MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

I Capítulo
Os grandes poderes mundiais e as suas ambições em África

4. A política interna portuguesa e as ópticas quanto ao Ultramar.

Ao longo de toda a II Guerra Mundial não encontramos intenção declarada das democracias europeias estabilizadas, possuidoras de impérios tropicais, de prescindirem das suas fronteiras; antes pelo contrário. A 16 de Julho de 1943, o Governo Britânico efectuou um pedido formal a Portugal para utilização das bases nos Açores a fim de facilitar a cobertura total do Atlântico, sendo garantida, em troca, a manutenção da soberania sobre todas as suas colónias (1). Estas garantias foram asseguradas com a concordância da União da África do Sul e da Austrália e, a 25 de Outubro, pelos Estados Unidos da América (2). O Acordo foi assinado a 17 de Agosto de 1943 (3), declarando as partes aceitar e assumir os compromissos dele resultantes, a começar em 8 de Outubro desse ano. Ao mesmo tempo, também as autoridades norte-americanas pretendiam a cedência de mais facilidades nos Açores, fornecendo em troca apoio às pretensões portuguesas de participar na libertação de Timor (4). As negociações conduziram à assinatura de um acordo a 28 de Novembro de 1944 (5). Destes acordos resultou a construção de uma base militar na ilha de Santa – Maria, destinada a facilitar movimentações americanas para a Europa, ou desta para os EUA.

Após o desfecho formal da guerra, foi o Reino Unido a primeira potência a aperceber-se do evoluir da nova situação mundial pelo que, após a repressão inicial, procurou uma resposta que se pode considerar flexível, efectuando gradualmente a sua retirada colonial. Mas, apesar de tudo, teve os seus reveses na crise do Canal do Suez.

Seguiu-se-lhe a França. Só que esta já foi mais renitente, respondendo com repressões na Argélia, Madagáscar, Costa do Marfim, Tunísia, Marrocos e Indochina, entre outras. A Itália nada conseguiu fazer para evitar a independência da Líbia e da Somália, e a Bélgica cedeu perante o Congo.

Na Carta da ONU, a linha de evolução controlada, assim entendida, foi rapidamente ultrapassada pelos factos, favorecendo a retirada quase simultânea das soberanias coloniais.

Portugal, Estado fundador da Ordem dos Pactos Militares que vigorou até 1989, pelo simples facto de não ter entrado na II Guerra Mundial, esteve alheio ao processo colonial das potências que combateram a Alemanha, logo, longe de um desafio revisor e reformador interno, assumindo desde a guerra de Espanha uma posição de anti-comunismo soviético. O sistema de equilíbrio de poderes pelos Pactos Militares ficara já estabelecido. Para Salazar, que entendia a comunidade internacional como um xadrez cujas pedras estavam dispostas e cujo jogo ele conhecia, “(...) não havia cataclismos; para ele, lidar com os problemas da comunidade internacional era quase uma sabedoria académica (...)”(6).

Portugal era um país multicontinental. Até ao início dos anos sessenta, as suas fronteiras eram rodeadas apenas por países aliados e cooperantes; todas elas eram exclusivamente com soberanias ocidentais, pois era esta a estrutura do euromundo em que se vivia. Contudo, nenhuma dessas fronteiras era filiada no mesmo sistema cultural europeu.

O sistema colonial português entra em crise em plena guerra fria. A presença da Administração Portuguesa em territórios africanos constituía, com toda a evidência, um entrave para a construção de zonas de influência que permitissem assegurar posições vantajosas na luta entre as superpotências. Assim, porque urgia para uns e bem podia servir a outros, era necessário eliminar essa presença. Mister, apenas, o onde e como se processaria a tomada técnica do Poder. No período em análise, as pressões internacionais, para Portugal ceder surgiram a 14 de Dezembro de 1955, através do inquérito realizado pelas Nações Unidas, nos termos do Artigo 73º da respectiva Carta.

Todos os regimes portugueses procuraram (apesar de muitas vezes pressionados para ceder) manter, desenvolver e defender o Ultramar. São disso exemplo variados acontecimentos ao longo dos séculos, alguns deles já referidos no presente estudo.

O Governo Português tomou a decisão de ficar. A resistência portuguesa, face às suas responsabilidades pela segurança das populações e pela preservação dos seus bens, era justificada como um imperativo de justiça e de legítima defesa, pelo que esta devia ser uma atitude colectiva (7). Face às Nações Unidas, o Governo Português sustentou a mesma resposta durante 19 anos.

Os valores históricos da Nação Portuguesa tinham como conceito estratégico nacional a missão colonizadora e evangelizadora, pois os portugueses, nos séc. XV e XVI, consideravam-se “(...) mandatários da cristandade para levar o Evangelho aos povos mergulhados nas trevas do paganismo (...)”(8), preocupando-se com a conversão dos naturais ao catolicismo. Apesar de ultrapassado o fervor missionário, para Marcello Caetano “(...) ficou sempre nos métodos coloniais portugueses o interesse pelas almas, o desejo de conquistá-las, a ânsia de tornar os colonizados semelhantes aos colonizadores (...)”(9).

Os princípios e mesmo os métodos da acção colonial portuguesa deste século são o resultado da longa experiência colonial de Portugal, que remonta ao século XV, e que se formou em todas as partes do mundo onde chegou a influência lusa.

Em períodos anteriores à Revolução de 1820, a organização dos territórios ultramarinos, para efeitos de governo e administração, não obedecia a um modelo único. Para cada caso, os portugueses encontraram uma fórmula própria, respeitadora da índole de cada povo (10).

Embora possuindo cada um dos territórios uma organização própria, observava-se um certo número de princípios comuns. Com a instauração do regime liberal, os revolucionários dominados pelos ideais, entre outros, de Jean Jacques Rousseau, enveredaram por uma política de assimilação uniformizadora, abandonando as orientações anteriores. A Constituição de 1822 não continha em si nenhuma disposição especial para as colónias, pois procurava-se aplicar à administração ultramarina as mesmas disposições constitucionais da metrópole.

O primeiro texto constitucional em que é definido um regime especial para o Ultramar é o da Constituição de 1838, obra de «setembristas». O Título X - “das Províncias Ultramarinas” - expressa no seu Artigo 137º (único) um contraste com as orientações dominantes de assimilação uniformizadora, pois nele se reconhece a necessidade de uma política administrativa diferente para as colónias. Porém, em 1842, cai o regime setembrista, voltando-se ao «liberal silêncio», na expressão de Almeida Garret. A política de elaboração de disposições constitucionais especiais para o Ultramar foi retomada apenas em 1852, com a publicação do primeiro Acto Adicional (11).

Atitude diferente era, no entanto, a adoptada no Direito Privado, onde, desde cedo, a política uniformizadora não foi rigorosamente seguida. Aqui, o ideário da Revolução Francesa cedia face às especificidades locais, pois a tendência foi conservar o direito consuetudinário vigente nas sociedades indígenas (12).

Nos fins do século XIX, António Enes enceta a reacção contra a assimilação uniformizadora. Era ideia central dos seus escritos abandonar essa política, em prática desde 1820. António Enes divulgava e defendia uma política de base francesa, que correspondia à adopção de uma doutrina, a doutrina colonial (13).

Aquela época, como já verificámos, pautava-se pela ausência de acção directa das autoridades sobre as populações indígenas além de um limite dos estabelecimentos interiores e fortalezas costeiras. Vivia-se em administração indirecta, escapando a acção das autoridades indígenas à direcção e fiscalização das autoridades portuguesas (14).

A primeira medida tomada pelos republicanos ao assumirem o Poder, foi a criação do Ministério das Colónias em 1911. Todavia, na Constituição desse ano, a designação de Províncias Ultramarinas mantém-se. As disposições referentes ao Ultramar são apenas duas: os Art. os 67º e 85º (15), mantendo-se uma política descentralizadora. Em 1914, deu-se preceito ao disposto na Alínea c) do Art.º 85º da Constituição de 1911, pela publicação das primeiras leis de base da administração ultramarina (16). A 7 de Agosto de 1920, é publicada a lei de revisão constitucional, Lei N.º 1005, que veio substituir o Art.º 67º, passando este a designar-se “Das Colónias Portuguesas” e a contar com vários artigos onde eram definidas as bases gerais do regime político ultramarino. A nova lei instituiu o sistema de Altos Comissários, aplicável aos territórios de Angola e Moçambique.

O Comandante João Belo assumiu a pasta das Colónias após a revolução de 28 de Maio de 1926, sendo aprovadas a 2 de Outubro de 1926, pelo Decreto N.º 12421, as novas bases orgânicas da administração colonial, cujos princípios, expressos no seu preâmbulo, referem a unidade política do território colonial. Passados apenas quatro anos, é publicado o Decreto N.º 18570, de 8 de Junho de 1930, que aprova o Acto Colonial (17). Este representa um marco de uma nova fase da vida política colonial portuguesa, pois aí se procuram “(...) definir as bases gerais da política ultramarina coordenando o princípio da unidade política com o da descentralização administrativa, de modo a permitir uma acção eficaz dos órgãos de soberania no comando da evolução dos territórios do Ultramar, sem tolher a estes a autonomia necessária ao seu progressivo desenvolvimento (...)” (18). Durante a sua adopção, fazendo apelo ao ideal mobilizador da “missão histórica de colonizar e de civilizar”, remetendo para uma ideia federadora - a do renascimento da grandeza nacional graças ao império -, a mística imperial revelou-se como factor de consenso (19).

A missão histórica portuguesa estava nitidamente expressa no Art.º 2º do Acto Colonial, ao referir “(...) possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente (...)”, referindo o seu Art.º 3º que os domínios ultramarinos portugueses se denominavam de colónias e que estas constituíam o Império Colonial Português. No Art.º 7º do Acto Colonial, foi fixado que o Estado não alienaria, por nenhum modo, qualquer parte dos territórios e direitos coloniais de Portugal. O título II cobriria todo o normativo constitucional sobre os “Indígenas” e o título III, o “Regime Político e Administrativo”, que “garantia às colónias descentralização administrativa e autonomia financeira”.

O texto da Constituição, publicado em Diário do Governo de 22 de Fevereiro de 1933, nos termos do Decreto N.º 22241 dessa data, submetido a plebiscito em 19 de Março de 1933, entrou em vigor a 11 de Abril de 1933 com a publicação no Diário do Governo da acta da assembleia geral de apuramento dos resultados do plebiscito.

A definição do território português na Europa, África, Ásia e Oceânia era contemplada no Art.º 1º (20). Por seu turno o Art.º 133º considerava matéria constitucional as disposições do Acto Colonial e determinava a nova publicação deste, que passava a ter dignidade de norma constitucional. Em 1933, proclamou-se ainda a Carta Orgânica do Império Colonial Português e a Reforma Administrativa Ultramarina.

