FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

Capítulo III -  O artificialismo das Fronteiras da Guiné Portuguesa e os espaços sócio-religiosos sobreponíveis: sociedades de religião tradicional e comunidades muçulmanas; a sua atitude perante a subversão

4. - O relacionamento das comunidades muçulmanas da Guiné com o Poder Português e com a subversão. Ligações das comunidades ao exterior, na generalidade, e das confrarias locais, na especificidade.

Há autores, como Vincent Monteil (1), que consideram existir um Islão negro; outros como Hatim Amiji (2) e Paul Balta (3), defendem a unicidade do Islamismo. No respeitante à Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota refere que “(...) erraria, porém, quem supusesse que os negros islamizados da Guiné o são de facto. O seu Islamismo é superficial e muitas vezes aparente; o velho fundo mantém-se sob muitos aspectos, de que é testemunho bem evidente a profusão de amuletos (...)”(4). Este panorama torna-se mais típico “(...) na razão directa do relevo que a inserção formal numa determinada escola possa conceder aos substratos tradicionais ou à “utilidade geral” entendida por aqueles (...)” (5).

Ponderadas as várias opiniões, consideramos que o Islão, por vezes dito negro, será um “revestimento” que, mesmo na grande maioria dos dignitários, não resiste, no plano da argumentação, a um confronto com alguma profundidade, persistindo, sim, nestes uma atitude subjectiva de quem não quer abandonar a sua base pragmática de equilíbrio (6). Assim, podemos dizer que, na Guiné, há grupos étnicos que se encontram islamizados, uma vez que as estruturas e crenças tradicionais sobreviveram, embora com aspectos alotrópicos e em consequência das circunstâncias locais, perante o impacto com o Islamismo e, mesmo com o Cristianismo; ou seja, apesar da islamização, permaneceram os valores sócio-religiosos do tribalismo, resultando dessa aculturação uma face muçulmana formal, atenta à “(...) solenidade de um ritual que objectiva a ideia de Deus (...)”(7), seduzida pela “promoção” social fácil (bastando para tal o uso dos sinais exteriores, como o albornoz e o cofió) e tranquilizada pela subsistência de usos ancestrais consentâneos, face ao Islamismo (como a poligamia).

Apesar das diversas opiniões expostas, os dignitários muçulmanos contactados consideram que as populações islamizadas da Guiné integram, de qualquer forma, o mundo dos crentes (Dar al-Islam), espaço de ressonância da “Ummat al-Nabi” (comunidade do Profeta), espiritualista e, desde logo, pelo menos retráctil, diante do recorte ideológico do PAIGC, no entanto espaço “(...) manipulável ao apelo de um poder tutelar que, embora identificado com a Cristandade, lhe manifestasse público respeito e enfatizasse o direito de cidade para esses crentes da periferia sócio-cultural (...)”(8).

Na África Ocidental, os muçulmanos, herdeiros de uma tradição de comércio de longo curso e de peregrinação, com domínio de uma língua escrita, com experiência organizativa e administrativa, possuíam uma herança única susceptível de ser aplicada pelos movimentos independentistas, onde os interesses destes teriam de visar e/ou ser compatíveis com os interesses muçulmanos envolvidos; se tais interesses fossem prejudicados, essas aptidões e qualidades organizacionais podiam funcionar em sentido contrário. Assim, a sua atitude dependeu das circunstâncias específicas dos interesses muçulmanos em cada momento, nos diferentes territórios (9). Atente-se para o facto de, na República da Guiné, o líder político Sekou Touré, apesar de ter procurado limitar a influência dos chefes tradicionais, se apoiou “(...) na influência dos chefes muçulmanos de mais prestígio do território, para obter o apoio das massas (...)”(10).

Tom Gallagher esclarece-nos sobre a posição das comunidades muçulmanas, face ao Poder Português, no período em análise (1963-74), na seguinte passagem: “(...) Ironicamente, o Portugal católico encontrou aliados mais leais entre as tribos muçulmanas, tais como os Fulas, na Guiné-Bissau e os Macuas, em Moçambique, do que entre os grupos africanos educados nas missões, mais inclinados a juntar-se aos nacionalistas. O conservadorismo da sua estrutura social fazia das tribos muçulmanas os aliados preferenciais dos portugueses, que chegaram a enviar peregrinos a Meca e construíram mesquitas na Guiné-Bissau em paga do apoio dos chefes locais (...)”(11).

