MIGUEL GARCIA

Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença Garcia
ANÁLISE GLOBAL DE UMA GUERRA
(MOÇAMBIQUE 1964-1974)

Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor em História
Universidade Portucalense
Orientação dos: Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha e
Prof. Doutor Fernando Amaro Monteiro
Porto . Outubro de 2001

I Capítulo
Os grandes poderes mundiais e as suas ambições em África

2. Moçambique: linhas de fronteira e substratos sócio-religiosos anteriores e remanescentes.

As fronteiras de Moçambique permaneceram indefinidas durante séculos. Se em Angola se registou alguma penetração no hinterland, em Moçambique apenas o Zambeze serviu de via de penetração, ficando o resto do sertão praticamente indiferente à presença portuguesa. A ocupação inicial limitava-se à zona costeira e foi de iniciativa estatal, penetrando sertão adentro apenas alguns comerciantes, aventureiros e missionários. Lembramos as incursões de D. Gonçalo da Silveira em 1561, ou as do Governador Francisco Barreto em 1573, para explorar as minas do Monomotapa. Porém, progressivamente, os Portugueses da Ilha de Moçambique, com a nítida intenção de fortalecerem o comércio com o gentio, entraram no Continente e ocuparam as Cabaceiras e o Mossuril, até aproximadamente uma légua para o interior. Nos finais do século XVI, princípios de XVII, a política portuguesa preconizava já o alargamento das zonas de influência, não pelas conquistas militares, mas através de tratados com os potentados nativos (1).

Até 1752, Moçambique era administrado a partir de Lisboa e de Goa, altura em que, para tentar minorar os efeitos da decadência do governo local, é criada a Capitania-Geral de Moçambique, rios de Sena e Sofala, dependente directamente de Lisboa. Apesar de lhe competir a administração de toda a costa, desde Lourenço Marques a Cabo Delgado, os territórios a Sul de Inhambane foram, podemos dizer, de certa forma, abandonados de presença portuguesa.

Já então os Holandeses, e depois os Austríacos, se haviam instalado na baía de Lourenço Marques, desafiando a soberania portuguesa. Ambos foram expulsos, respectivamente, em 1730 e 1781. A partir destas datas, nunca mais vieram contestar a soberania portuguesa, consolidada com a construção de um presídio e respectiva fortaleza (1786). Assim, foi no Sul do actual território de Moçambique onde primeiro surgiu a necessidade de uma delimitação fronteiriça.

No século XIX, a soberania sobre os territórios de além-mar foi diversas vezes posta em causa, e um dos motivos prende-se com a escravatura e o tráfico de escravos. Sob o pretexto de reprimir este tráfico, e para fazer face às limitações impostas ao comércio regular pela Administração Portuguesa, a Inglaterra arrogou para si o domínio de diversos territórios portugueses. Para se resolverem estas situações, recorria-se ao uso da diplomacia e, por vezes, à ameaça ou mesmo ao uso da força. As questões da ilha de Bolama, dos territórios de Molembo, Cabinda, Ambriz e da baía de Lourenço Marques são disso exemplo. Esta última era disputada quer pelos boers quer pelos britânicos estabelecidos na cidade do Cabo.

Contrariando o estabelecido no N.º 1 do Artº. 2º da Convenção Adicional ao Tratado de 22 de Janeiro de 1815, assinada em Londres a 28 de Julho de 1817, relativa à proibição do comércio ilícito de escravos, onde estava explícito que a Coroa portuguesa possuía na Costa Oriental os territórios compreendidos entre Cabo Delgado e a baía de Lourenço Marques (2), a Grã-Bretanha vai, em 1822, atraída pelas dimensões da baía, enviar um oficial da Royal Navy em missão de reconhecimento, o capitão William Fitz Owen. Este, com liberdade suficiente de actuação, efectuou explorações no local, conseguindo firmar tratados com alguns régulos do Sul da baía, nomeadamente, Tembe e Maputo, submetendo-os assim, formalmente à Coroa inglesa. Numa tentativa de criar condições para que no futuro a Inglaterra se pudesse apoderar de Lourenço Marques, Fitz Owen esteve por três vezes na baía de Lourenço Marques, instalado nas Ilhas de Inhaca e Elefantes, em 1822, 1823 e 1825 (3).

Em 1833, Manicusse, o fundador do Estado de Gaza, destrói o presídio de Lourenço Marques e mata António Ribeiro, seu governador, sendo posta em causa a soberania portuguesa naquelas paragens. Nesta data, a metrópole deparava-se com a guerra civil, no rescaldo da independência do Brasil.

Os Boers, agricultores calvinistas descendentes de antigos senhores holandeses, foram rivais dos portugueses na penetração pelos sertões da África Austral. Desde meados do século XVIII, procuraram sempre uma passagem para o mar. Não aceitando o domínio inglês, partiriam em direcção ao Norte, formando as repúblicas independentes do Transval, Orange e Natal.

Os primeiros contactos luso-boer estabelecem-se em 1838, quando o Boer Louis Trichardt chega a Lourenço Marques, após descer o Zoutpansberg e atravessar o Drakkensberg. A partir de então, por diversas ocasiões posteriores, procuram restabelecer o contacto. Apesar dos receios demonstrados pelos portugueses, o governador de Lourenço Marques é autorizado em 1855 a encetar negociações formais com os Boers, que conduzem à assinatura de um primeiro convénio de comércio a 14 de Agosto do mesmo ano, reconhecendo-se já nas bases desse tratado de aliança e amizade a necessidade de definir a fronteira Moçambique / Transval.