A Constituição de 1933 institucionalizou o Estado Novo, que retomou como “(...) valores permanentes e seus símbolos: o apostolado em nome da Igreja Católica, a função histórica de colonizar as terras dos Descobrimentos, a afirmação do Império, a família como base da estrutura social, a exaltação das grandes figuras e da gente lusíada (...)” (21) e procurou firmar um Estado forte, conduzido por um governo forte, com capacidade para conjugar actividades em nome do bem comum e igualmente capaz de arbitrar com independência e equilíbrio os conflitos entre a liberdade individual e de consciência e os fins colectivos superiores (22). Mas esta Constituição foi “(...) um documento mais preocupado com a imagem do que com a realidade do sistema político (...)”(23), pois, segundo Adriano Moreira, era “(...) uma Constituição semântica (...)”(24). A sede do Poder estava constitucionalmente na Presidência da República, cujo Presidente era eleito por sufrágio directo dos cidadãos eleitores. Contudo, na realidade, a sede do Poder pertencia ao Presidente do Conselho de Ministros, dependendo dele praticamente tudo o que fosse institucionalmente relevante. A Constituição não tinha nenhuma espécie de autenticidade na aplicação, cultivando Salazar o critério “(...) da legitimidade pelo exercício, não o da origem (...)”(25).

Pela lei N.º 2048, de 11 de Junho de 1951, aditou-se à Constituição o Título VII, sob a epígrafe “Do Ultramar Português”, consignando-se assim uma orientação mais assimiladora do que no Acto Colonial e mantendo-se os princípios da descentralização, da autonomia administrativa e financeira e da especialidade do Direito. Aqui reformulou-se a terminologia: de Império passou-se a Ultramar e de Colónias (terminologia republicana) a Províncias (na boa tradição monárquico-liberal), que, como parte integrante do Estado, eram solidárias entre si e com a Metrópole. A integração do Acto Colonial na Constituição em 1951, formando um só diploma, não implicou alterações: tudo se mantinha inalterável como se houvesse dois diplomas constitucionais distintos. A Câmara Corporativa, que nesta data era liderada por Marcello Caetano, considerava politicamente perigosa e prematura a assimilação dos territórios ultramarinos à Metrópole (26). O objectivo principal desta reforma terá sido a afirmação determinada do princípio da unidade nacional (27).

Ainda em 1951, e num contexto político marcado pelas mortes e pelos funerais nacionais do Marechal Carmona e da Rainha D. Amélia, realiza-se em Coimbra o III Congresso da União Nacional. Aí veicula-se a hipótese de uma eventual restauração da Monarquia. Porém, Salazar no discurso inaugural afasta claramente essa possibilidade. Não obstante tal posição, os monárquicos persistem nos seus intentos. Mas é após o discurso de Marcello Caetano advogando a continuação do Estado Novo que as manobras monárquicas são inutilizadas (28).

A revisão constitucional de 1959 ocorreu logo após as perturbações provocadas pelas eleições presidenciais de 1958 e o factor General Humberto Delgado. Nesta revisão, o Art.º 134º teve nova redacção (29). Na primeira parte contemporizava com o princípio da especialidade das leis, da administração e do governo para as Províncias Ultramarinas, ou seja, contemporizava com o regime colonial, mas, na segunda parte estatuía que o regime geral para as Províncias Ultramarinas tinha um carácter provisório e tenderia para a integração no regime geral de administração dos outros territórios nacionais.

Destaca-se nesta revisão constitucional o facto de, relativamente ao sufrágio para a eleição presidencial, o preâmbulo da Lei suprema referir que o sufrágio popular, por poder “(...) provocar agitações, não era, doutrinariamente, nem por isso o mais aconselhável (...)”(30), passando, assim, a eleição a ser feita “(...) por intermédio de um colégio eleitoral constituído pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em efectividade de funções e pelos representantes municipais de cada Distrito ou de cada Província Ultramarina não dividida em Distritos e ainda pelos representantes dos conselhos legislativos e dos Conselhos de Governo das Províncias de Governo-Geral e de Governo simples, respectivamente (...)”(31).

No Conselho Ultramarino de 1962, transpareceram as clivagens das teses que estiveram em confronto: uma, uniformizadora e integracionista e outra, reformista, apologista de uma autonomia progressiva e irreversível. O projecto elaborado nessa reunião do Conselho Ultramarino era seguramente descentralizador; contudo, quer a Câmara Corporativa quer a Assembleia Nacional foram contrárias à descentralização (32).

Uma nova Lei Orgânica é entretanto publicada, entrando em vigor em 1963. Com ela substitui-se a autonomia progressiva e irreversível de todos os territórios, aceite em 1961, pelo projecto de integração económica do mercado português.

Em 1971, o Governo Central propôs uma revisão da Constituição, sendo esta aprovada a 16 de Agosto do mesmo ano (33). A nova Constituição integrou a figura de Região Autónoma no contexto do Estado Português unitário (34) e consagrou o princípio da autonomia das Províncias em termos mais expressivos, bem como da sua especialidade político-administrativa, confinando-se-lhe carácter de princípio geral da organização do Estado, aplicável a outras zonas do território (35). Esta revisão foi segundo Adriano Moreira ainda mais semântica (36). Com ela revogou-se o título VII da Constituição. Assim, “(...) aconteceu que o Governo desistiu discretamente da missão nacional e não apreciou que se desse por isso (...). As disposições constitucionais que se referiam a tal missão nacional desapareceram sem explicação nem discussão, e sem que se anunciasse uma nova motivação. Deste modo, (...) declarava esgotadas as várias contraditórias motivações que foi enunciando para continuar a resistência em África (...)”(37). Adriano Moreira colocou a interrogação a Marcello Caetano (já Presidente do Conselho): “(...) Quer dizer que o senhor revoga o conceito estratégico nacional e as forças armadas não sabem. O que é que vai acontecer à cadeia de comando? Então, eu tenho um sujeito a combater na linha de combate mais longa do mundo, dou-lhe um conceito estratégico, digo-lhe que até vem na Constituição e, de repente, revogo-lhe aquilo e não digo e, dali a nada, eles estão a combater a favor de quê? (...)” (38).

Esta resposta política de rever a Constituição pode ser considerada cautelosa, mas é com toda a evidência oposta à revisão levada a cabo em 1959, pois, nessa revisão constitucional, o Artigo 134º, como vimos, consagrava o princípio tendencial para uma política de integração da organização político-administrativa das Províncias Ultramarinas no regime geral da administração, ao passo que a Constituição de 1971 entendia as Províncias Ultramarinas dotadas de autonomia politico-administrativa, podendo, quando o progresso do seu meio social e a complexidade da sua administração permitissem, designarem-se, honorificamente, por Estados. Mas o essencial desta revisão constitucional “(...) residiu não no que ela inovou, mas antes naquilo que ela omitiu (...)”(39).

A autonomia era definida em termos amplos. Contudo, o Governo de Lisboa detinha a autoridade final sobre todas as decisões tomadas nas Províncias Ultramarinas respeitantes à representação e política externa, à definição dos respectivos estatutos e ainda quanto à fiscalização das suas actividades financeiras. Com a revisão da Constituição, em 1971, o sistema político abria brecha com o advento da chamada «ala liberal», esboroando-se, desta forma, na Câmara Legislativa, o dogma da integração (40).

Após a revisão da Constituição, seguiu-se necessariamente a da Lei Orgânica (esta distinguia os regimes para Angola e Moçambique, e outro para os restantes territórios), bem como dos estatutos político-administartivos de todas as Províncias, procurando, assim, assegurar-se a execução dos princípios introduzidos na Constituição. Foram ainda criados órgãos de governo próprio e procurou-se alargar a participação da população na gestão da causa pública.

Este pano de fundo da política constitucional do Estado Novo, preconizada pelos governos de Salazar e Marcello Caetano, tinha por base a defesa e o desenvolvimento dos territórios portugueses em África. A partir do Ultimatum Inglês de 1890, as manifestações patrióticas impulsionaram a defesa das possessões coloniais, aproveitando os Republicanos ao máximo as circunstância para moverem rígido ataque à Monarquia.

Os governos portugueses, também a partir da implantação da República e por diversas ocasiões, defenderam a integridade territorial de aquém e de além – mar. Foi o caso da I Guerra Mundial e, posteriormente, da candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado. As críticas republicanas à política ultramarina do Estado Novo só viriam mais tarde.

No pós II Guerra Mundial, não era apenas Portugal que tinha preocupação de defesa dos territórios africanos. Franco Nogueira é esclarecedor ao referir: “(...) crescem as preocupações com a vaga de anti-colonialismo que vai alastrando. Congregam-se alguns países para organizar uma colaboração em África, sendo criada a Comissão de Cooperação Técnica em África ao Sul do Saara, que engloba a Inglaterra, a França, a Bélgica, a África do Sul e Portugal, e o governo de Lisboa resolve assumir papel cada vez mais destacado na organização; e agora os mesmos países, preocupados por questões de segurança, lançam a Conferência de Defesa de África que, em sucessivas reuniões, estuda providências militares e logísticas para defesa daquele continente (...)” (41).

Salazar, em 1957, a propósito de colonização, entendia que em Portugal o caminho seguido se definia por “(...) uma linha de integração num Estado unitário, formado por províncias dispersas e constituído por raças diferentes (...) trata-se (...) de uma tendência secular alimentada por uma forma peculiar de convivência com os povos de outras raças e cores que descobrimos e aos que levámos, com a nossa organização administrativa, a cultura e a religião comum dos portugueses; os mesmos meios de acesso à civilização (...)” e acrescentava: “(...) a equiparação dos territórios a Províncias, a representação de estas diversas parcelas na única Assembleia representativa e a intercomunicação dos elementos da administração pública por todos os territórios, independentemente da origem e da raça, são traços dominantes do sistema (...)”(42). Mas cometera um erro, cujos frutos amargos colheria mais tarde, quando desafiou Pandita Nehru, a propósito da autodeterminação de Goa, ao referir: “(...) quando um povo, pela sua base territorial e desenvolvimento demográfico, pelos laços e produtos do sangue, por essa misteriosa criação e uma alma colectiva, representa profunda diferenciação, senão antinomia de interesses, e atinge pela existência de um largo escol responsável, o que se pode chamar a maturidade política - a autodeterminação traduz-se pela Constituição reconhecida de um Estado independente. Não negamos, pois, o facto nem o princípio, e quem aceitou, depois de três séculos de íntima história comum, a separação amigável e passou a rever-se na independência do Brasil, pode discutir problemas desta ordem (...)”(43), o que não seria em seu entender o caso de Goa.

Ao nível universitário, ensinava-se que as colónias eram como filhos e que um dia sairiam da casa paterna, dando-se o exemplo do Brasil (44). Salazar manifestara esta crença no discurso da assinatura do importante Tratado Luso-Brasileiro de Amizade e Consulta, a 6 de Dezembro de 1954 (45).

