FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

CAPÍTULO IV - O INDEPENDENTISMO E O PODER PORTUGUÊS
EM CONFRONTO

2.2. A acção dos movimentos independentistas

Segundo o 1º Volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), os principais objectivos psicológicos da propaganda feita pelos movimentos independentistas eram os países estrangeiros, a Metrópole e o Ultramar.

Quanto aos países estrangeiros, visava-se:

- Desacreditar a política ultramarina portuguesa;

- Fazer crer que a luta desencadeada contra o regime, em África e na Metrópole, tinha grande sucesso;

- Atribuir às Forças Armadas Portuguesas a prática de atrocidades e de actos indiscriminados de violência contra as populações (nomeadamente as africanas);

- Fazer crer no descontentamento das populações em todo o território nacional (1).

Na Metrópole, procurava criar um clima revolucionário (desencadeando acções de descrédito do Governo e da sua política, tornando impopular a luta no Ultramar), abalar as forças morais das instituições militares (lançando boatos difamadores, incitando à indisciplina e à deserção, divulgando números exagerados de baixas em combate, explorando objecções de consciência e ideias pacifistas).

Quanto ao Ultramar, pretendia conquistar as populações africanas (apregoando que a independência proporcionaria uma vida melhor, fomentando o ódio racial, exercendo terrorismo selectivo como forma de intimidação, atribuindo ao Exército a prática de violências), procurava a adesão da população europeia (tentando antagonizá-la com as Forças Armadas, criando estado de angústia e de descrença, mas em simultâneo oferecendo lugar seguro na futura independência), desejava desmoralizar as Forças Armadas Portuguesas, fazendo crer na injustiça e insucesso da guerra e incentivando os militares à deserção (2).

No caso específico da Guiné, o PAIGC utilizava também a Acção Psicológica e com bastante êxito. Otelo Saraiva de Carvalho é elucidativo sobre este aspecto afirmando que: “(...) a guerra psicológica era desencadeada, desde a infância, sobre as crianças em idade escolar. Logo nos livros de leitura da primeira e segunda classes, excelentemente impressos, em cores várias, em Upsala, na Suécia, surgem palavras e desenhos sobre armamento e equipamento e sobre o Partido, a sua força, as suas vitórias, os seus heróis. São frequentes os desenhos de acções de combate (sempre vitoriosas para os guerrilheiros), de palavras que importa referir e difundir (Guiné, Guilege, Guidage, guerra, sangue) e de frases motivadoras a propósito (o PAIGC é o guia do nosso povo, a FRELIMO é a frente de Moçambique). Ao longo dos livros, por várias vezes, repetem-se a bandeira e o emblema do PAIGC com as frases a copiar em «trabalho de casa»: «PAIGC, nosso Partido, Partido do nosso povo na Guiné e Cabo Verde. (...)”(3).

A Acção Psicológica do Partido utilizava com alguma frequência a técnica de panfleto. O exemplo, em anexo XII, é demonstrativo do tipo de linguagem dirigida ao «Soldado Português», uma linguagem que evidencia a opressão colonial e as barbaridades cometidas na luta armada, convidando à deserção, mas, na sequência lógica do pensamento de Amílcar Cabral (cf. cap. II), salientava-se sempre, que o combate apontava para o regime e não para o povo português.

O PAIGC conduzia ainda a sua Acção Psicológica através da Rádio Libertação (emissora do Partido) e, a nível internacional, dispunha do apoio da Rádio Conacry, Rádio Pequim, Rádio Praga, Rádio Gana e Rádio Cairo (4). Na difusão de notícias, sempre tendenciosas, era utilizada, exaustivamente, a técnica de distorção ou desfiguração (5).

Obviamente que a preocupação central era sempre a conquista e adesão das populações, meio e objectivo deste tipo de guerra. Assim, os primeiros grupos organizados do PAIGC, vindos do exterior, dirigiram-se, de imediato, às tabancas, para aí se reunirem com os “Homens Grandes” e, no “interesse da libertação do país”(6), solicitavam o apoio da população para a sua causa.

A opinião pública, interna e internacional, constituía outra das preocupações do Partido, pelo que desencadeou iniciativas conjuntas para a sua mobilização. Luís Cabral, na sua “Crónica da Libertação”, refere (7):

- “(...) a direcção do Partido decidiu reforçar a acção de propaganda, em Cabo Verde e nos meios dos emigrantes, no exterior, com o envio de missões junto destes e o envio de meios e directivas aos nacionalistas que se encontravam no interior. O desencadeamento da luta armada na Guiné e o prestígio que ele traria ao Partido, tanto no plano interno como internacional, constituía um elemento inestimável como catalização da acção dos combatentes em Cabo Verde, no momento em que se daria início à nova fase da luta no arquipélago (...)”;

- o Secretariado Geral, sediado na República da Guiné, desenvolvia trabalhos “(...) dos quais se destacam a publicação mensal do órgão do Partido, «Libertação», e elaboração regular de programas para a Emissora da República da Guiné e, mais tarde, para a nossa própria emissora, a edição de documentos de informação para o exterior (...)”;

- a criação das empresas de comércio geral, os designados Armazéns do Povo, a abertura das primeiras escolas, mesmo sem possuírem livros impressos e da Escola-Piloto para onde eram enviados os melhores alunos, a chegada de técnicos e pessoal médico cubano, que possibilitaram um apoio superior nas “regiões libertadas”.