Em 1843, depois de anexar o Natal, a Inglaterra tenta obter o controlo sobre os Boers. Em 1852, reconhece a independência ou autonomia do Transval (anexado depois em 1900), e, em 1854, é criado o Estado Livre do Orange, adoptando Londres a política oficial de não se envolver a Norte deste rio (4).

Em 1861, com o receio de que os Boers se estabelecessem na baía e daí expulsassem os Portugueses, o Capitão Bickford entra ali ao comando de um navio de guerra, declarando a anexação daqueles territórios à colónia do Natal. A bandeira inglesa é içada nas Ilhas de Inhaca e dos Elefantes, lembrando os tratados de Owen de 1823. Mas a ocupação é de pouca dura, pois, após reclamação do governador de Distrito, Tenente-Coronel Onofre Lourenço Duarte, e da sequente troca de notas com o Governo Inglês, estes retiram, voltando a situação à normalidade.

O Poder inglês procurou sempre cercar as repúblicas boers, mantendo o controlo sobre as possíveis saídas para o mar ou visando os territórios que permitissem o seu crescimento para o interior. Para quebrar este cerco Marthinus Pretorious, Presidente do Transval, pressiona Portugal em Abril de 1868, decretando unilateralmente a anexação de uma faixa com a largura de uma milha de cada lado do rio Maputo até à foz, a poucos quilómetros de Lourenço Marques (5).

Proucurou-se definir a fronteira Sul com os Transvalianos da República da África Meridional, através do Tratado de paz, amizade e limites, de 29 de Julho de 1869, ratificado em 10 de Julho de 1871, com os limites: “(...) desde um ponto em 26º e 30´ de latitude Sul em linha recta para o oeste até ás montanhas de Le Bombo; dali ao longo do cume das ditas montanhas até ao rio Comafte, onde aquele rio corre entre as montanhas de Le Bombo; dali para nordeste até ao monte chamado Pokiones-kop, que fica a norte do rio Oliphant, onde ele corre naquelas vizinhanças; dali para o nordeste até ao ponto mais próximo da serra de Chicundo, onde corre o rio Umbovo; dali em linha recta até à junção dos rios Pafuri e Limpopo (...)”(6). Este Tratado era válido por seis anos, pelo que se entendeu ser conveniente celebrar um outro, que viria a ser assinado a 2 de Dezembro de 1875, em Lisboa, e ratificado a 7 de Outubro de 1882. Moldado no de 1869, este último Tratado manteve os limites que aí foram fixados.

Em 1870 e no ano seguinte, a Inglaterra, argumentando com as chamadas cessões do capitão Owen, opõe-se ao limite Sul constante do Tratado entre Portugal e a República da África Meridional. O Governo Português insiste nos seus direitos tradicionais de soberania sobre a baía de Lourenço Marques e, invocando o Tratado de 1869 com o Transval, ocupa em 1870 as ilhas de Inhaca e de Bengalana. Nestas condições, acordam, em 1872, em submeter o caso à arbitragem internacional. Portugal invoca os tradicionais argumentos para justificar a posse dos territórios, nomeadamente a descoberta e exploração, no séc. XVI, a ocupação efectiva, durante três séculos, a doação do Imperador Monomotapa, no início do século XVII, a natureza da própria baía e o “(...) reconhecimento expresso dos régulos, ou chefes das tribos respectivas, de Tembe e Maputo (...)”(7) e de nações europeias, onde se incluía a Grã-Bretanha. Saliente-se que os povos quer de Maputo quer de Tembe pertencem a grupos etno-linguísticos com projecções no vizinho território do Natal, que na época se encontrava sob influência britânica.

O diferendo foi assim submetido em 1872 à arbitragem do presidente francês Adolfo Thiers, sendo a sentença pronunciada por Mac-Mahon, já presidente da França, a 24 de Julho de 1875. Aí fixou-se como coordenadas da fronteira meridional de Portugal as mesmas do Tratado de 1869, ou seja, 26º e 30´ de latitude Sul. A Inglaterra, por nota de 27 de Agosto de 1875, reconheceu os limites assim definidos.

Todavia, a linha deste paralelo (26º e 30´ latitude Sul) dividia o indivisível. Assim, fixou-se a latitude nos 26º e 52´ Sul, “(...) ou a linha da Ponta do Ouro até à junção dos rios Pongola e Usuto, seguindo este para o Norte até encontrar as cordilheiras dos Lebombos (...)”(8). Os Portugueses ganharam assim 22´ de latitude entre a Suazilândia e o Índico e libertaram-se da pressão britânica envolvente de Lourenço Marques, ficando ainda com a soberania sobre Tembe e, principalmente, sobre o Norte do Maputo. Esta definição figurará no Tratado de 11 de Julho 1891 com a Inglaterra.

De 1885 a 1888, dez anos após a delimitação definida nos Libombos, o Régulo Umbandine da Suazilândia protestou “(...) afirmando que o seu território se estendia até às vertentes orientais destes montes, numa extensão de cerca de dezasseis milhas além da cumeada (...)”(9), desde o tempo de seu pai, Unsuasie. Por outro lado, não tinha sido ouvido no processo de arbitragem e não havia tradição de os portugueses ocuparem aquela montanha. Em 1888, uma comissão mista entretanto nomeada assentou a definição da fronteira pela linha de cumeada dos Libombos.