Em Portugal, verificou-se uma espécie de contradição curiosa. Todas as pessoas eram partidárias da unidade nacional, era essa a herança. Era também pensamento comum que a independência do Brasil era uma glória portuguesa, denotando esta posição, no entender de Adriano Moreira, “(...) uma linha de coerência, uma vez que o Brasil foi tornado independente por Portugal. As mudanças na comunidade internacional na época forçaram a situação, mas Portugal soube e pôde dar uma resposta portuguesa (...)”(46).

Apesar do apego ao Ultramar, a contradição anteriormente referida não a seria de facto se o objectivo fosse manter sociedades do tipo brasileiro; “(...) quando as pessoas reflectiam sobre o Ultramar e imaginavam, nos anos de sossego, que aqueles territórios iriam ter uma evolução e que um dia como os filhos sairiam da casa de seus pais, pensavam no Brasil (...)”(47).

O apego ao Ultramar deve-se também a razões de ordem cultural. Portugal não era um país pequeno, referiam os slogans publicitários que formaram a mística imperial, impulsionada por Armindo Monteiro. No Estado Novo, fizera-se em três décadas (1930-1960) a passagem do discurso impregnado de darwinismo social, para a contrastante mística luso-cristã de integração, inspirada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.

Tardia e ambiguamente o salazarismo apropriar-se-ia do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. A aproximação entre o luso-tropicalismo e o salazarismo, justifica-se pelo facto de Salazar andar à procura de uma “(...) justificação ideológica e de uma legitimação científica para a sua nova política ultramarina (...)”(48) - pelo menos no que diz respeito ao exterior -, adoptada com a revisão da Constituição em 1951.

O sentimento da maioria do povo português de multicontinentalidade e plurirracialidade permaneceu quando do início dos acontecimentos em Angola. Nunca a população da Metrópole e a europeia, residente em África, acreditou que a subversão armada se instalasse nas Províncias Ultramarinas, à semelhança do que acontecera em alguns territórios coloniais. Em teoria, esse sentimento tinha fortes motivos para ser sustentado, visto que os fundamentos do luso-tropicalismo de miscigenação, fusão cultural e ausência de preconceito racista eram identificados com o papel histórico de Portugal, apresentado como a missão evangelizadora e civilizadora (49). Além do mais, nos territórios ultramarinos (assim se designavam), apesar de alguns elementos explorarem em proveito próprio as populações locais e da prática do trabalho forçado/compelido, não existia regime de apartheid. A nível legislativo, procurara-se já corrigir disparidades, pois - pelo Art.º 141º da Lei N.º 2048, de 11 de Junho de 1951, que alterou a Constituição - o Estado garantia, por medidas especiais, como regime de transição, a protecção e defesa dos indígenas, nas Províncias onde os houvesse, de acordo com os princípios de humanidade e soberania, impedindo e castigando as autoridades e os tribunais, nos termos da lei, todos os abusos contra a pessoa e bens dos indígenas. Porém a aplicação prática nem sempre correspondia ao labor legislativo.

Uma década depois, e já sob a pressão da guerra, Adriano Moreira acabaria com o Estatuto do Indígena, “(...) e as Forças Armadas, no terreno, procuravam corrigir eventuais situações, porque uma coisa é a lei e a outra a forma como ela é cumprida, dado que tinham indicações expressas nesse sentido (...)”(50).

Na generalidade, o colonizador português também não assumia posturas rácicas contra as populações autóctones. Vejam-se o Regimento de Simão da Silva (1509-1511), onde se espelha a atitude portuguesa para com o novo fenómeno de contactos raciais e o exemplo do primeiro Bispo negro, D. Henrique, filho de D. Afonso I (Rei do Congo). Esta postura colonial portuguesa é ainda hoje enaltecida pelo Papa João Paulo II que, em 8 de Junho de 1992, em M´Banza Congo referiu:

“(...) Angola tem quinhentos anos de encontro de culturas, situação que a maioria dos povos de África não conhece. Isso faz de vosso país um povo distinto, que não se pode incluir simplesmente numa determinada corrente que arrasta os países da África Austral. Nuns, os colonizadores viveram entre colonizados. Aqui, os colonizadores, apesar de tudo, conviveram com os povos que encontraram. Daí a diferença específica que distingue o povo angolano (...)”(51).

Franco Nogueira, que nas Nações Unidas era todo partidário da adesão completa aos seus critérios, cada vez que se falava em gradualismo, entendia-o como um reaccionarismo inaceitável, “(...) transformando-se no líder mais sólido do imobilismo, com o critério de que quem ganha a guerra não faz reformas, porque era um sinal de fraqueza (...)”(52). Franco Nogueira terá sido o grande dinamizador da paralisação do projecto que esteve na reunião do Conselho Ultramarino de 1962.

A resposta ao toque de reunir de Salazar para enviar soldados para Angola, “rapidamente e em força", foi dada pela grande maioria da população. Salazar já justificara em 1959 qual seria a posição portuguesa, face a eventuais interferências externas na política interna portuguesa: “(...) Habituados como Nação desde séculos, a mandar em nossa casa, não julgamos possível serem bem sucedidas interferências estranhas que apoiam anti-nacionais do interior. Aguentar! Aguentar! e nada mais é preciso para que amaine a tempestade e se nos faça justiça (...)”(53), acrescentando, quando dos acontecimentos em Angola: “(...) sejam quais forem as dificuldades que se nos deparem no nosso caminho e os sacrifícios que se nos imponham para vencê-las, não vejo outra atitude que não seja a decisão de continuar. Esta decisão é um imperativo da consciência nacional que eu sinto em uníssono com os encarregados de defender lá longe pelas armas a terra da Pátria. Esta decisão é-nos imposta por todos quantos, brancos, pretos ou mestiços, mourejando, lutando, morrendo ou vendo espedaçar os seus, autenticam pelo seu martírio que Angola é terra de Portugal (...)”(54).

Assim, quando do despoletar da subversão activa, na baixa do Cassange e em Catete, em Angola, a resposta militar só foi possível porque os Generais Botelho Moniz e Beleza Ferraz já tinham iniciado a alteração do dispositivo das Forças Armadas em 1959 (55). Informações veiculadas pela CIA (classificadas de muito seguras) de que a UPA, com o objectivo de chamar a atenção para a questão de Angola nas Nações Unidas, decidira provocar incidentes no Distrito do Congo, na noite de 15 de Março, foram passadas ao gabinete do Ministro da Defesa Nacional. O Quartel-General da Região Militar de Angola terá sido imediatamente avisado. Porém, o texto é arquivado com a justificação de que o assunto já era do conhecimento do comando (56).

Quando Portugal enfrentava a crise, com o ponto alto em 1961, era necessário tentar que o radicalismo nativo não tomasse conta do processo, e ver ainda se se ia a tempo de encontrar fórmulas de evolução. Mas quais? Uma solução tipo brasileira? Uma federação? Uma confederação? Uma integração genuína? O grande problema era sempre a unidade portuguesa que tinha de ser defendida, o património histórico português que tinha de ser salvaguardado e os direitos dos nativos que tinham de ser garantidos.

Adriano Moreira definiu a sua intervenção de “(...) autonomia progressiva e irreversível. Esta, para ser autêntica, tinha de abranger todas as etnias (...)” (57). Assim, o Presidente do Conselho, por forma a torná-la credível, manda o seu Ministro do Ultramar findar com o estatuto do indígena.

Portugal confrontou-se pela primeira vez com o pensamento internacional quando da sua admissão nas Nações Unidas, sendo aí que começou a ganhar relevo o significado e a utilidade que ainda podia ter um estatuto de indígenas, instituído pelo Comandante João Belo (58). Foi orientado pela preocupação de preservar e guardar as culturas nativas, os seus valores, a sua maneira de viver. Sendo anterior à Convenção Nº. 107 da Organização Internacional de Trabalho, tinha, no fundo, a mesma finalidade: defender as populações com culturas próprias e diferentes da europeia, na contemplação dos seus usos e costumes, o que é sempre uma tarefa muito difícil num processo de colonização que acelera a troca de padrões e que obedece a políticas intencionais que querem implantar novos modelos de vida. Essa tenção, de preservar a identidade cultural dos agrupamentos naturais, e o plano da colonização foram sempre acompanhados de grandes dificuldades internas e internacionais.

Desde a data em que o Comandante João Belo elaborou o Estatuto dos Indígenas, até aos anos de oiro da revolução anti-colonial, em 1961, a evolução do próprio Estatuto requeria uma avaliação urgente, baseada em vários pontos de referência defenidores de um quadro internacionalmente aceite da evolução dessas situações coloniais, que, quando começou a descolonização africana, passaram a constituir critérios alargados àquela área.

O Estatuto apoiava muito a imagem da discriminação que Portugal combatia em relação à África do Sul e servia de argumento em ataques desferidos contra Portugal na Assembleia Geral das Nações Unidas e na imprensa internacional (59), no sentido de que em Portugal também havia discriminação.

Esta imagem negativa para a política portuguesa era apoiada em factos inegáveis, como a prática do trabalho forçado, pois “(...) havia trabalho forçado, não apenas entre os territórios. A mão de obra para a África do Sul, com recrutamentos feitos por métodos que não tinham muito a ver com consentimento dos trabalhadores, apoiava a ideia do estatuto (...)”(60). Ao mesmo tempo já se traduzia em injustiças enormes do ponto de vista social, porque a passagem de nativo a cidadão, embora consentida pela lei, estava submetida a um processo rigoroso e à perda de algumas vantagens. O contingente de assimilados, exibido em qualquer Província, era completamente insignificante, o que também apoiava a ideia da discriminação e que os números mostravam ser uma barreira estanque.

O problema que levantava a revogação do estatuto dos indígenas, residia na definição do corpo eleitoral, pois, com igualdade de direitos políticos, a população europeia ficava minoritária - o que desde logo revelava uma fraquíssima confiança na integração e na sociedade multirracial (61). Estes receios eram, em nosso entender, infundados, pois a verdade é que o sistema eleitoral português da época não apresentava perigo nenhum ao regime constitucional, porque era um sistema que o governo dominava.

Na reunião da OTAN em Oslo, a 7 de Maio de 1961, o Secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, insistiu na necessidade de Portugal promover reformas urgentes nos territórios africanos e na necessidade de se fazer uma campanha de propaganda, nos EUA, para esclarecer a opinião pública sobre a política portuguesa em África. Para cumprir esse objectivo, o Governo Português firmou um contrato de um milhão de dólares com a Selvage & Lee, cuja campanha promocional provocou grande polémica nos Estados Unidos da América (62).

Sobretudo depois da experiência vivida nas Nações Unidas, Portugal queria ganhar alguma credibilidade na comunidade das nações, pelo que implementou reformas, como foi o caso da revogação do estatuto do indígena. Para Adriano Moreira, esta revogação foi indispensável, porque em seu entender, era a única maneira de introduzir uma esperança naquelas comunidades e de contrariar o recurso a violências (63).