Neste quadro, convém lembrar que, de acordo com o Supintrep nº. 10 (“Populações da Guiné”) e com a opinião de diversos autores guineenses (12), o Poder Português utilizou os grupos étnicos islamizados por possuírem uma organização social com uma estrutura mais complexa do que a das etnias de religião tradicional, podendo mesmo falar-se de uma estrutura “vertical”, com um “Estado organizado”, com classes e poderes separados, de acordo com as suas condições económicas. Esta organização proporciona-lhes uma elevada coesão pela obediência fiel dos elementos das tribos aos chefes religiosos e políticos, que disfrutavam de uma notável importância e aceitação perante os seus, pelo que o apelo a estes auxiliares era “(...) uma condição sine qua non de uma vitória portuguesa face aos animistas (...)” (13).

Quando Portugal ocupou e iniciou a pacificação da Guiné, os Fulas colocaram-se habilmente do seu lado; não o fizeram desinteressadamente pois, com a colaboração não perdiam vantagens conquistadas anteriormente sobre os Mandingas, como ainda lhes era facilitada a tarefa de islamização dos povos de religião tradicional. Além do mais, viram a sua posição e prestígio reforçados pelo apoio da Administração Portuguesa.

A este respeito, Teixeira da Mota refere que os Fulas compreenderam “(...) que não valeria a pena oporem-se à ocupação portuguesa e que o melhor a fazer era tirarem algum partido do facto de as populações animistas estarem, na generalidade, oferecendo uma tenaz resistência; (...) daqui o aparecimento dos auxiliares Fulas (...)”. Acrescenta ainda: “(...) esta habilidade em se tornarem úteis aos portugueses foi comum a muitos Fulas e Mandingas islamizados (...) o que lhes valeu serem investidos em lugares de régulos, chefes, cipaios (...)”(14) e de oficiais de segunda linha.

O PAIGC, por outro lado, na obra “História da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde”, considera que “(...) o colonialismo português procurou utilizar os feudais Fulas como auxiliares da sua dominação e da sua exploração, sistema que ele adoptou em relação a outros povos da Guiné, seja utilizando os «notáveis» tradicionais, seja fabricando completamente uma organização artificial de chefes (...)”. Acrescenta-se na mesma obra: “(...) a estrutura feudal dos Fulas, que se apoia na dominação dum pequeno número de conquistadores sobre as populações reduzidas ao servilismo, leva os chefes Fulas a aceitarem um compromisso com os portugueses: eles consentirão em reconhecer a sua autoridade e em pagar-lhes um tributo, se os portugueses, por seu lado, os ajudarem a manter a ordem social existente e a dominar a revolta dos seus súbditos (...)” (15). Assim, consideramos que a Administração Portuguesa, na sua actividade colonizadora, soube, e bem, utilizar as capacidades de enquadramento destes chefes islamizados e a importância que podiam ter na economia do território com o comércio que, muito pequeno à escala de cada indivíduo, pesava no conjunto pela grande quantidade dos que se lhe dedicavam.

Como é evidente, estruturas sociais semelhantes constituem um obstáculo importante ao alastramento da subversão. Os régulos fulas (16), na Guiné Portuguesa, por um princípio de fidelidade ou de conveniência, não foram aliciáveis pelas teorias independentistas. Além do mais, a manobra subversiva desenvolvida fundamentava-se na substituição das estruturas tradicionais por um sistema de hierarquias paralelas, o que, em nosso entender, mais contribuiu para uma difícil penetração proveniente da subversão e para o enquadramento que ela pudesse pretender nas massas muçulmanas.

Para se compreender a posição dos Fulas, face à subversão, é necessário salientar que esta etnia possui uma consciência de elite relativamente às outras existentes no território; e, segundo Mendes Moreira (17), afirmaram estar escrito nos livros que o povo fula seria dominador dos povos de cor até ao dia em que viessem os Brancos, razão pela qual deviam procurar entender-se com estes e não pegar em armas contra eles. O grupo étnico fula ocupa, no território, uma extensa área, estando largamente representado nos países vizinhos, onde desempenha um importante papel social, económico, político e religioso. No território da Guiné, consideramos a sociedade fula dividida em três grupos principais: os fulas-forros (nascidos livres), fulas-pretos (fulas cativos) e os futa-fulas (fulas do Futa-Djalon), distinguindo-se, assim, em termos de nascimento, classe social e terra de origem (18).