Os sucessores de Umbadine, até 1974, mantiveram sempre reivindicações reportadas a zonas onde existiam núcleos de população suazi (10).

Menos de cinco anos passados sobre Berlim e o conflito anglo-português, verificou-se que a Conferência não conseguiu evitar os conflitos a que pretendeu pôr termo. As costas estavam quase todas ocupadas, pelo que de pouco servia estabelecer regras de ocupação (11). Era importante sim, mas delicado, legislar sobre os territórios do interior.

Ao contrário da fronteira Sul, as fronteiras ocidentais, de Pafúri para o Norte, não eram aceites pelas pretensões expansionistas de Livingstone com o apoio britânico. Aquele explorador, por diversas vezes, quer directamente quer por interpostos indígenas, desafiava a soberania portuguesa, como no caso dos contactos com as populações do reino dos Matabeles na Machona. Numa tentativa de pôr travão a estas intenções expansionistas, o Marquês de Sá da Bandeira ainda publica em 1861 um mapa da Zambézia e Sofala (12), sendo aí considerado o rio Sanhate o extremo dos territórios portugueses a Sul do Zambeze, seguindo a fronteira até ao Limpopo, através das montanhas da Machona que ficavam em grande parte dentro dos domínios portugueses.

Em 20 de Agosto de 1890, é assinado, à pressa, um primeiro tratado com Londres, para resolver o litígio que esteve na origem do Ultimatum. O Tratado não chegou a ser aprovado em Portugal e podemos dizer que foi mesmo abandonado pela Inglaterra, tendo havido necessidade de negociar outro acordo, que versou, essencialmente, sobre limites.

A ideia de negociar outro tratado foi aceite pelas partes, predispondo-se Portugal a negociar um modus vivendi (13), até à entrada deste em vigor. Em 14 de Novembro de 1890, foi assinado em Londres um modus vivendi ao qual Rhodes não ligou. Através da B. S. A. C., era seu objectivo apoderar-se das minas e territórios, mas também dos povos a Norte do Transval e a Leste da Bechuanalândia, “(...) repelindo os Portugueses para o Oceano Índico ou mesmo eliminando-os por completo, se tal fosse possível (...)”(14). Ainda para mais, as Cortes portuguesas não tinham ratificado o Tratado que o mantinha afastado do Índico.

Nos meses subsequentes ao Ultimatum, Portugal não teve intervenção nos territórios em disputa; contudo, a actividade de Cecil Rhodes não foi controlada. Sob as ordens de Rhodes, o Capitão Forbes da B. S. A. C. apoderou-se de Macequece a 15 de Novembro de 1890. Esta localidade foi recuperada pelos portugueses a 30 de Maio de 1891, perdendo Rhodes de forma definitiva a cidade da Beira.

A 28 de Maio de 1891, Portugal assina um novo Tratado com Inglaterra, ratificado em 11 de Julho de 1891, que vem regular definitivamente a delimitação das respectivas esferas de influência na África Austral. A Inglaterra reservou para si todo o hinterland produtivo, abandonando Portugal o planalto de Manica, em troca de uma área maior entre o Tete e Zumbo, a Norte do Zambeze. Na região do Niassa, ficou para Portugal a margem ocidental, que compreendia o Chire, e a margem oriental. Pelo Tratado de 1891 Portugal “(...) tinha motivos para estar satisfeito por o Reino de Gungunhana ter sido finalmente reconhecido com estando na esfera portuguesa (...)”(15). Contudo, o novo Tratado foi mais desfavorável a Portugal (16). Com a sua aceitação, as fronteiras ocidentais de Moçambique ficaram fixadas.

O traçado das fronteiras, resultante dos tratados entre ingleses e portugueses, teve origem no conhecimento razoável do terreno; “(...) apenas no nordeste da Zambésia a fronteira não foi marcada correctamente até 1930 (...)”(17).

Na delimitação da fronteira Norte intervieram a Inglaterra, a Alemanha, a França e Zanzibar.

A baía de Tungue era considerada território português desde a ocupação portuguesa em 1510. Pela convenção adicional de 1817 com a Inglaterra, a fronteira fora demarcada em Cabo Delgado, logo abrangendo Tungue. O tratado de comércio com o Imã de Mascate, em 1828, também estabelecia “(...) que os limites do território português terminavam na povoação de Tungue, que incluíam (...)”(18).

A decadência da presença portuguesa nos séculos XVII e XVIII, coincide, no leste africano, com o incremento de potentados árabes e negro-islâmicos, destes se destacando a influência do Imã de Mascate, cujos domínios, após a independência em 1730, se estendiam às costas de Ormuz e Kischen à entrada do Golfo Pérsico, às ilhas de Zanzibar, Juba, Melinde, Mombaça, Mogadoxo, Pemba, Pate e outros, que até aí reconheciam a soberania portuguesa.

No princípio do século XIX, a Norte, a soberania lusa era limitada, na região de Cabo Delgado, pela zona de Tungue (depois Palma), cujo Xehe (dignitário islâmico) era a autoridade portuguesa local em exercício, com uma remuneração da fazenda nacional, tal como o eram outros funcionários públicos mais a Sul.

Em 1826 o Capitão-General Chavier Botelho chega a Moçambique e, aproveitando o pedido de protecção e as saudações do Imã de Mascate, propõe àquele soberano um Tratado de nove artigos, onde, entre outras estipulações, se incluía a definição exacta da fronteira em Cabo Delgado, na zona de Tungue. Apesar do bom acolhimento, este documento nunca foi firmado pelo Imã (19).