O Departamento de Estado norte americano foi informado não só da abolição do indigenato mas também de que as reformas a desencadear não significavam a abertura a uma eventual independência. Apenas se tratava de colocar africanos em igualdade com portugueses de origem europeia, e que este início de reformas constituiria um sinal de progresso de Salazar (64), sendo as repercussões no Bloco Leste, a este propósito, interpretadas como uma nova manobra demagógica anunciada aos quatro ventos pelo Ministro do Ultramar. Salazar pensava afastar assim, “(...) da unidade oposicionista a parte mais conservadora e os dissidentes fascistas e arranjar um argumento para que os seus aliados da OTAN (...)” (65) o ajudassem um pouco mais dentro da ONU.

Foi necessário complementar a abolição do Estatuto com a introdução de um novo Código de Trabalho (66), uma nova Lei das Terras (67), para proteger os interesses das populações. A nível internacional, houve uma preocupação de verificação da autenticidade. Assim, veio a Portugal uma comissão do Bureau International du Travail (BIT) “(...) e verificaram que era a sério o trabalho desenvolvido pelo Ministério do Ultramar; verificaram também que os interesses eram afectados, que as resistências eram afectadas. Esse contrabalanço é que explica depois a política interna e o facto da paralisia dessas reformas (...)” (68).

Em 1963, já com nova frente de combate aberta na Guiné, mas ainda antes da extensão do conflito a Moçambique, Salazar referia: “(...) Deduzimos para o nosso comportamento em face dos povos africanos as seguintes posições: a mais estreita e amigável colaboração, se a julgarem útil; a maior correcção, se formos dispensados de colaborar; a defesa dos territórios que constituem Portugal até ao limite dos nossos elementos humanos e dos nossos recursos, se entenderem por bem converterem as suas ameaças em actos de guerra e trazê-la aos nossos territórios (...)”(69). Porém, Salazar sabia da necessidade de resposta política urgente. Passou, então, por uma ténue abertura em que fez concessões à opinião internacional com a promessa de uma maior autonomia para as Províncias, uma maior participação das elites e maior representatividade dos órgãos locais e uma maior intervenção das Províncias na direcção da política nacional (70). Foram duas as medidas de abertura mais significativas, sendo a primeira referida num discurso a 12 de Agosto de 1963 (71), onde veiculou a hipótese de a Nação se pronunciar em acto público solene (logo interpretado como plebiscito), na Metrópole e no Ultramar, sobre a política ultramarina prosseguida pelo governo. E a segunda, o encetar de conversações com os EUA, por forma a ser encontrada uma base comum relativa à evolução da política portuguesa para o Ultramar (72). O acordo Salazar – Kennedy sobre o futuro do Ultramar Português, em 1963, foi impossível, pois não se conseguem “(...) conciliar políticas objectivamente inconciliáveis (...)”(73).

Salazar sempre teve a lucidez da situação, afirmando diversas vezes a Silva Cunha: “(...) temos de ir para a independência, mas sem ser com prazos, sim quando os africanos estiverem prontos para se governar, pois quando nós sairmos vai ser a luta intertribal e o derramamento de sangue (...)” (74). Contudo remeteu-se para um imobilismo intransigente: “(...) a nossa linha de rumo é-nos traçada por uma história de séculos que moldou a Comunidade Portuguesa na sua feição euro-africana, e ainda pelo que a experiência nos tem permitido aprender do contacto com as mais variadas gentes do Globo (...)”(75).

Mesmo banidos os partidos pela Constituição de 1933, tal não implica uma extinção da resistência e Oposição ao Regime vigente. No pós II Guerra Mundial, “(...) a Oposição encontrava-se quase destroçada por falta de organização e unidade, tendo a pressão reformista surgido dos próprios quadros do Regime, nos estreitos corredores da legalidade vigente (...)”(76), vindo a reorganizar-se em torno do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Todavia, as suas críticas não incidiam sobre a estrutura do Estado, mas sobre a natureza do Regime, não assumindo, até aos acontecimentos em Angola, qualquer posição anti-colonial. A sua preocupação seria, sim, a instauração da democracia em Portugal; “(...) restabelecida esta, o problema colonial poderia então ser objecto de debate e confronto de ideias, de forma a encontrarem-se as soluções possíveis (...)”(77). O Regime e a sua Oposição quanto à política colonial “(...) progrediam em terreno promíscuo, paredes meias (...)”(78). Podemos mesmo dizer que grande parte dos notáveis da Oposição tradicional ficavam «perturbadíssimos» quando postos perante a ideia de independências negras. Apenas a partir da segunda metade da década de cinquenta o Partido Comunista Português (PCP), apesar de desconhecedor da realidade africana, assumiria uma atitude nitidamente anti-colonial.

Entre 1958 e 1962, no percurso da ante-guerra para a guerra, o Regime de Salazar vai atravessar uma grave crise. Este percurso, e o que ele acarretou de mobilização de opiniões e de fracturas nas mesmas, iniciou-se com as eleições presidenciais disputadas por Humberto Delgado em 1958, continuou com o movimento que ficou conhecido por "dos Claustros da Sé", o sequestro do paquete “Santa Maria”, a tentativa de golpe militar de Botelho Moniz e o golpe de Beja, sendo que, a partir de Março de 1961, o pano de fundo passou a ser a guerra em Angola.

A contestação e os maiores desafios ao Regime Salazar partiriam de oficiais que o haviam apoiado na sua génese, tais como Henrique Galvão e Humberto Delgado. Esta corrente foi qualificada por Linda Raby de ”populismo militar” (79).

O Capitão Henrique Galvão, deputado independente por Angola e Inspector Superior da Administração Colonial, fazia parte das forças “(...) que nos anos 50 tinham entrado em dissídio público e aberto com o Estado Novo e Salazar (...)”(80). O General Humberto Delgado, que desempenhara funções de confiança política e de manifesta identificação ideológica com o Estado Novo (81), após o seu regresso de Washington e ao verem-lhe ser negadas as suas ambições políticas, passa a fazer parte das forças oposicionistas.

Para Silva Cunha, “(...) a transformação de Delgado operou-se após a sua estadia nos Estados Unidos (...)”(82). Henrique Galvão terá indicado a António Sérgio para as eleições presidenciais o nome de Delgado que, após morosas negociações com a Oposição portuense, e com toda a surpresa para a Oposição tradicional, “(...) é lançado, significativamente, como «candidato independente», contando com apoios de alguns notáveis oposicionistas (...)”(83). O Directório Democrato-Social passa de uma nítida rejeição em apoiar o General para, perante o facto consumado, uma aceitação com algumas reservas.

O General, que afirmava “(...) em política mais vale mal acompanhado do que só (...)”(84), parte para a campanha eleitoral com o apoio “(...) dos democratas de velho estilo, dos republicanos liberais, dos monárquicos dissidentes, dos ressentidos do Regime, de todos os oposicionistas, em suma, que não sejam de extrema esquerda (...)”(85).

A campanha eleitoral e as suas intrigas políticas conseguem atrair as atenções da opinião pública internacional pela primeira vez na história do Regime. O apoio financeiro da campanha do General levantou algumas questões, sendo de crer que teve um apoio indirecto norte-americano (86).

A candidatura e respectiva campanha eleitoral do General Humberto Delgado abalou o país e o Regime instituído. O Dr. Trigo de Negreiros, Ministro do Interior, “(...) não escondia a gravidade que este representava para o sistema (...)”(87).

No programa da candidatura de Humberto Delgado destaca-se a defesa, na ordem interna, da integridade tradicional ultramarina com fundamentos bem expressos: “(...) unidade espiritual, política e económica da Comunidade da População Portuguesa de aquém e além-mar e a igualdade de direitos de todos os seus constituintes (...)”. E, na ordem internacional, mantinha e consolidava os “(...) compromissos e direitos internacionais de potência ocidental, geograficamente dispersa, mas política e moralmente unida e indissociável (...)”, acrescentando-se ainda “(...) defender e prestigiar a todo o transe os direitos da nossa soberania (...)”(88).

A 30 de Maio, Arlindo Vicente, o outro candidato da Oposição, com apoio especialmente do PCP, desiste da candidatura, e os seus apoiantes são aconselhados a votar em Humberto Delgado. Foi o “pacto de Cacilhas”. Os resultados eleitorais proclamados pelo Supremo Tribunal de Justiça, vinte dias após as eleições de dia 8 de Junho, são contestados pela Oposição. Contudo, estes resultados provocam um estremecer no Regime, considerando-se atingida sobretudo a autoridade carismática do seu chefe político.

Ainda no Verão de 1958 (14 de Agosto), Salazar, contra todas as expectativas, efectua uma remodelação governamental, demitindo Santos Costa e Marcello Caetano, e convida para a pasta da Defesa o General Botelho Moniz, próximo de Craveiro Lopes. A par da remodelação, desencadeia um acérrimo ataque contra a Oposição. O Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, é confinado ao exílio. O PCP sofre pesados reveses pela acção da PIDE, e o Directório e toda a Oposição não comunista é proibida de iniciativas públicas, nomeadamente, da visita do trabalhista inglês Beven, que viria ao Porto, a convite da Oposição liderada por Humberto Delgado de 14 a 17 de Novembro de 1958 (89).

Humberto Delgado, após a derrota nas eleições e perseguição interna, refugia-se a 8 de Janeiro de 1959 na embaixada do Brasil, em Lisboa, e a 20 de Abril do mesmo ano parte para o exílio em terras de Santa-Cruz, onde de imediato se assume como chefe, da Oposição, à frente do Movimento Nacional de Independência.

Como vimos, este primeiro grande abalo do Regime, fez modificar o sistema constitucional. O Presidente da República deixou de ser eleito directamente pelo povo e passou a ser eleito por um colégio abonado pelo executivo. A homogeneidade desse colégio estava assegurada, mas isso não beneficiou a autenticidade do Regime. O colégio eleitoral marcou o Regime de uma imagem de artifício e, portanto, para Adriano Moreira, o General Humberto Delgado, quando se ausentou do país, reclamou alguma legitimidade (90). Segundo Almeida Santos, que foi mandatário de Humberto Delgado em Moçambique e tido como o líder da Oposição democrática no território, “(...) em todos os lados onde foi possível aos Democratas de Moçambique controlarem a contagem dos votos, nomeadamente na Beira e em Lourenço Marques, ganhámos as eleições (...)”(91). Porém, nunca se virá a saber se as eleições foram ganhas por ele, mas é indiscutível que ele dividiu as águas.

Contudo, apesar da atracção dos media internacionais pela actividade oposicionista desencadeada pelo “terramoto delgadista” (92), é o espectacular sequestro do paquete Santa Maria em Janeiro de 1961 que vai atrair as atenções internacionais para a situação política interna em Portugal. Sob o nome de código «Operação Dulcineia», um grupo afecto ao Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, comandado pelo Capitão Henrique Galvão e mandatado por Humberto Delgado, executa a operação. “(...) Um funcionário da embaixada na Venezuela relatou para Lisboa que lhe teriam passado a informação do assalto ao Paquete Santa Maria. No Ministério ninguém fez caso disso (...)”(93).