Quando eclodiu a subversão armada, os Fulas sentiram, um desabar do seu mundo e da supremacia que tinham conquistado. Os régulos e cipaios com domínio em “chão” alheio viam-se de um momento para o outro ameaçados. Tendo conhecimento de que na República da Guiné os privilégios dos “seus iguais” foram cerceados e da forma de actuação subversiva, colocaram-se logo de início, do lado em que tradicionalmente se encontravam - o das autoridades portuguesas - pois, ao fazê-lo, não só se defendiam como velavam pelos seus interesses.

De acordo com o Supintrep n º. 10, “Populações da Guiné”(19), com o evoluir da situação foram-se definindo posições que se traduziam em comportamentos diferentes, face à subversão:

- Franca colaboração com as autoridades e repúdio total do movimento subversivo;

- Colaboração com as autoridades, enquanto a força pendesse para o seu lado, ou quando se tratasse de consumar vinganças pessoais;

- Apatia absoluta perante o desenrolar da guerra;

- Desconfiança e retraimento em relação à política de justiça social do Governo da Província, política que, repondo os Fulas no seu lugar, os colocava em igualdade de vantagens com as restantes etnias.

No ano de 1964, o PAIGC iniciou a sua actividade na área do Boé (20), “(...) visando pressionar a etnia Fula pouco receptiva à subversão (...)”(21). Todavia, no sector leste do território, as dificuldades do Partido foram sempre maiores, dado que aquele grupo étnico se manteve afincadamente do lado do Poder Português (22). Apesar de o PAIGC ter feito ali a proclamação da independência, a afirmação anterior não se altera, já que a região se encontrava ermada e as Forças Armadas Portuguesas, sempre que necessário, podiam exercer o controlo da mesma (23); deste modo os chefes do movimento independentista não poderiam esperar um fácil e rápido aliciamento dos Fulas.

Porém, tal versão dos acontecimentos é contrariada pelo depoimento do Secretário para as Relações Internacionais da Associação Islâmica da Guiné-Bissau, Al-Hajj Abubacar Djaló, que caracteriza o antigo regime português como “(...) um regime oposto aos princípios do Islão (...)” e no qual “(...) não era permitido o livre exercício de outra crença religiosa além da católica (...)”, princípios que, por si só, “(...) já eram revoltantes, levando os Fulas a aderir sistematicamente ao PAIGC (...)”(24).

Quando do eclodir da subversão armada, os Mandingas, que se encontravam distribuídos de forma irregular pelo território (25), estavam em franco processo de expansão; esta situação foi quebrada, o que levou grande parte dos Mandingas a aderirem à subversão ou a refugiarem-se nos países vizinhos, nomeadamente no Senegal e na Gâmbia (26). Esta atitude parece-nos lógica, pois houve fortes razões para que tivessem aderido ao PAIGC, já que este se lhes apresentava como a oportunidade de reaverem a sua independência, face aos Fulas, e, assim, se vingarem da subalternização a que foram sujeitos (27). Porém, no Supintrep nº.10, é explicitado que a maioria terá sido obrigada a aderir, porque as terras em que viviam foram envolvidas pela subversão, ou porque, muitas vezes acusados de terroristas, se sentiram obrigados a fugir.

O comandamento interno dos Mandingas encontra-se entre dignitários islâmicos. Segundo o Supintrep nº. 11 “Religiões da Guiné”, até 1971, tal comandamento seria feito pelo Caramô Mamadu Suaré (que faleceu em Dezembro de 1971), sendo substituído pelo seu irmão Al-Hajj Mutaré Suaré, de Jabicunda. Outros grupos étnicos minoritários, em especial os que habitam a sul do território, como os Nalús e os Beafadas, intensamente afectados pelas ideias difundidas pelo Rassemblement Démocratique Africain e pela acção dos “clubes de trabalho”(28), foram na quase totalidade subvertidos. Grande parte dos elementos desses dois grupos étnicos adoptaram o Islamismo, tendo sido este o factor de desequilíbrio estrutural que a subversão aproveitou.