Em Tungue, os diversos Xehes que se foram sucedendo até 1844 acataram sempre a autoridade portuguesa. Esta autoridade também reconhecia tacitamente uma alfândega aí mantida por Mascate (20). Porém, o Xehe Amade Sultane, na sequência de litígios com a Administração Portuguesa no Ibo e em ligação com o representante de Zanzibar, entregou a Mascate a zona até ao rio Maningani. Em 1854, o território foi ocupado por tropas zanzibaritas (21).

Foram diversas as diligências diplomáticas portuguesas durante mais de trinta anos para recuperar a baía, quer ao Imã de Mascate, quer, a partir de 1862, ao Sultão de Zanzibar, já autónomo. Estas foram infrutíferas, dado que Zanzibar nunca reconheceu quaisquer direitos sobre as terras a Norte da margem direita do Maningani, que o Sultão entendia como o limite setentrional de Moçambique.

As ambições fronteiriças zanzibaritas iam ao encontro das pretensões alemãs. Em 4 de Dezembro de 1886, a Alemanha e Inglaterra reconhecem a fronteira reivindicada, ou seja, a Sul de Cabo Delgado, onde se incluía o Maningani (22), situação difícil de conciliar com o Tratado luso-alemão de 30 de Dezembro do mesmo ano e que definia a fronteira setentrional com a foz do Rovuma (23). Contudo, em 1887 era ainda Zanzibar que possuía a soberania desta baía. Assim, o Governador-Geral Augusto de Castilho formula um ultimatum ao Sultão Said Bargash, e a 27 de Fevereiro o Tenente-Coronel Palma Velho ocupa Tungue.

A Inglaterra reclama de imediato e dá a entender que a questão poderia ser resolvida por arbitragem da Holanda, situação recusada pelo Governo Português. Com a morte do Sultão Said Bargash, o caso fica resolvido a favor de Portugal, conseguindo este na baía de Tungue o que em Janeiro de 1885 não tinha conseguido na foz do Zaire.

A posição britânica neste diferendo é explicitada no n.º 1 do Art.º 1º do Tratado de 28 de Maio de 1891, já referido a propósito das fronteiras a ocidente. Aí, reconhece a referida potência os territórios compreendidos no domínio de Portugal, limitados “(...) ao Norte por uma linha que, subindo o curso do rio Rovuma, desde a sua foz até ao ponto de confluência do rio M´singe, daí segue na direcção do Oeste o paralelo de latitude do ponto de confluência destes dois rios até à margem do Lago Niassa (...)”(24).

A Alemanha, por sua vez, assinara a 1 de Julho de 1890 um Tratado com a Inglaterra, onde ficara definido, com a adesão do Sultanato, a cedência ao Reich das possessões no Continente compreendidas pelas existentes concessões à German East African Company e suas dependências, assim como a ilha de Mafia (25).

A ocupação de posições junto à foz do Rovuma em Setembro de 1893, para obstar às posições germânicas, quanto à fixação de fronteiras, assinala o início de um rastilho de pólvora que acaba com a ocupação de Quionga em Julho de 1894. Contudo, só a 10 de Setembro desse ano é oficalizada a perda do “triângulo de Quionga” para a Alemanha, sendo a fronteira demarcada pelo paralelo de Cabo Delgado (26), 10º 40´ Sul, formando pelo seu traçado geográfico a figura geométrica triangular com 450 Km2.

O império africano alemão, constituído pela actual Namíbia, Togo, Camarões e Tanganica (27), teve sempre intenções sobre o território de Moçambique. Desde 1913 que os Governadores, esclarecidos e informados com regularidade, previam ameaças alemãs e o abandono a que seriam votados pelos seus aliados em caso de ataque, preparando-se, de acordo com as possibilidades locais, para não deixarem ocupar qualquer parcela do território.

Seguindo um rumo diferente dos seus aliados europeus, Portugal envia forças expedicionárias para o território. O decreto que mandou organizar as primeiras expedições militares para Moçambique e Angola data de 18 de Agosto de 1914. A primeira expedição para Moçambique, constituída por 1527 homens sob o comando do Tenente-Coronel Massano de Amorim, desembarcou em Porto Amélia a 1 de Novembro de 1914 e guarneceu a linha de fronteira com postos militares ao longo do Rovuma. Mas o ataque ao posto de Maziúa, na fronteira daquele rio, verificara-se já na noite de 24 para 25 de Agosto. Este incidente de fronteira provocou a morte dos soldados da guarnição da Companhia do Niassa, tendo as autoridades diplomáticas alemãs apresentado desculpas ao Governo Português pelo ataque a um posto de fronteira de um país neutral. Em Outubro do mesmo ano, surgem os primeiros confrontos no Sul de Angola. Abriam-se assim duas frentes de guerra em território africano.

Em Portugal, houve consenso nacional para a defesa e manutenção da soberania portuguesa no Império Colonial, o que permitiu a entrada na guerra em teatro africano (28), correspondendo esse sentimento ao forte imaginário colonial. Em Moçambique, o objectivo era duplo: recuperar Quionga e conseguir a passagem para a margem Norte do Rovuma.