Humberto Delgado, no Brasil, reivindicava o comando dos assaltantes do paquete, lançando um manifesto de criação da República Federal dos Estados Unidos de Portugal (94). Nesta fase, a dependência entre Delgado/Galvão ainda era mútua.

Henrique Galvão, em artigo no jornal “Estado de São Paulo” de 24 de Outubro de 1965, é esclarecedor quanto às suas intenções com o assalto ao Santa Maria, afirmando: “(...) Creio não exagerar se disser que foi o maior golpe sofrido pela ditadura durante o seu longo e afortunado consulado e que, se não derrubou o Ditador e o seu Regime, acabou pelo menos com todos os mitos com que as propagandas salazaristas tinham entretido as atenções distraídas de um mundo que ignorava quase em absoluto a hediondez da ordem da paz e da tranquilidade portuguesa (...)”(95). No artigo, ataca com violência os “comunistas”, que, depois de se terem apercebido da sua firmeza, teriam “(...) tentado reduzir o caso Santa-Maria ao nível de uma aventura afortunada de um dramaturgo (...)”(96). Quanto à situação ultramarina, afirma existirem três correntes: “(...) A do actual Regime, a dos comunistas, que, “caninamente” fiéis à ordem de Moscovo ou de Pequim, apoiam o incondicional abandono a que chamam “independência imediata”, e uma terceira corrente, decidida claramente pela presença portuguesa em África, sem prejuízo do direito que as populações “coloniais” têm de escolher conscientemente o rumo dos seus destinos (...)”(97).

A 9 de Dezembro de 1963, Henrique Galvão foi ouvido como peticionário no Comité das Curadorias. Auto – intitulava-se o primeiro democrata português a aparecer diante das Nações Unidas. Aí referiu que era necessário encontrar uma terceira via, não a via portuguesa nem a via terrorista: “(...) Temos de dar aos africanos o direito à autodeterminação com o que eu entendo o direito de decidirem, se desejarem, tornar-se completamente livres ou permanecer sob o domínio português (...)”(98). Todavia, para ele, antes que Portugal pudesse voltar à democracia, o problema colonial não poderia ser resolvido (99).

Para Henrique Galvão, profundo conhecedor de África, o direito de autodeterminação dos povos das colónias portuguesas podia e devia reconhecer-se imediatamente; mas, para o exercício imediato daquele direito, enquanto se mantivesse a política colonialista com que Salazar, pelo obscurantismo e pela miséria económica, fazia retrogradar as populações, nenhum dos povos das colónias africanas estava ainda preparado nem em via de preparação. Para ele, nem económica nem socialmente os povos de Angola e Moçambique estavam em condições de exercer o direito que tinham à autodeterminação sem o risco desumano de caírem no caos, na barbárie e nos massacres (100). Defendia a criação de uma Federação de Estados Autónomos entre Portugal e os territórios ultramarinos, “(...) com vista a uma futura Confederação de Povos de Língua Portuguesa, com governos e assembleias legislativas próprios, plena igualdade de direitos de todos os cidadãos de todas as raças em toda a área da Federação (...)”(101). Em nítido ataque à política ultramarina, procura demonstrar que o “pluricontinentalismo” do povo português era muito mais uma maneira de ser do que uma política de Estado, acusando o Governo de, a partir de 1930, ter suspendido discricionariamente essa maneira de ser, substituindo a tradicional política portuguesa em relação ao Ultramar por uma política colonial hipócrita e materialista e que, tendo banido o povo e a genealidade da sua raça, se exerceu contra ele, conduzindo Portugal à situação dificílima em que se encontrava (102).

A permanência do Regime e a infiltração comunista na Oposição eram, para Henrique Galvão, devidas à debilidade desta, mas esclarece que, se o Regime mudasse, esperava que os comunistas não tomassem o poder (103).

Henrique Galvão entra em ruptura com Humberto Delgado e acusa-o do fracasso de um golpe que começaria em Marrocos, nos fins dos anos 1961 (104). O General, em declarações em nome da Oposição portuguesa às potências estrangeiras e Secretariado-Geral da ONU, a 4 de Maio de 1962, referia: “(...) Ainda em nome da Oposição, reitero a condenação da política colonial do governo português, que desprezou a tendência contemporânea concernente aos povos sob domínio das potências europeias e pretende resolver apenas por manu militari o problema das aspirações de tais povos no sentido da descentralização político-administrativa e autodeterminação sincera, com todas as consequências que possa arrastar a um grau de dependência ou independência (...)”(105), e, em entrevista ao jornal italiano L´Unita, mostra a sua evolução quanto à política colonial, ao declarar: “(...) Desde 1960, antes da guerra em Angola, que sustento o princípio da autodeterminação. Em 1961, em Marrocos, tive entrevistas com o MPLA e com outros nacionalistas angolanos. Expliquei claramente que a autodeterminação significa independência para quem a quiser (...)”(106).

Em 1960, Humberto Delgado entra clandestinamente no território de Moçambique, através da Suazilândia. Procurava apoios para fazer a revolução a partir dali (107). Inviabilizada esta hipótese, através de contactos, tenta criar uma frente unida de combate ao Governo Português, abrangendo o Movimento Democrático Popular dirigido por ele próprio e os movimentos nacionalistas africanos, “(…) seus aliados naturais na luta pela democracia em Portugal (…)” (108), comprometendo-se o General, logo que conseguisse apoderar-se do poder, a promover a instalação imediata de Governos Democráticos em Angola e Moçambique e a conceder a independência o mais depressa possível (109). A Argélia e o Tanganica participariam na preparação da aliança entre a Oposição portuguesa dirigida por Delgado e os partidos africanos (110).

A PIDE passou a encarar a possibilidade do General ser o chefe do aparelho comunista em toda a Península Ibérica (111). Abandonando, inevitavelmente, o Brasil (112), passou o seu Quartel-General para Argel (113), de onde pretendia dirigir a acção revolucionária na Península, mediante acção de guerrilhas ou comandos, adiantando que pretendia formar um Governo no exílio em Argel (114) e afirmando que, uma vez instaurado o regime revolucionário em Lisboa, não haveria problemas, pois considerava-se um fervente partidário da libertação de todas as colónias, tendo garantido o seu apoio total a Eduardo Mondlane (115). Mas estava ciente e lastimava-se da falta de unidade da Oposição quanto ao problema colonial, reconhecendo que quando ascendesse ao poder seria o caos, mas que depois a ordem seria restabelecida (116).

Em finais de 1962, o Partido Comunista, lança em Argel a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN). Presidida por Humberto Delgado até 1964, a Frente era uma coligação que agrupava católicos, socialistas, comunistas e não um partido (117). Estranhas cumplicidades!

Na noite de 12 de Março de 1959, o assim denominado por “movimento dos Claustros da Sé”, motivado por preocupações com a situação política interna e com os problemas ultramarinos, fracassara. Este “Movimento Militar Independente”, de amplo espectro, controlado por elementos de centro-direita, aglutinava, em jeito de “cocktail”, um considerável número de monárquicos, mas havia socialistas de várias tendências, civis e militares e elementos do PCP, que no fim se demarcam (118). Esta retirada nunca foi explicada; admite-se no entanto que não quisessem arriscar participar num movimento revolucionário que não controlavam (119). É interessante notar que, inicialmente, o movimento incluía o Capitão de Engenharia Vasco Gonçalves (no espaço do PCP), futuro membro da Comissão Coordenadora do MFA.

Apesar de planeado como golpe militar, o movimento contava com uma considerável participação civil. O activista católico progressista Manuel Serra (a mobilizar como Sub-Tenente Maquinista Naval da Reserva) foi um dos seus principais organizadores, mas podemos referir outros, como os monárquicos Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Teles e Fernando Amaro Monteiro, o cooperativista António Sérgio, o “ex-camisa azul” Francisco Rolão Preto, etc, etc.

Constitui-se uma Junta Militar, onde a grande figura era o General Frederico Lopes da Silva, Presidente do SupremoTribunal Militar, e onde se podiam encontrar outros elementos importantes como os Majores Pastor Fernandes, Clodomir Sá Viana d´Alvarenga e Luís Cesariny Calafate e os Capitães José Joaquim de Almeida Santos (que consideramos a “alma militar” do movimento) e Varela Gomes (o qual se afasta).

Aquela que seria a última “revolução de cavalheiros” (120) preconizava uma solução política interna de democracia participativa e um eventual referendo para a restauração da monarquia, sendo que para o Ultramar, na “Proclamação aos Portugueses” a efectuar por D. Duarte Nuno de Bragança, se apelava para solução conducente a uma Comunidade Lusíada (121).

Na sequência de delação nunca percebida, uma parte ínfima das centenas de conspiradores seria presa pela PIDE. O Poder agia com extrema cautela. Só foram presos os elementos que, por muito notados, constituiriam escândalo se em liberdade. Face aos oficiais implicados, o tratamento dado foi magnânimo.

A 13 de Julho de 1959, foi enviado de Moçambique ao Ministro do Ultramar um documento com 236 signatários onde era referido: ”(...) Existe em Moçambique (...) uma forte corrente de opinião desfavorável ao actual Regime (...)” (122), mas esta não era separatista, apenas punha em causa o Regime. E esclarecidamente o documento expunha os perigos que se avizinhavam no horizonte, este já ali tão perto. A Baixa do Cassange (Angola) ocorreria dali a menos de 2 anos, e os problemas em Cabo Delgado dali, a 5 anos.

Será Cunha Leal que, com o seu livro “Colonialismo dos Anticolonialistas” (123), lança, segundo ele, as bases possíveis para uma solução do problema colonial português, a partir de um modelo confederal composto por Estados independentes. Cunha Leal introduzia, assim, no debate político a questão colonial, referindo-se os oposicionistas na campanha eleitoral de 1961 a uma solução política da guerra através da autodeterminação. Mas é na campanha de 1965 que se passou a admitir, claramente, o direito à autodeterminação dos povos das colónias africanas, estando a descolonização no centro das atenções do discurso da Oposição.

A “posição federalista” de Marcello Caetano era perfilhada por Homem de Mello, que partia do princípio de que a emancipação de Moçambique e Angola seria inevitável, pelo que, se era impossível ficar de acordo com a estrutura política vigente, era necessário caminhar-se corajosamente para soluções que permitissem salvaguardar a influência portuguesa, a civilização cristã e o futuro livre acesso de todos aqueles que, idos de Portugal, continuassem a desejar radicar-se nos territórios, formando novos brasis, ou então a independência dos territórios seria alcançada por meios violentos, sem qualquer benefício para Portugal e para os portugueses radicados em África (124).

Para Homem de Mello, a independência de Angola e Moçambique era dever que se impunha à “(...) missão civilizadora de Pátria mãe de novas Pátrias (...)”(125). Contudo, considerava destituído de significado e irrelevante a fixação de uma data.