Quer por reacção ao espírito pós-conciliar, quer por vontade de contrastar com o comportamento daqueles elementos do clero católico que enveredaram por excesso no “aggiornamento” contestando a posição portuguesa em África, quer ainda pelo resultado da acção psicológica desenvolvida “(...) pelos orgãos próprios dos Governos e dos Comandos das Forças Armadas locais, os pólos articuladores muçulmanos, após certa hesitação inicial, acabaram por assumir, tanto na Guiné como em Moçambique, atitudes favoráveis à Administração Portuguesa nos conflitos desenrolados (...)”(29). Esta aliança das etnias islamizadas com o Poder Português era, no fundo, uma aliança de conveniência; paralelamente, uma aliança de coerência, pois sendo espiritualista o Islão, seria “contra natura” uma aliança com uma força que se afirmava ser marxista-leninista.

Pela análise do meio humano, é de salientar que, “(...) por toda a parte continuavam a existir populações fiéis às autoridades (...)”(30); as etnias que de maneira mais fácil aderiram ao aliciamento subversivo estavam radicadas nas áreas territoriais fisicamente mais propícias ao desencadear da rebelião, quer pela intensa arborização ou pelos férteis campos orizículas. Aparentemente, nenhum outro movimento independentista em África conseguiu unir tantas etnias numa mesma luta, “envolvendo de flanco” as clivagens regionais ou tribais, como o PAIGC.

A acção colonial em África e, por conseguinte, na Guiné Portuguesa, com o passar dos séculos transformou a situação social, política e religiosa anterior. Nas zonas urbanas e suas periferias, o islamizado, “(...) apoiando-se na sua específica ressonância comunitária ou da “Ummat al-Nabi” fazendo um quase ermetismo, defende-se, mais fácil do que aconteceria ao cristianizado, dos efeitos negativos da destribalização ou das acomodações já constrangedoras a um tecido tribal envolvente (...)”(31). No caso particular das etnias islamizadas de todos os núcleos urbanos da Guiné, verificou-se a tendência para o agrupamento dos destribalizados em duas associações mutualistas (32): o “Clube” ou Sociedade Nacional de Jalon para os Fulas e o “Clube” Marabu para os Mandingas. As relações entre “clubes” não se reduzem à localidade já que se verificou uma tendência para a ligação com os seus congéneres em territórios vizinhos, por força da comunidade religiosa/cultural e da vizinhança. A ligação é sentida pelo vínculo da religião comum. Além do mais, os centros principais da cultura islâmica, de onde irradiam os propagandistas, encontram-se naqueles territórios. Desta forma, vive à margem da acção administrativa, com sobreposição relativamente às fronteiras, como já referimos no capítulo I, um mecanismo sócio-religioso útil à exportação/importação de influências políticas.

As populações muçulmanas consagrariam, assim, praticamente ao longo de toda a fronteira, quer com o Senegal, quer com a República da Guiné, a persistência de um espaço natural e físico informal. Até 1974, nunca se esbateram, tal como em Moçambique, a “(...) afectividade e o pragmatismo de dimensões conjugadas (a integração na ressonância «Ummat al-Nabi», Comunidade transnacional/transestadual; as concorrências tribais persistentes em maior ou em menor grau no âmbito desta; vínculos ou ligações vigorosos a pólos político-religiosos do exterior, reflectindo diversificada influência social, cultural, económica e política) (...)”(33).

Podemos considerar que, à margem do Islão oficial, se desenvolveu um outro Islão, estabelecedor de “(...) relações entre o Homem e o Divino mais concretas e afectivas (...)”(34), o Islão das Confrarias. Estas nem sempre possuem uma existência legal e comportam aspectos esotéricos conhecidos só pelos seus elementos. As confrarias terão nascido dentro da Sunna, isto é, dentro da ortodoxia, devido a uma ânsia de perfeição espiritual por parte de alguns muçulmanos ortodoxos no desejo de se submeterem à direcção de gente experimentada, ou seja, surgem pela necessidade de suprir a ausência de hierarquia religiosa no Islamismo.

No século XII apareceram as primeiras ordens com a denominação do místico que as orientava. No decorrer dos séculos XIV e XV elas constituíram-se em corpos, hierarquicamente organizados em noviços, iniciados e mestres. Os centros locais possuem uma estrutura piramidal, com um “Cheikh” detentor da baraka (35), um chefe (mocadem) que confere a iniciação aos filiados designados por irmãos (Khouans) ou pobres (fogra). Nas confrarias “(...) a «casa mãe» ocupa o lugar cimeiro, delegando o grão mestre, todos ou parte dos seus poderes, nas diferentes províncias da ordem, com uma hierarquia de representantes (...)”(36), já referida, devidamente credenciada e controlada. A função das confrarias é a de conservar, transmitir e difundir “(...) os ensinamentos do fundador, sobretudo, a sua experiência mística e os métodos (...)”(37). Os seus filiados mantêm uma disponibilidade e disciplina militares, e desenvolvem técnicas de êxtase, que podem revestir as mais diversas formas (caso dos derviches volteadores).