A intervenção no Teatro africano não era decisiva quer do ponto de vista diplomático quer militar. Aquele era um Teatro secundário e periférico, que não obrigava a uma declaração de guerra nem sequer à beligerância (29). Visavam-se objectivos mais latos, pelo que o fundamental era marcar presença no teatro europeu; este sim, poderia trazer frutos ao nível internacional e interno. Apesar de tudo, não era despropositado que em Lisboa se encarasse a possibilidade de, no rescaldo da guerra, Ingleses e Alemães voltarem a negociar a partilha das colónias portuguesas.

Com a intervenção europeia, Portugal, além de cumprir os seus deveres de aliado da Inglaterra, libertava-se dos propósitos tutelares daquela por meio de uma decisão que o creditaria perante todo o mundo e assegurava ainda a presença na conferência de paz, onde poderia fazer-se ouvir em defesa da inviolabilidade dos seus domínios ultramarinos. Porém, apesar da transição do Regime, numa conjuntura internacional desfavorável, ter sido internacionalmente preparada pelo Partido Republicano, Portugal sofria ainda do constrangimento do reconhecimento oficial da nova República, um processo moroso e complexo que decorreu ao longo de onze meses, em três distintas fases (30). Assim, foi também a necessidade de legitimidade e de consolidar politicamente o Regime que acabaram por levar a República para a guerra na frente ocidental europeia, na Flandres.

A 10 de Outubro de 1914, o Governo Inglês pedia ao Governo Português o abandono da sua atitude de neutralidade para se colocar activamente ao lado da Inglaterra. Mas a Alemanha só declarou guerra a Portugal na Europa a partir de 9 de Março de 1916. O período intermédio é de uma longa indefinição diplomática entre a neutralidade e a beligerância (31). Isto no teatro europeu, onde os destinos da guerra eram jogados, pois, mesmo antes da declaração de guerra e da entrada em teatro europeu, as operações tinham já sido iniciadas e continuadas em solo africano.

As campanhas de 1914-1918 travadas em África diferem em muito da que se desenrolava ao mesmo tempo na Europa. Ali, a guerra era de movimento, pertencendo a vantagem a quem tomasse a iniciativa. O exército colonial alemão, constituído por askaris e alemães, organizados em companhias, nunca foi vencido nem reabastecido do exterior, entre 1914-1918. As tropas de von Lettow-Vorbeck, Comandante-Chefe da Schutztruppe, quando se renderam, desfilaram armadas e municiadas perante o um inimigo em “apresentar armas”!

A 10 de Outubro de 1916, após evacuação alemã, a segunda expedição portuguesa reocupava Quionga. Entre Setembro e Dezembro, tenta invadir o Tanganica.

No primeiro semestre de 1917, partiu para Moçambique uma quarta expedição portuguesa (32). Aquelas forças, então comandadas pelo Coronel Sousa Rosa, tiveram que enfrentar, a partir de 25 de Novembro, von Lettow-Vorbeck, que invadiu Moçambique e, posteriormente, veio a infligir uma série de desaires às tropas portuguesas, que sofreram em toda a campanha, em combate e por doença, cerca de 4.800 mortos, entre europeus e africanos (33). As expedições de tropas europeias foram dizimadas principalmente pela doença (34).

Lettow-Vorbeck acabou por ser expulso da África Oriental Alemã, que estava agora em mãos britânicas. Contudo, a campanha não acabara. Os King´s African Rifles Britânicos, em número muito superior, enfrentaram a Schutztruppe na Ostafrika alemã e, no seu encalce, introduziram-se em Moçambique, onde, apoiadas por algumas tropas portuguesas, os perseguiram e combateram até à retirada destes, a 28 de Setembro de 1918 (35).

No período 1914-1918, Portugal contou em Moçambique, entre as forças desembarcadas e o recrutamento local, com um efectivo, grosso modo, de 20.000 homens europeus, e aproximadamente 12.000 africanos, sem contabilizar as dezenas de milhar de carregadores (36).

Em 1919, através de deliberação do Tratado de Versalhes, Portugal obtém o reconhecimento, pelos aliados, da incorporação de um território de que se considerava o proprietário legítimo, o Triângulo de Quionga.

Sobre as fronteiras assim definidas, a soberania portuguesa exercia-se de forma ténue e não abrangia a totalidade do território. A presença portuguesa face à ocupação efectiva, princípio base de Berlim, não era nada confortável, pois apenas quase assentava na linha costeira; de Norte a Sul da Província não faltavam territórios onde a soberania efectiva dos portugueses não era reconhecida.

Já em 1883 Andrade Corvo salientava: “(...) falamos muitas vezes nas conquistas dos nossos antepassados. Mas é preciso dizer a verdade; a conquista está por fazer (...)” (37).

António Enes dez anos mais tarde (1893) também é esclarecedor sobre o estado do território: “(...) As minhas primeiras impressões foram desanimadoras. Tendo passado dias sobre dias, apesar dos impulsos vigorosos da hélice, a olhar para a costa e a dizer para comigo: isto é nosso, ainda é nosso; avistando de madrugada o mesmo Distrito (...) considerando que aquele interminável traço sombrio, que separava os tons azuis do céu e os do mar, apenas era orla de um território tão estranhado pelo continente dentro (...) não pude ter-me que não perguntasse a mim próprio se tanta terra tão distante não era demasiada esfera de expansão para nós, que ainda não pudemos povoar o Alentejo e esgotamos para o Brasil as energias colonizadoras (...). Depois pareceu-me que Moçambique tinha muito maior capacidade para absorver capitais do que faculdade para os reproduzir (...)”(38).