Em Moçambique foi elaborado um documento, posteriormente, entregue em Abril de 1961 ao Presidente da República, Almirante Américo Tomás, assinado por mais de 6 mil portugueses radicados no território. Aquele documento, reportando-se aos acontecimentos de Angola, refere: “(...) Esta exposição destina-se a evitar, enquanto é tempo, que amanhã Moçambique tenha de dirigir ao Governo da Nação um grito igual (...) de há muito que a população (...) vem ordeiramente insistindo junto do Governo, nas poucas oportunidades que lhe têm sido dadas, no sentido de ser revista uma política ultramarina eivada dos mais reprováveis vícios coloniais e que, além de contrariar o natural progresso dos territórios ultramarinos, está em flagrante conflito com a razão nacional e a consciência universal (...)”. E acrescenta: “(...) Moçambique continua sem acesso ao poder, sem liberdade de imprensa ou de geral expressão, sem genuína representação na Assembleia Nacional, com as suas mais significativas instituições controladas por comissões administrativas nomeadas pelo Governo e a ele devotas, sem municípios eleitos (...)”; referindo-se ao trabalho indígena, menciona explicitamente: “(...) Sempre a população de Moçambique (...) fez sentir a necessidade de medidas governativas que eliminassem o que resta de certas práticas desumanas (...). Não existe em Moçambique um específico problema racial, (...) o que não pode negar-se, nem desconhecer-se, é a existência de privilégios económicos e sociais que implicam a sujeição dos menos evoluídos a formas de trabalho e a níveis de vida de que apenas beneficiam um punhado de eleitos (...). Quando os outros países (...) apontam os nossos erros, não pode deixar de se sentir que se dirigem ao Governo que os consente (...) mas de modo nenhum às populações que delas não aproveitam (...) os signatários (...) não os amedronta morrer pela Pátria. Apavora-os, no entanto, serem enterrados com ela (...)”, findando o documento com seis apelos: desde a elaboração de um estatuto de autonomia política, administrativa e financeira, à concessão do estatuto de cidadão a toda a população, à organização política em moldes democráticos com vista à formação de um Governo em ligação com a Metrópole em moldes de uma comunidade portuguesa de nações, não esquecendo as necessárias medidas militares de segurança para defesa de intervenções externas e, finalmente, assegurar uma ampla difusão publicitária interna/externa (126).

Os Chefes militares no seguimento dos acontecimentos em Angola irão preparar a “(...) maior insubordinação institucional da hierarquia militar (...)” (127). Botelho Moniz, ao preconizar entre 11 e 13 de Abril o golpe que ficou conhecido na história pela «botelhada», tendo a percepção do contexto internacional adverso e condicionador da atitude portuguesa em matéria colonial, pretendia destituir Salazar e, pelo menos aparentemente, liberalizar o Regime. Toda a gente sabia da conspiração, percebendo Salazar na sua lucidez que “(...) já não tinha autoridade sob a tropa, porque se a tivesse, não teria sido possível que esta conspiração ao ar livre se desenvolvesse (...)”(128). Assim, responde com demissões e reformula toda a entourage militar, tendo como pano de fundo os acontecimentos em Angola. A “botelhada” era o sintoma da já declarada crise no seio do próprio Regime e que viria a ser reprimida e adiada pela eclosão da guerra em Angola, que polarizou as Forças Armadas Portuguesas. Foi a afamada expressão de Salazar, «para Angola rapidamente e em força» que, obtendo o apoio quase geral dos portugueses, apanhou a Oposição desprevenida e readquiriu a autoridade sobre as Forças Armadas.

A guerra em Angola acabou assim por servir de reforço mútuo entre o Regime e a instituição militar. Estavam de novo - tal como durante a II Guerra Mundial - solidários e dependentes mutuamente (129).

O Almirante Sarmento Rodrigues toma posse do cargo de Governador - Geral e Comandante-Chefe de Moçambique a 31 de Maio de 1961, sendo-lhe atribuído o exercer do esforço nos Distritos de Cabo Delgado, Niassa e Tete. Por seu turno o General Venâncio Deslandes é nomeado para fazer face à situação em Angola, tomando posse do cargo de Governador e Comandante-Chefe a 6 de Junho de 1961, com a missão de esmagar o terrorismo. A tarefa de ambos será facilitada com a concentração de poderes civil e militar. Porém, Venâncio Deslandes começou de tal maneira a ser desobediente para com o Governo de Lisboa que Franco Nogueira começou a chamar-lhe o “D. Pedro de Angola”(130).

Podemos considerar 1961 como um ano marcante para Portugal. Nele se processa o assalto ao Santa Maria, iniciam-se os acontecimentos em Angola, tem lugar a tentativa de golpe militar de Botelho Moniz e, num retorno de actividade política, a burguesia liberal difunde o programa para a Democratização da República. Este programa reaparece quando da apresentação dos deputados oposicionistas para as eleições legislativas desse ano. Em adenda, avançava a perspectiva de um referendo sobre a autodeterminação dos povos coloniais (131). A 11 de Novembro, numa operação organizada por Henrique Galvão, um avião comercial português foi obrigado a sobrevoar Lisboa, lançando folhetos subversivos (132). Nesse ano, a defesa do Ultramar já dividia a juventude universitária.

Foi ainda em 1961 que se preparou o assalto ao Regimento de Infantaria N.º 3, em Beja. Manuel Serra, vindo clandestinamente de Marrocos para Portugal, e o Capitão Varela Gomes, chefiando um grupo de civis e militares, em aproximadamente dois meses montaram a conjura. Estava planeado um levantamento civil e militar para dominar o Alentejo e o Algarve, suscitando movimentos populares de sublevação. Humberto Delgado, que também entrara clandestinamente no país, encabeçaria o movimento. Esperava-se o colapso do Regime e que as outras unidades militares não oferecessem resistência. Porém, na noite da passagem do ano de 1961 para 1962, durante a ocupação do Regimento, o Capitão Varela Gomes é gravemente ferido pelo 2º Comandante da Unidade, Tenente-Coronel Calapez que foge e dá o alarme, sendo o quartel rapidamente cercado pelas forças fiéis a Salazar. O saldo da intentona cifra-se em três mortos, entre os quais o subsecretário de Estado do Exército, Tenente-Coronel Jaime da Fonseca, e catorze prisioneiros.

Ao longo da década de cinquenta, por intermédio da Casa dos Estudantes do Império e do Centro de Estudos Africanos, criado em Lisboa, em 1951, alguns jovens estudantes universitários africanos tinham já procurado, por tentativas, a aproximação de um primeiro esboço “(...) dos fundamentos culturais e políticos das diversas correntes orientadas para a libertação (...)”(134). Assim, foram também os estudantes, possuidores de “(...) uma longa tradição organizativa de carácter semi-legal e de contestação (...)” (133), que encetaram duros golpes no Regime. A “primavera política” das contestações nas Universidades de Coimbra, Porto e Lisboa, em 1962, e os protestos em 1969, em Coimbra, são disso exemplo. Este tipo de contestação favoreceu o emergir de quadros dos partidos de esquerda e influenciou decisivamente os militares.

As contestações estudantis iniciadas em 1962 conduziram à demissão de Marcello Caetano, então Reitor da Universidade Clássica de Lisboa, por discordância com a política repressiva praticada.

As dificuldades colocadas pelo Regime à Oposição não conseguiram impedir que se desencadeasse um movimento de opinião anti-guerra em África, tendo o trabalho de propaganda e agitação efectuado pelo Partido Comunista desempenhado papel de relevo (135).

Fazia parte da política do PCP incentivar as deserções, se possível em massa, por forma a enfraquecer as Forças Armadas, principal base de apoio do Regime, passando a partir de 1967 a industriar os militantes comunistas para que, uma vez mobilizados, minassem a partir do interior a instituição, criando nela a necessidade de participar na missão de derrube do Regime e do fim da guerra (136).

A Frente de Acção Popular - facção dissidente do PCP e tida como organização clandestina, subversiva e revolucionária -, actuando por todas as formas de violência, também penetrava nas organizações de estudantes, encaradas pelo Regime como um perigo, nomeadamente na expressão que pudessem vir a tomar (137). Para sossegar as escolas, Salazar, transferiu os agitadores estudantis para os quartéis e para a guerra, atitude que se transformou numa acção de tiro pela culatra para o então Presidente do Conselho (138).

Alexandre Lobato, deputado por Moçambique na Assembleia Nacional, numa intervenção efectuada em Abril de 1962, reivindicou para a população moçambicana,”(...) farta de ser tratada como menor (...)”(139), a participação mais activa nas responsabilidades e orientação da vida nacional, pois queria depender menos de Lisboa e poder decidir por si, mais do que até aí, sobre coisas que lhe eram próprias, reclamando urgentemente a descentralização administrativa e uma maior autonomia financeira para o território (140).

O Marechal Craveiro Lopes referiu ser necessário caminhar-se para uma evolução gradual do Regime e que as ocasiões surgidas para o fazer não foram aproveitadas. Assim, parecia-lhe que o caminho apontava nesse sentido, porque se deixou de falar na integração política, fórmula que, na sua opinião, não só contrariava os princípios naturais mas também se encontrava inteiramente em desacordo com o que se devia defender naquela altura (141).

A Oposição democrática durante a campanha eleitoral de Outubro-Novembro de 1961, defendia o princípio da autodeterminação, não só para os territórios coloniais como para Portugal, exigindo a realização de um referendum sobre a política africana. O Directório Democrato-Social defendia a paz como via de diálogo, revelando-se, no entanto, sempre particularmente impreciso, quanto à forma e ao prazo da sua aplicação (142).

Em reunião do Directório e Secretariado da Acção Democrato-Social (143) realizada a 8 de Março de 1964, foi aprovado um comunicado no qual avultava a crítica à acção exercida na matéria de política ultramarina, aos erros que se foram acumulando e à visão governativa, consideradas comprovadamente inadequadas às circunstâncias e estranhas à evolução, marcando as posições deste sector democrático sobre o assunto (144). Considerou-se desde logo condição indispensável para solução do problema ultramarino a adesão ao princípio basilar da autodeterminação, acompanhado das medidas preparatórias inerentes ao nível administrativo, educativo, económico e social e à negociação de uma plataforma de acordo com certas nações dominantes da ONU e igualmente com esta.

Naquela reunião, os democratas assumiram a defesa de uma nova tese e de um novo rumo implícito de Governo. Aqueles não hesitaram aceitar que a adopção da doutrina pressuposta fosse conduzida pela evolução dos acontecimentos, até às suas últimas consequências (145). Porém não se dispensaram de acentuar que seria dever de quem governasse no momento e de quem presidisse às negociações por parte do velho Portugal metropolitano defender, até à última, e com recurso a todos os meios persuasórios, a presença material e espiritual portuguesa em África, não se reconhecendo que a solução do problema tivesse de ser de índole militar, mas sim política, de compromisso, baseada na compreensão e boa vontade mútuas e, acaso elaborada, se assim fosse demonstrado como necessário, com participação efectiva da ONU (146).

