - Cabelos louros, 1,70 m de altura, pele branca e olhos azuis serão a norma de uma amostragem feita na China?

b) Norma, diz o naturalista Barbosa Sueiro, é o termo mais frequente de uma série. Sim, mas para que serve o estabelecimento de um termo mais frequente, e mais frequente onde, e quais os seus limites?

Guerreiro (1921) comenta assim a norma : "Estas descrições tipos correspondem a hipotéticos indivíduos normais; qualquer outra disposição, não incluída nessas descrições, na mesma letra dos tratados de anatomia e conforme eles, ou constitui uma anomalia, que pode ser grande ou pequena, ou uma variação, anomalia ou monstruosidade, segundo a sua aparência. A adoptar-se este modo de ver, certamente nos sujeitaríamos à contingência de concluir que o homem normal, quer dizer, aquele que corresponde à descrição dos autores, é um homem que não existe! A própria normalidade seria, assim, privativa dos tratados (...)".

A norma não existe na Natureza, porém é convencionada nos livros, e em cima dela a ciência determina o que é uma variação, uma anomalia ou um monstro. O estabelecimento da norma racial ariana, por exemplo, serviu ao nazismo para eliminar treze milhões de pessoas.

O estabelecimento de uma norma ideológica serviu a Estaline para eliminar os opositores. Daí que no seu ensaio, que eu classificaria como estranho fenómeno capilar, "Grandeza e decadência do bigode", o naturalista Pires de Lima apresente uma imagem de ambos na forma de matéria por ele muito estudada, a do monstro duplo.

c) Nesta questão da norma e do desvio, até o monstro se desvia ou não da sua própria norma, quando o naturalista Alfredo Araújo, v.g., diz do seu corpus, ou corps, literalmente: "O nosso primeiro monstro é um belo espécime da derodimia. A um tronco único que vai alargando, gradualmente, de baixo para cima, respondem dois pescoços e duas cabeças, nitidamente individualizados. Tem quatro membros de conformação normal" (Araújo, 1939).

d) Que saber é o da Teratologia, matéria fundada em bases científicas por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, na "Histoire générale et particulière des anomalies de l'organisation chez l'homme et les animaux" (1836), autoridade para que remetem todos estes anatomistas? Qual o seu poder de reparação, enquanto ciência anexada à medicina?

É o naturalista Álvaro Moitas, médico militar e professor na Faculdade de Medicina do Porto, quem afirma que muitas teorias existem para explicar os desvios à norma, mas que a ciência nada sabe sobre isso : "Apesar dos esforços de numerosos teratologistas e biologistas, ainda não é conhecida a etiologia das anomalias e monstruosidades" (Moitas, 1946). O arrinencéfalo que apresenta tem no entanto causas fáceis de explicar : o feto humano do sexo feminino, provavelmente nado-morto, fora vítima de bridas amnióticas.

Terá sido, mas o que parece fundar a teratologia em bases científicas é apenas a descrição das formas e a nomenclatura a elas aplicada. Eis a prepotência dos códigos, a humilhação que nos infligem esses termos técnicos cujo significado não conhecemos, pois "denominar é dominar" (Herberto Helder).

Eis pois o problema:

Qualquer indivíduo constitui desvio a qualquer norma convencionada, e em nome dessa monstruosidade pode o poder instituidor da norma eliminá-lo.

Eu posso ser eliminada porque já não sou jovem, você pode ser eliminado porque tem pele negra, ela pode ser eliminada porque é um génio, tu podes ser eliminada porque és lésbica, ele pode ser eliminado porque é pobre, vocês podem ser eliminados por perfilharem uma ideologia que não é a do poder dominante.

Todo o problema do monstro é assustador por na origem ter um olhar normalizador, um desejo, essa volúpia...

Ah, a Norma, a Norma dos naturalistas - que morfologia tem ela?

É uma Norma de "suprema beleza", sussurra Pires de Lima (1944), estudando anatomicamente o deltóide nas esculturas de Soares dos Reis. O deltóide - esse delta radiante de fibras que formam o músculo triangular do braço, e por terem forma de delta se chamam deltóides - é perfeito, embora inerte pela tristeza.

Sim, tem um nome a norma dos naturalistas, e de facto a sua suprema beleza só existe nos livros, na arte, enfim, na obra da tremenda imaginação humana - chama-se O Desterrado.

O monstro, esse, é porventura quem mandou a imaginária Bela para o desterro - a própria ciência.