Mouzinho de Albuquerque acrescenta no seu relatório, “Moçambique 1896- 1898” que Moçambique “(...) era uma Província a conquistar em grande parte e a organizar; infelizmente em Lisboa nunca o governo se convenceu d´esta verdade (...)”(39). Para ele era indispensável “(...) que em toda a extensão do território que os tratados nos deixaram não fiquem vastas regiões inexploradas e desconhecidas, povos selvagens em completa independência; d´ahi só nos podem advir dificuldades ou, como já tem sucedido, irremediáveis desastres, humilhações vergonhosas (...)”(40).

A ocupação do território fez-se de combinação com as autoridades gentílicas e, quando assim, pacificamente, se não pôde fazer, impôs-se em campanhas militares, como a levada a cabo contra o Gungunhana (1895-1897), a dos Namarrais (1896-1897,1906 e 1913) e as do Barué (1902 e 1917-1918).

A Sul, as lutas foram com os Vátuas, que faziam a guerra africana com formidáveis mangas, saindo a campo e procurando envolver as colunas portuguesas. António Enes caracterizava assim a situação: "(...) Na população da Província há de tudo. Há especialmente um povo, o vátua, que a civilização há-de tratar como inimigo irreconciliável, porque estiriliza o chão que pisa. É o fidalgo da selvegeria, para quem o trabalho é desdouro, glória o assassínio e a rapina direito (...)" (41).

E Mouzinho justificava: “(...) comecei a ocupação do território pelo Distrito de Moçambique. Afigurava-se-me desairoso, impolítico e perigoso para a nossa soberania permitir que, em frente da capital e sob as vistas do governador geral, houvesse tribos e chefes aos quais não se podia dar uma única ordem, exigir o mínimo serviço e em cujo território não se podia sequer garantir segurança ao viajante isolado ou às caravanas portadoras de artigos de exportação (...)”(42).

O último Rei de Gaza, Gungunhana, continuou a política predatória e agressiva dos seus antecessores. Tentou, em repetidas incursões, vencer os Manicas, que se encontravam refugiados nas montanhas. Mandou cobrar tributos, entre outros, a Chonas e Carangas. Todavia, “(...) a sanguinária hostilidade de Gungunhana e a escravização sistemática de grande parte dos Chopes teve, para os Portugueses, a vantagem de conseguirem, durante a campanha de ocupação, aliados tão numerosos como decididos (...)”(43).

Mouzinho de Albuquerque prende Gungunhana a 28 de Dezembro de 1895 em Chaimite. Este acabaria por morrer em 1906, nos Açores, para onde fora exilado.

A carga simbólica adquirida pela campanha de Gaza, como prova decisiva da afirmação da posição portuguesa em África, naquela época, ultrapassou em muito o efeito local (44). Um último sobressalto, a revolta militar de Maguiguana, assolou ainda a região do Sul de Moçambique em 1897, após o que a “pacificação” seria definitiva.

Na zona central, na Zambézia, com a decadência dos Prazos da Coroa, por volta de 1850, teve início um período de rebelião e sublevação que se prolongou até Outubro de 1918, altura em que foi dada por finda a revolta do Barué (45), revelando-se assim a fraqueza da ocupação efectiva e mantendo-se a região num permanente estado de crise/tensão. Começaram também as lutas pela ocupação, domínio efectivo e unificação dos sertões da terra firme e subordinação das autoridades islâmicas, dependentes do Sultão de Zanzibar. Contudo, ainda em 1963 se fazia sentir “(...) a manipulação do poder político zanzibarita, das faixas sócio-religiosas costeiras do Rovuma até à Ilha de Moçambique e da foz daquele Rio até ao Ocidente do Niassa, com alguns afloramentos no interior (...)”(46). Até esta data, os dignitários islâmicos e/ou autoridades tradicionais (muçulmanas) de maior relevo, na faixa referida, só se consideravam em funções legítimas ou abalizados em decisões de alcance comunitário lato a partir do momento em que de Zanzibar lhes chegasse o instrumento de investidura ou ratificação identificado com a autoridade do Sultão. Eliminado em 1964 o pólo de Zanzibar pela revolução personificada do “Marechal” Okello, o tecido das comunidades muçulmanas de Moçambique reorganizou-se, e as Comores entram, em seu lugar, na articulação da Ilha de Moçambique (e por via dela, os Distritos do Norte) à Arábia Saudita (47).

A Sul, já, as populações se tinham submetido desde 1897. No Distrito de Moçambique, a última campanha dos Namarrais terminou em Fevereiro de 1913, com a colaboração de africanos; no Norte, os Macondes foram praticamente “pacificados/submetidos”, como se queira ver, em 1918.

A ocupação efectiva exigida em Berlim foi assim levada a cabo por comandos e sub-comandos de administração militar, posteriores circunscrições e postos de administração civil (organização administrativa de 1907) ou então por Companhias Majestáticas, como a de Moçambique e do Niassa.

Estas surgem devido à falta de meios financeiros, aliada a uma necessidade imperiosa de desenvolvimento dos territórios africanos. Portugal seguia o exemplo de outras potências coloniais da época, cativando capitais através de companhias de colonização com direitos majestáticos de administração e exploração. Numa conjuntura difícil, além de fornecerem apoio às posições portuguesas a nível internacional, deviam em princípio manter a ordem pública nos territórios que lhes tinham sido atribuídos, libertando parcialmente o Estado de um encargo que com dificuldade suportaria.