Em resposta ao Almirante Mendes Cabeçadas e a propósito do comunicado referido, o Presidente do Conselho, esclarecia que o país já estava elucidado sobre as consequências da solução de compromisso preconizadas e por isso se sacrificava e defendia (147). Todavia, o Directório persistia na solução política com base no princípio da autodeterminação, processada por métodos democráticos, admitindo outra tese caso surgissem dificuldades na aplicação do princípio da autodeterminação e admitindo consequentemente, que algumas dessas dificuldades fossem removidas com o auxílio da ONU (148).

A Causa Monárquica, defensora de que só a Coroa, apesar de distanciada do Regime, conferia estabilidade à multiplicidade de situações, se tal fosse necessário, para melhor defesa da integridade da Pátria, não hesitaria um instante em ser a primeira a fazer cessar as suas actividades onde o perigo se concretizasse, deixando de lutar pela alteração do Regime, para que todos os portugueses se consagrassem nas mesmas linhas de defesa do património nacional (149).

A Oposição clandestina considerava a via do diálogo a única capaz de evitar a guerra e proporcionar uma solução viável e consentânea com os princípios da colonização portuguesa (150), defendendo o PCP, nitidamente, a luta contra a guerra colonial e pela independência imediata dos povos das possessões portuguesas em África, sendo esta luta travada “(...) em três frentes principais: a acção política, a resistência nas forças armadas e acções contra o aparelho militar colonialista (...)”(151).

O Regime, falho que estava de coesão e de convicção, não teve alternativa para a política sem saída, decidindo continuar a guerra; Salazar insistia em opor-se a qualquer alteração substancial, não hesitando em reprimir todo o esboço de resistência (152).

Uma publicação das Edições Anti-colonial intitulada “A Hierarquia Católica Portuguesa e a Questão Colonial”, refere que a Hierarquia da Igreja Católica em Portugal se encontrava “(...) enfeudada aos interesses das minorias opressoras do povo português e dos povos coloniais (...) assumindo uma posição marcadamente colonialista (...)”, fazendo apelos “(...) ao patriotismo e à missão evangelizadora (...)”(153), apelando ainda para que os Católicos Portugueses tomassem posições e referindo que a posição da hierarquia, quanto ao apoio ao colonialismo e à guerra colonial, não seria a mesma da grande maioria católica e do povo português, pelo que estes deviam negar o apoio ao colonialismo salazarista e reconhecer as justas aspirações dos povos coloniais à independência, incitando a juventude católica a não participar na guerra (154).

Na sequência do Concílio Vaticano II, vinha-se verificando que o comportamento daqueles elementos do clero católico que enveredaram por excessos no aggiornamento contestavam a posição portuguesa em África. Contestação que por vezes chegou a revestir a forma quer de apoio logístico quer ainda de informação à acção armada da FRELIMO, nomeadamente por parte das congregações religiosas estrangeiras.

A contestação nos sectores católicos iniciou-se com o Bispo da Beira, D. Sebastião de Resende. Na sua Pastoral “Moçambique na encruzilhada”, datada de 1 de Dezembro de 1958, é crítico das roturas provocadas entre o homem e a terra, a família e as demais instituições, ou seja, da grave crise social que então se vivia no território, apontando incisivamente os problemas, as suas origens e a solução dos mesmos (155). Este Prelado foi referido em relatório para Salazar como seu admirador, mas muito falador e impulsivo e como intrometido na vida política. No entanto, de uma maneira geral, tudo o que escrevia era considerado verdadeiro, “(...) e bem aconselhado andaria o Governo inquirindo e indo ao fundo dos problemas por ele focados tentando dar-lhes remédio (…)”(156).

Outra figura dissidente da hierarquia católica seria D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, que, em 3 Julho de 1958, após as eleições, enviou a Salazar uma carta em termos que tendo em conta o contexto, se podem considerar corajosos e violentos, sendo por isso votado ao exílio.

Na campanha eleitoral de 1965, 101 “católicos progressistas” subscreveram uma declaração política onde se afirmava explicitamente a condenação da guerra em África, considerada como oposta aos valores cristãos e ao pensamento da Igreja. Esta declaração terá marcado “(...) o momento de viragem de um grande sector da opinião católica para o campo da Oposição (...)”(157).

Em finais de 1972, surge a manifestação que ficou conhecida por “Jornada do Rato”, contrária ao prosseguimento da guerra do Ultramar e que, levada a efeito por um grupo de “católicos progressistas”, “(...) constrangeria o Poder à violência que o comprometesse ou à transigência que o rebaixasse; na verdade, na situação de «réu em tribunal popular» já quase ele se encontrava (...)”(158). Destacamos o facto de nesta jornada se ter desencadeado um processo de discussão pública alargada sobre a guerra no Ultramar (159), revelando contradições internas da Igreja Católica, que havia já iniciado o processo de descomprometimento com a política governamental.

A hierarquia eclesiástica ia-se distanciando do Regime, posição acelerada a partir do momento em que o Papa Paulo VI recebe, a 1 de Julho de 1970, os líderes dos movimentos independentistas Amílcar Cabral (do PAIGC), Agostinho Neto (do MPLA) e Marcelino dos Santos (da FRELIMO).

Em Janeiro de 1973, dá-se o caso dos padres de Macuti, terminando com a prisão dos mesmos por acusação de crimes contra a segurança do Estado.

A contestação à guerra nos sectores católicos findou com a expulsão a 14 de Abril de 1974 de onze missionários cambonianos e do Bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, após as Cartas Pastorais “Repensar a Guerra” e “Um Imperativo de Consciência”, em Janeiro e Fevereiro de 1974, respectivamente (160).

Em Setembro de 1968, Marcello Caetano substitui Salazar com anuência dos militares, que, segundo ele, teriam condicionado a sua aceitação à manutenção da defesa do Ultramar e à rejeição da solução federativa (161).

Com esta substituição, pensava-se numa abertura do Regime através da política “renovação na continuidade”(162), sem contudo se abandonar o esforço militar em África: a União Nacional passa a Acção Nacional Popular e a PIDE a DGS (Direcção Geral de Segurança); verifica-se um atenuar da censura na imprensa; Caetano acaba com os exílios de Mário Soares e de D. António Ferreira, Bispo do Porto; aprova uma nova legislação sindical; realiza eleições para a Assembleia Nacional em 1969 e em 1973; visita a Guiné, Angola e Moçambique; conduz a revisão da Constituição em 1971; contudo propôs a recondução do Almirante Américo Tomás para um terceiro mandato na Presidência da República. No fundo, uma mudança apenas de forma, em vez de transformações profundas, pois na globalidade permaneceria um regime político anti-democrático e de partido único, passando os poderes a ser partilhados, de forma instável, entre a Presidência da República e a Presidência do Conselho de Ministros.

No período que se estende de Setembro de 1968 a Setembro de 1970, todas as questões herdadas quando do afastamento de Salazar ficaram em aberto, pois não só não foram objecto de uma opção clara como ainda se agudizaram insensivelmente, verificado-se hesitações, buscas sem sucesso de soluções intermédias, aparências de mutações substanciais e recuos subsequentes (163). Quanto ao Ultramar, ficou por se fazer a escolha entre a forma unitária do Estado ou de uma estrutura federal o que teve particular reflexo na autonomia política e legislativa dos territórios, que assim podiam ou não orientar-se no futuro para a independência.

A 11 de Setembro de 1969, na campanha eleitoral para a qual foi consentida a organização da Oposição clássica, Marcello Caetano, numa procura de consolidação no poder e de alargamento de base de sustentação, executa uma acção de propaganda muito hábil, “(...) nomeadamente no último programa “Conversa em família”, antes das eleições, o que atraiu grande eleitorado (...)”(164). A propósito das eleições legislativas, Américo Tomás terá dito a Marcello Caetano que, se estas fossem vencidas pela Oposição, as Forças Armadas interviriam (165).

A campanha foi aberta com uma comunicação em que se abordou a política ultramarina da seguinte forma: “(...) É preciso que cá dentro e lá fora fique bem claro se o povo português é pelo abandono do Ultramar ou se está com o Governo na sua política de progressivo desenvolvimento e crescente autonomia das Províncias Ultramarinas (...)”(166), que ele, face aos resultados eleitorais, considerou legitimada (167). Em síntese, para Caetano, “(...) o eleitorado português, em Outubro de 1969, afirmou que a Nação continuava firme no propósito de manter no seu seio aqueles que através dos séculos ganharam o direito a viver em Portugal. A Nação permanece fiel ao propósito de servir a causa da Humanidade valorizando todos os seus filhos e a todos encaminhando amoravelmente para os destinos comuns. O eleitorado português não quis a guerra; mas, proclamando a sua fidelidade a uma tarefa de gerações, afirmou a vontade de defender a Paz contra os que a quebram e a perturbam. Aí está um dos mais graves aspectos do mandato indeclinável que o governo recebeu (...)” (168).

A Oposição, dividida, procurou adoptar uma plataforma de actuação comum, tendo uma das últimas tentativas sido a esboçada em S. Pedro de Muel, em 15 de Junho de 1969. Ali, as posições da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) e da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) tinham fundo idêntico: a solução política para a guerra em África (169).

A Comissão Eleitoral Monárquica (CEM), que também participou no debate sobre o problema ultramarino, criticava severamente a política do Governo de Marcello Caetano. Os monárquicos partiam do princípio de que Portugal era uma nação una, propondo a conservação dessa unidade dentro de um Estado unitário, alcançando as Províncias Ultramarinas a sua independência no seio da Nação portuguesa. Assim, as posições descentralizadoras propostas por Marcello Caetano eram incompatíveis com as afirmações de unidade dos monárquicos (170).

As eleições obedeceram ao sufrágio não universal, mas sim restrito, pelo que não revelaram a vontade política do povo português em toda a sua plenitude. Marcello Caetano iludia-se com os resultados. Porém, uma vez que considerava o seu mandato legítimo e tencionava prosseguir a governação de acordo com a fórmula “renovação na continuidade”, avançou não só com a defesa ultramarina mas também com a reforma das leis e instituições, com vista a um alargamento da autonomia das Províncias. Esta manobra liberalizante de Marcello Caetano traduzia claramente o agravamento da crise do Regime.

Ultrapassadas as eleições, a Oposição clássica, que concorreu dividida, retrocede para a clandestinidade, prevalecendo, assim, no sistema de partidos, a continuidade sem renovação (171). Sucedem-se as prisões dos oposicionistas mais moderados, e Mário Soares é confinado a um novo exílio. Esta inversão na esperançosa política de abertura de 1968 conduz a um extremar de atitudes da Oposição, “(...) originando um fenómeno de esquerdização geral da luta contra o Regime (...)”(172). Quanto ao Ultramar, manti nha-se a guerra.