Para influenciar, psicologicamente, a opinião pública, interna e internacional, quatro outros factos. O primeiro foi a atitude de demarcação da Igreja Católica, face a Portugal, pois o seu máximo representante, na altura o Papa Paulo VI, recebeu em 1 de Julho de 1970 os dirigentes dos movimentos independentistas Amílcar Cabral (do PAIGC), Agostinho Neto (do MPLA) e Marcelino dos Santos (da FRELIMO). O segundo foi o relatório de missão às “áreas libertadas de Madina do Boé”, de 2 a 8 de Abril de 1972, elaborado pela Comissão Especial para a Descolonização das Nações Unidas, do qual resultou, durante a 27ª sessão da Assembleia Geral, o reconhecimento do PAIGC como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau, tendo a 28ª sessão, a 16 de Outubro de 1972, resultado na condenação de Portugal como ocupante ilegítimo do território (8). O terceiro facto, será o assassinato de Amílcar Cabral a 20 de Janeiro de 1973 em Conacry. Como quarto, consideramos o tipo de recrutamento efectuado para os quadros de complemento das Forças Armadas Portuguesas, que partia do princípio que a matrícula na Universidade era o referencial para o Oficialato miliciano e abriu as fileiras à acção subversiva desenvolvida nos meios académicos.

O primeiro facto foi explicado ao povo português, mas apenas no fim de semana seguinte, através de uma comunicação feita pelo chefe do Governo, transmitida pela rádio e pela televisão, na tentativa de reduzir os efeitos da campanha dos movimentos independentistas (9). O segundo, como veremos, foi veementemente contestado pelo Governo de Marcello Caetano. O terceiro, gera alguma controvérsia quanto aos verdadeiros autores, sabendo-se apenas que os disparos foram efectuados por um partidário seu, Inocêncio Katy (10). O quarto (com mais repercussões a nível interno) objectivava, na retaguarda, uma acção desenvolvida nos meios estudantis, que punha, à partida, sérias reservas aos resultados do recrutamento efectuado.

O domínio aéreo em todo o espaço de confronto começou a ser uma ilusão, a partir do momento em que os guerrilheiros passaram a dispor dos mísseis terra-ar Strella fornecidos pela URSS (Março de 1973), e circulavam notícias de haver já alguns quadros do PAIGC a ser treinados para tripularem caças MIG (11). Esta situação veio afectar a moral dos militares da Guiné, pois passou-se a admitir o colapso militar (12), com consequências imprevisíveis. O Governo Central, para fazer face ao problema, encetou diligências para a aquisição de mísseis Crotale de fabrico francês, a entregar a partir de Maio de 1974, e de um lote de 500 Red Eyes (Americanos), negociados por uma firma europeia (13).

Uma activa oposição à guerra, em África, surgiu de forma disciplinada e de um efectivo movimento urbano clandestino, a Acção Revolucionária Armada (ARA, afecta ao Partido Comunista Português), que advogava uma reforma política e social para Portugal e a independência das Províncias Ultramarinas; na primavera de 1971 lança uma campanha de sabotagens (14). Como resultado destas actividades, o discurso político oficial passa a frisar que tudo isso fazia parte de um plano de desagregação da frente interna.

Marcello Caetano, já em Dezembro do ano anterior (1970), quando da apresentação da proposta de Lei de Revisão Constitucional, referira : “(...) o estado de sítio corresponde à instauração da lei marcial, com entrega dos poderes à autoridade militar. Temos procurado evitar, nas próprias Províncias Ultramarinas, essa solução drástica e mantivemos sempre a supremacia do poder civil (...)”. E acrescenta: “(...) o Governo tem de estar, nestes casos de subversão grave, apetrechado com os poderes necessários para lhes fazer face (...)”(15), passando, assim, o Governo a dispor, pelos n os 5 e 6 do Artº. 109º, da Lei 3/71, de 16 de Agosto de 1971, da capacidade de declarar o Estado de sítio ou, quando este não se justificasse, “(...) adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais (...)”(16).