A Companhia de Moçambique, com poderes majestáticos por cinquenta anos, foi fundada por Paiva de Andrada em 1888 e cobria a área correspondente às actuais Províncias de Sofala e Manica.

O Estado Português teve um aparecimento tardio nos Distritos do extremo Norte do território, pois, entre 1894 e 1929, a administração do território nessas paragens estava por conta da Companhia do Niassa, criada em Setembro de 1891 com capitais maioritariamente britânicos e dotada de privilégios por 35 anos. Esta cobria as áreas do Niassa e Cabo Delgado.

A Companhia da Zambézia, fundada em Maio de 1892, constituída por 126 dos 134 prazos existentes no Distrito de Tete, não possuía privilégios majestáticos, mas era antes de tudo “(...) uma máquina de conquista das terras insubmissas dos Distritos de Tete (em especial a norte do Zambeze) e depois de Quelimane (...)”(48), com a finalidade de explorar o mussoco e o trabalhador local. Assim, não será de estranhar que a FRELIMO interprete estas como companhias que “(...) fizeram a exploração económica e política do povo moçambicano durante os anos das suas concessões e mesmo depois (...)”(49).

Esta retrospectiva histórica ilustra que, no actual território de Moçambique, as relações diárias entre portugueses e indígenas nem sempre foram as melhores, sendo muitas vezes pautadas por lutas sangrentas, dada existir resistência da parte de alguns povos rebeldes e sublevados à afirmação da soberania portuguesa, assim o comprovando o elevado número de acções armadas desencadeadas para imposição ou restabelecimento da mesma (50).

Por forma a ultrapassar os problemas levantados por uma população das mais diversas origens e etnias, era fundamental para o Poder português conhecer os povos que habitavam o vasto território sobre o qual tinham, mas não exerciam de facto, direitos de soberania.

A população autóctone moçambicana situa-se na área geográfica dos povos bantos, apesar de nem todos os seus indígenas lhe pertencerem (51), considerando-se a sua divisão em 10 ou 11 grupos étnicos principais (52), os quais se subdividem em agrupamentos menores, nem sempre com razões suficientes de diferenciação.

Neste estudo, adoptamos por base a divisão utilizada pelas autoridades portuguesas no planeamento e condução das operações/actuações, nomeadamente pela 2ª repartição do Quartel-General da Região Militar de Moçambique e pelos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (53), pois a sua documentação é largamente utilizada neste estudo. Aquela divisão tem em consideração o princípio de que o estudo étnico de qualquer país não conduz a uma linha de acção estratégica clara, pelo que se torna necessário associar ao factor étnico o elemento linguístico. Isto, porque quase todas as etnias em África têm associada uma língua nativa, sendo que os grupos étnicos falam normalmente a língua do grupo, razão pela qual se designam por grupos etno-linguísticos. Esta opção é enquadrável numa sociologia de “etnicidade estratégica ou politizada” definida pelo Prof. Doutor Carlos Serra (54).

Assim, consideramos:

  • Grupo Suaíli (tribo única), numa extensa faixa no litoral Norte, do rio Rovuma até ao concelho de Moma;
  • Marave (15 tribos), ao Norte do Zambeze na Província de Tete, faixa na margem Leste do Lago Niassa e também na Província da Zambézia na região de Milange-Tacuane;
  • Macua-Lomué (21 tribos), aproximadamente entre o rio Lugenda e a linha Morrubala-Quelimane; “(...) os macuas (...) estendem-se desde Cabo Delgado até Angoche, (...) desde o mar até ás nascentes do Lugenda, ao longo do Lúrio; matambu, ao sul do Rovuma; mavia no extremo NE do território e medo no vale do Messalu (...)”(55), constituem o grupo mais numeroso;
  • Chona (11 tribos), entre o Rio Save e Zambeze, nas Províncias de Manica e Sofala;
  • Chope (3 tribos), na área de Inhambane;
  • Tonga (9 tribos), a maioria da população a Sul do Save, com pequenas ilhas em Manica, Sofala e Tete;
  • Angoni (6 tribos), resultantes das diversas migrações e expedições Zulu, numerosos no Sul (Município da Namacha e Magude), dispersos em pequenos grupos nas Províncias de Tete, Niassa e Cabo Delgado;
  • Maconde (4 tribos), na Província de Cabo Delgado, margens do Rovuma e no planalto Maconde (Mueda e Macoima). Os Macondes são agricultores alérgicos “(...) a toda e qualquer forma de autoridade e de influência estrangeira (...)”(56);
  • Ajaua (tribo única), grande parte da Província do Niassa, ou como diria Mendes Corrêa, “(...) vivem entre o Nhassa, o Lugenda e o Rovuma, mas teen-se pouco a pouco desviado para sudoeste para as montanhas do Chire (...)”(57);
  • Povos do Baixo Zambeze (10 tribos), estendendo-se ao longo das margens do Zambeze, constituindo apenas um grupo de tribos heterogéneo.

No que se refere à conquista da adesão das populações, ao Poder português interessou esta divisão, na medida em que fosse passível de “(...) movimentação, com vista à manutenção do equilíbrio das forças que actuam no seio da população global (...)”(58), interessando sobretudo os grupos que se encontravam diferenciados, tendo por finalidade conhecer os seus antagonismos, com possibilidades de serem avivados, revividos ou fomentados. Naquela conjuntura, e noutras posteriores, os antagonismos eram passíveis de facilitar a manutenção da liderança pelo Poder instituído, sendo o inverso também verdade. Este fenómeno foi compreendido pelos movimentos independentistas, que procuraram promover a coesão, facilitadora da sua actuação (59).