Marcello Caetano, com a preocupação de abertura do Regime e dando uma imagem de democratização, convidou alguns elementos, nomeadamente ex-alunos, para participarem na Assembleia Nacional, com a condição de não hostilizarem a política ultramarina. Estes elementos constituíram a ala liberal, assim baptizada pelo jornalista Alves Fernandes.

A Oposição desenvolveu uma luta semi-clandestina, de que foram exemplo, os Congressos Democráticos (1957, 1969 e 1973), a criação da CDE e da CEUD e uma luta clandestina, onde se destacou a acção do PCP e da Acção Socialista Portuguesa (ASP, na continuação das correntes liberais-republicanas e sociais-democratas), que, desde os finais de 1964, era a principal força tendencialmente polarizadora do campo não comunista. Após as eleições de 1969 emergiram pequenos grupos, perdendo a Oposição tradicional espaço de manobra. Os socialistas da ASP, que inicialmente adoptaram uma posição nitidamente oportunista em relação à postura política de Marcello Caetano, após a “Primavera Marcelista” radicalizaram a sua posição.

A direcção do Partido Socialista, fundado em Abril de 1973, a partir de quadros da ASP, reúne com a direcção do PCP em Setembro desse ano, e publicam um comunicado conjunto onde era dada ênfase à participação unida no movimento da Oposição, acentuando sobre os objectivos imediatos do fim da ditadura e da guerra colonial e de negociações com vista à independência imediata dos povos de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique.

Duas iniciativas de grande importância, na época, foram a criação do Jornal Expresso a partir de Janeiro de 1973 e da Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES).

O primeiro foi um agitador de mentalidades e a segunda foi apoiada por Caetano numa vã tentativa de formar “(...) uma alternativa de apoio ao seu governo, à margem do desgastado partido único (...)”(173). Vã, pois depressa verificou que nela penetraram elementos da CDE e da CEUD.

A Oposição democrática reuniu em congresso pré-eleitoral, em Aveiro, de 4 a 8 de Abril de 1973. Na Declaração final, repudiava-se a guerra colonial, representante nítida de um crime conta a Humanidade, concluindo os delegados ao Congresso que os objectivos imediatos, possíveis de atingir através da acção unida das forças democráticas, eram o fim da guerra colonial, a luta contra o poder absoluto do capital monopolista e a conquista das liberdades democráticas e económicas (174).

Aquele Congresso, o terceiro da Oposição democrática, veio, assim, estabelecer um radicalismo anti-guerra colonial e a obrigatoriedade de se encetarem negociações com os movimentos independentistas, conducentes à independência.

Uma activa oposição à guerra em África surgiu de forma disciplinada e de um efectivo movimento urbano clandestino, a Acção Revolucionária Armada (ARA, que fazia parte integrante do Partido Comunista Português). Esta advogava uma reforma política e social para Portugal e a independência das Províncias Ultramarinas. Na primavera de 1971, lança uma campanha de sabotagens (175). Mas foram sem dúvida as Brigadas Revolucionárias, surgidas de uma cisão interna do PCP, em 1970, que de forma mais decidida combateram por meios militares.

Estes movimentos tornavam Portugal num país que enfrentava o quinta-colunismo, pois sustentava a guerra revolucionária em três Teatros de Operações distintos, mais uma quarta frente a nível interno e a frente internacional.

Como resultado destas actividades, o discurso político oficial passa a frisar que tudo aquilo fazia parte de um plano de desagregação da frente interna.

Já em Dezembro do ano anterior (1970), Marcello Caetano, quando da apresentação da proposta de Lei de Revisão Constitucional, referira: “(...) O estado de sítio corresponde à instauração da lei marcial, com entrega dos poderes à autoridade militar. Temos procurado evitar, nas próprias Províncias Ultramarinas, essa solução drástica e mantivemos sempre a supremacia do poder civil (...)” (176). Assim, mantinha-se o esforço militar em África, sacrificando-se a liberalização.

O discurso oficial referia ainda a resistência preconizada pelo Regime, como uma imposição pela defesa dos interesses das populações brancas desde há muito aí instaladas. Mas o cansaço em Caetano era já notório. Levara 40 anos a preparar-se para ser Presidente do Conselho, lugar onde já chegou cansado; “(...) além do mais fora chamado para uma tarefa que contrariava tudo quanto ele ensinou e uma tarefa em que as medidas contrariavam os interesses de quem sempre o acompanhou (...) (177).

Marcello Caetano terá dito a Freitas do Amaral, em Agosto de 1973, nos jardins do palácio de Queluz: “(...) Para já, não encontro outra solução que não seja continuar a defesa militar e ir preparando os territórios, através de uma autonomia progressiva e de participação crescente das populações na vida política e administrativa, para um dia poderem, conscientemente, assumir o seu próprio destino. Que desonra seria para Portugal criar novos Brasis? Só que a independência do Brasil foi uma independência branca e portuguesa, ao passo que hoje em dia a ONU não aceita as independências brancas e europeias. Se a comunidade internacional aceitasse a independência branca de Angola e de Moçambique, eu próprio teria a maior honra em lha conceder. Mas independências de maioria negra, treinada na guerra contra o branco e impreparada para a paz multirracial, e ainda por cima para instalar em Angola e Moçambique regimes comunistas de obediência soviética? Não é possível. Daqui concluo que temos de continuar a guerra, por um lado, e de apostar na autonomia progressiva e participada, por outro (...)”. E acrescentava, quanto à continuação da guerra e do problema dos militares exaustos: “(...) Eu não posso, só para lhes fazer a vontade, decretar uma paz que não nos daria garantias ou conceder independências que seriam prematuras. Preciso de tempo. E portanto preciso que os nossos militares continuem a combater, enquanto os nossos inimigos nos atacarem. Mas é claro que tudo tem um limite: Se as Forças Armadas (...) não quiserem continuar a guerra e se entenderem dever tomar o Poder para acabar com ela, eu de bom grado lho cederei. Só espero que não me metam na cadeia por lhes fazer a vontade (...)”(178).

Em discurso proferido a 5 de Março de 1974, na Assembleia Nacional (179), o Presidente do Conselho manifestava opinião contrária. Justificou a presença histórica em África, perturbada na altura “(...) por crescente pressão internacional adversa. Uma pressão determinada por preconceitos ideológicos, por interesses imperialistas, por solidariedades continentais (...)”. Considerou legítima a defesa das populações e necessário continuar as operações militares, “(...) perante uma agressão preparada e desencadeada a partir de territórios estrangeiros (...)”.

Esta posição de Marcello Caetano reveste-se de ambiguidades e indefinições, agravadas por “(...) uma inversão na política de firmeza seguida até então (...)”(180), dado que, em 26 e 27 de Março de 1974, tinha lugar em Londres uma reunião secretíssima entre um emissário do Governo Português, o então Cônsul-Geral em Milão, José de Villas-Boas Vasconcelos Faria, e uma delegação do PAIGC composta por Vítor Saúde Maria, Silvino da Luz e Gil Fernandes. A proposta do emissário de Marcello Caetano consistia num cessar fogo na Guiné, seguido de abertura de negociações formais para reconhecimento da independência (181). Quanto a negociações, o Presidente do Conselho temia a teoria do dominó: “(...) Não poderíamos, por exemplo, aceitar a negociação com o inimigo na Guiné, em termos que nos privassem da autoridade para recusar negociações em Angola ou em Moçambique (...)”(182).

A política seguida pelo Governo era a de “(...) defender, energicamente, em todos os campos a integridade de Portugal, aquém e além - mar (...)”. O Presidente do Conselho auscultava, naquele dia 5 de Março de 1974, a opinião da Assembleia Nacional sobre a certeza do rumo político traçado. Esta decidiu “(...) manifestar o seu apoio à política do Governo (...), em particular no que respeita à defesa e valorização do Ultramar (...)”(183).

Em 5 de Março de 1974, o Presidente do Conselho iniciou uma comunicação à Assembleia Nacional com a seguinte frase: “(...) Nenhuma dúvida pode haver de que o mais grave problema que presentemente se põe à Nação Portuguesa é o Ultramar (...)”(184). E desafiou a Assembleia a adoptar “(...) uma atitude consciente e definida e, por isso, fazer uma reflexão (...)”. E faz as seguintes afirmações:

“(...) As operações militares em Angola, em Moçambique e na Guiné resultam da legítima defesa perante uma agressão preparada e desencadeada a partir de territórios estrangeiros (...)”;

“(...) As forças militares foram chamadas a cooperar nesta acção de polícia. Só que o ataque dos adversários foi continuando sob as formas insidiosas da guerra subversiva (...)”;

“(...) As forças militares não fazem guerra: asseguram a paz (...)”;

“(...) Não dominam, não subjugam, não anexam, não conquistam - apenas vigiam e repelem quando necessário, a força pela força, proporcionando aos habitantes a possibilidade de fazer normalmente a sua vida, apoiando a sua evolução e promoção social e garantindo o fomento e o progresso do território (...)”;

“(...) Há uma defesa global do ultramar que nos impõe coerência de atitude (...) uma abdicação num sítio logo afectaria a força de resistência no conjunto (...)”.

Considerava como pontos fundamentais da política governativa:

“(...) Consolidação das sociedades multirraciais que cultivamos e das quais está ausente toda a discriminação de cor, raça ou religião;

- autonomia progressiva do governo das Províncias de acordo, segundo a Constituição, com o respectivo estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios;

- participação crescente das populações nas estruturas políticas e administrativas;

- fomento do território com ampla abertura à iniciativa, à técnica, ao capital de todos os países sob a única condição de se proporem valorizar a terra e a gente, e não explorá-la (...)”(185).

Para ele, fora de acordo com este programa que se operara a revisão da Constituição de 1971. Os combatentes e os residentes careciam de certezas, competindo à Assembleia Nacional manifestar-se quanto à certeza do rumo definido. Esta revisão que revogou quase clandestinamente o Título VII da Constituição, na expressão de Adriano Moreira, identificava o inimigo como interno; prometia a democratização para quando o perigo tivesse sido eliminado; uma oposição formal mas inoperante e uma resolução tecnocrática do problema colonial, assumido como empreendimento não rentável que aconselhava a busca de novas áreas; a Europa (186). Era este o princípio da “autonomia progressiva” consagrado na revisão constitucional de 1971. Neste contexto, a manobra militar deveria garantir o espaço e o tempo necessários para a consecução dos objectivos, ainda indefinidos, ao nível da acção política: a manutenção da forma unitária do Estado? ou de uma estrutura federal? a autonomia progressiva e participada? uma independência branca, uma independência de maioria africana? Uma confederação?

O sistema internacional mudara e não acolheu o modelo vigente; a solução tinha de ser outra (Política?.. E quando, então?!.) . Dominaram os factores exógenos, que não deixaram de agir até hoje.

A decisão do fim do império acabou por ser do aparelho militar, numa acção de que não foi de cúpulas. Emergiram outras Forças Armadas, forjadas na longa acção à revelia da percepção dos governos, com uma nova visão do mundo, com outro valores e com outra avaliação da mística do império.

 
 

 




 



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