Em finais de 1972, surge a manifestação que ficou conhecida por “Jornada do Rato”, contrária ao prosseguimento da guerra do Ultramar, que levada a efeito por um grupo de “Católicos Progressistas”, “(...) constrangeria o Poder à violência que o comprometesse ou à transigência que o rebaixasse; na verdade, na situação de «réu em tribunal popular» já quase ele se encontrava (...)”(17). Destacamos o facto de esta jornada ter “(...) desencadeado um processo de discussão pública e alargada sobre a guerra (...)”(18) no Ultramar.

 

 

(1) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 383.

(2) Idem, págs. 383 e 384.

(3) Otelo Saraiva de Carvalho, “Alvorada em Abril”, pág. 92 a 94, 2ª Ed. Livraria Bertrand, Lisboa, 1977.

(4) As horas de emissão radiofónica eram as seguintes:

Rádio Gana: 10 horas e meia semanais, em português, destinadas às “colónias portuguesas”;

Rádio Cairo: 2 horas e um quarto semanais, destinadas “às colónias portuguesas”;

Rádio Pequim: 7 horas semanais, destinadas às “colónias portuguesas”;

Rádio Praga: 7 horas semanais, destinadas às “colónias portuguesas”.

Em “Jornal do Exército” de Novembro de 1970, pág. 8.

Rádio Conacry: 2ª, 4ª, 6ª e Domingos; das 22.45 às 23. 15h GMT;

Rádio Libertação: Todos os dias de manhã, das 7.30 às 8.30h GMT.

Em, Otelo Saraiva Carvalho, ob. cit., pág. 97.

(5) Esta técnica consiste em alterar as notícias, de modo a apresentá-las como favoráveis.

(6) Luís Cabral, ob. cit., pág. 145.

(7) Idem, págs. 150, 221, 242, 244, 252, 253 e 328.

(8) Report of the Mission of the United Nations Special Committee on Decolonnization after visiting the liberated Areas of Guinea-Bissau (A/AC. 109/L. 804; 3 July 1972).

(9) O Doutor Marcello Caetano referiu que: o “(...) Secretário de Estado do Vaticano declarou que a audiência (...) não teve qualquer significado político. E que as palavras dirigidas pelo Santo Padre aos cabecilhas do terrorismo, lá admitidos não nessa qualidade mas na de «católicos ou cristãos que como tais se haviam apresentado no pedido de audiência», se limitaram a exortá-los a que, mesmo ao procurarem aquilo «que considerassem ser seu direito», usassem meios pacíficos «em conformidade com a lei de Deus» (...)”. E acrescentou: “ (...) deste modo fica reduzido às suas proporções um episódio que durante dias agitou o Mundo e causou funda perplexidade e dor à Nação Portuguesa (...)”. E referiu ainda: “(...) louvado Deus que tudo se reduziu a exageros de interpretação publicitária. O Papa não abençoa nem podia abençoar a terroristas como tais. Não podia acolher e louvar aqueles que há tantos anos espalham a dor, o luto e as ruínas em territórios portugueses. Não podia sancionar a rebeldia à mão armada contra o Governo legitimamente constituído, que mantém com a Santa Sé relações amistosas (...)”. Em “Um Ardil Desmascarado”, págs. 6 e seguintes, Secretaria de Estado da Informação e Turismo, 1970.

(10) Situação semelhante aconteceu ao líder moçambicano Eduardo Mondlane. Sobre a morte de Amílcar Cabral podemos consultar a obra de José Pedro Castanheira, onde a situação é pormenorizadamente estudada e descrita, mas não conclusiva. A morte de Cabral aproveitava quer a alguns elementos do PAIGC, quer a Sékou Touré, quer ainda a alguns portugueses mais radicais. Em José Pedro Catanheira, “Quem Matou Amílcar Cabral”, Ed. Relógio De Água, 1995.

(11) António de Spínola, “País sem Rumo”, págs. 53 e seguintes.

(12) João Hall Themido, “Dez Anos em Washington 1971-1981: As Verdades e os Mitos nas Relações Luso-Americanas”, pág. 10, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995.

(13) Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 318.

(14) Bombas de fraca potência foram colocadas em navios das carreiras de África, na sede da DGS, na base da NATO em Fonte da Telha. 15 helicópteros, 3 aviões ligeiros, 15 Berliet, e as instalações da Rádio Marconi de Palmela e Sesimbra são danificados, são ainda roubadas 200 cartas topográficas dos Serviços Cartográficos de Exército. Em Otelo Saraiva de Carvalho, ob. cit., pág. 102.

(15) Assembleia Nacional, “Diário das Sessões” nº. 50 - Ano de 1970, 3 de Dezembro.

(16) No 6 do Artº. 109º, da Lei 3/71, de 16 de Agosto de 1971.

(17) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 293.

(18) Boletim Anti-Colonial, pág. 83, Ed. Afrontamento, Porto, 1975.

 
 

 




 



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