Numa perspectiva maximalista da estratégia, será irrealismo grave menosprezar as cadeias de comunicação que transcendem os espaços de identificação considerados clássicos. Estas cadeias funcionam como “(...) elementos integradores e, logo, como condicionantes ou indutoras de comportamento (...)”(60). Assim, será importante a análise dos grupos etno-linguísticos com projecções transfronteiriças.

No que diz respeito à Tanzânia, têm projecção relevante os Ajauas (islamizados, com significativa representação na área de Nangade e entre o Negomano e a confluência do Messinge), Macondes (cristãos e/ou de religião tradicional, áreas de Nangade), Macua (islamizados, área de Nangade e entre o Negomano e a confluência do Messinge) e Suaílis (islamizados, na área de Quionga), e um pequeno núcleo de Nianjas (grupo Marave, cristãos e/ou de religião tradicional, entre o Lago e a confluência do Messinge) (61). No Distrito do Niassa, circunscrição do Lago, existiam dois núcleos de Angonis que viam a sua importância acentuada em função dos cerca de 150.000 elementos que em 1965 viviam na Tanzânia (62).

É notável a coesão entre as populações do Distrito da Zambézia com o Malawi, verificando-se mesmo a duplicação das autoridades tradicionais, como resposta a subordinações administrativas distintas, predominando, contudo, as fixadas naquele território, exceptuando os Lomués, que, apesar da sua grande representação além-fronteira, identificam-se com Moçambique. Para o Malawi, estendem-se ainda de forma significativa os Ajauas (63), os Angonis e os Maraves, se exceptuarmos alguns núcleos de outras etnias como Nianjas (ao longo dos lagos Niassa e Chirua)(64); também os Atumbas (grupo Marave, na parte oriental da Circunscrição da Angónia), os Senas, os Atongas (ambos do grupo de povos do Baixo Zambeze) e os Nianjas (área da Circunscrição de Chemba) estão ligados por laços familiares entre si e com populações do Malawi (65).

Em relação à Zâmbia, o grupo Marave é mais representativo nesta do que em Moçambique, residindo nesse país o comandamento étnico (dinastia Hundi). Os Sengas (grupo dos Maraves, concentrados na região de Zumbo entre o Zambeze e a fonteira com a Zâmbia e o NE da Circunscrição de Marávia) estendem-se para a Zâmbia, e os Cheuas e Azimbas (grupo dos Maraves), ocupam a restante área do Distrito de Tete, entre o Zambeze e a fronteira, até ao Moatize (exceptuando a Angónia) e têm continuidade para o Malawi e para a Zâmbia (66).

Os Chonas, que se estendem em Moçambique entre o Zambeze e o Save, são a maioria da população no Zimbabwé e a este país continuam ligados com fortes laços políticos e étnicos. Os Tauaras (grupo dos Povos do Baixo Zambeze localizado entre o Zambeze e a Zambézia) identificam-se com os de território zimbabweano, considerando-se um único povo (67). Os Tsua (os quais se inserem com Rongas e Changanes no grupo Tonga), entre o Pafúri e o Save, também foram separados pelo artificialismo das fronteiras (68). Os Vandau (grupo dos Chona), que se estendem para a Zambézia (entre o Save e Búzi) identificam-se uns com os outros, não reconhecendo significado na linha de fronteira definida, encontrando-se mesmo quer política quer economicamente, integrados na antiga Rodésia do Sul (actual Zimbabwé), sendo o Clã principal das subdivisões em Matombodji e Vadanda dos Vandau o Nkomo, ao qual pertencia o líder independentista com o mesmo nome. Entre o Dombe e Changara, são os Manicas (tribo Chona) que ocupam a linha de fronteira, estendendo-se para o actual Zimbabwé (69).

Finalmente, a Sul, as fronteiras traçadas pelo acordo luso-boer separaram populações dos grupos etno-linguísticos Tongas e Angonis, nomeadamente, alguns núcleos de Zulus e Swazis (área de Magude), Vandaus (área de Guijá) e Tsuas (área de Pafúri) (70), Rongas (grupo Tonga) do paralelo de Moamba ao de Sabié e dali até ao Pafúri, Changanes (grupo Tonga) (71). Estas ligações transfronteiras asseguraram a passagem de imigrantes clandestinos não só para as minas de Ouro do Transval (72), como, entre 1964-1974, para centros de recrutamento e instrução subversiva no exterior (73).

Segundo o Supintrep N.º 22, “Populações de Moçambique”, 47% da população (estimada no ano de 1967 em 7.500.000 habitantes) tinha prolongamento para além do artificialismo das fronteiras definidas pelos diversos tratados de delimitação, e dessa apenas 20% aí tinha comandamento, nomeadamente nos Nianjas, Niassas, Chewas, Mureas, Angonis, Suazis, Zulus, Sengas, Barués, Tauaras, Matombodjis, Vandandas, Manicas e Mateves. Esta situação permitiu que durante a guerra civil vastas massas populacionais se refugiassem nos países fronteiros sem dificuldade de circulação. O comandamento da restante população é interno, também segundo aquele documento militar (74).

 
 

 




 



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