O pietismo popular, desenvolvido e dirigido pelas confrarias, “(...) radicaria na afirmação do Decreto um conceito de predestinação absoluta, de carga psicológica muito concentrada, expresso pelo termo “maktub” (“está escrito”) e identificado com a essência do “sabr” (“capacidade de suportar”) (...)”(38), que acaba por traduzir uma aceitação passiva e abandonada dos factos.

A expansão geográfica das confrarias foi acompanhada pela criação de novas ordens. Hoje, as confrarias encontram-se espalhadas por todos os países islâmicos, excepto em locais onde a escola jurídica adoptada é contrária a esta forma de organização (como a Wahhabita, na Arábia Saudita). Para Hatim Amiji, a vitalidade do Islão, em África, resulta da vitalidade e dinamismo das confrarias (39). Estas, nos países onde estão implantadas, pelo seu património, pela sua teia de influências, pelas suas ligações internacionais, não raras vezes são conduzidas a desempenhar um papel político. Podem “(...) ajudar a estabelecer um regime, à propagação da sua ideologia e à eliminação dos seus adversários (...)”(40); por outro lado, “(....) identificadas com a complexidade humana da África Negra e, logo, eficientíssimas portadoras de quanto as respectivas lideranças queiram ou aceitem, as confrarias podem, em contrapartida, obstruir com ainda maior eficácia (...)”(41).

As confrarias com expressão na Guiné Portuguesa guardavam, em si, no mínimo, “(...) tradições e potencialidades de organização e disciplina; logo, de acção virtual (...)”(42), de onde adveio a sua importância para o Poder Português, que raciocinaria nesta base para intentar accioná-las, e o mesmo poderia ter feito a subversão “(...) se apesar de atenta ao factor coesão não a tolhesse o preconceito, demasiado forte, anti-religioso (...)”(43).

Na África Negra de expressão francesa, contrariamente à portuguesa, as forças independentistas procuraram a aliança com as estruturas islâmicas, como se verificou relativamente às diversificações locais do Wahhabismo (44). A expansão do Wahhabismo, na África Ocidental, coincide com o emergir do Rassemblement Démocratique Africain. O seu principal objectivo político era o estabelecimento de um “ (...) estado democrático que assentasse em noções corânicas de liberdade, igualdade e Ijma (...)” (45), promotor de uma reforma radical da sociedade e contrário à ocidentalização. Este movimento, veiculando influência saudita, vitupera a actividade das confrarias e os poderes a elas associados (46).

Num conflito que dependia da ligação do interior com o exterior, o Poder Português carecia, logicamente, de saber quais os canais de comandamento, accionamento e respectivo acatamento de ordens, ou seja, “(...) «de quem e de onde», «para quem e onde», «sobre quem ?» (...)” (47), no mínimo para serem perceptíveis, numa carta de situação, quais os itinerários utilizados por alguma acção comandada a partir do exterior.

Na África, ao sul do Saara, existem duas confrarias principais, a Qadiriya e a Tidjanya. A primeira foi fundada no Iraque, a sul do Cáspio, no século XI, por Abd al Qadir el Gilani, de Gilan, nascido em 1077 e considerado um santo do Islão. Os traços fundamentais dos ensinamentos quadiristas são a dissuasão do mundanismo e o apelo à caridade e ao humanitarismo. O núcleo central de Bagdad, que permanece orientado por descendentes directos de al-Gilani, espalhou-se, fundamentalmente, pelo Magreb e para o oriente da África Negra, norte da Turquia e sempre para leste, até atingir a Indochina.

Segundo Teixeira da Mota, “(...) na África Ocidental o movimento está desligado da confraria mãe e subdividido em confrarias independentes (...)” (48). Diluiu-se na negritude e dele relevaram a forma rotular e a força do vínculo psicológico, em detrimento do conteúdo doutrinário. Este, reduzido a uma linha pietista, projectada em observâncias rituais; as técnicas de êxtase, excepto as litanias, afiguram-se praticamente irrelevantes. As suas orações são as do rito maliquita, possuindo um maior poder, quando recitadas em comum. Interessa-se pelo desenvolvimento das qualidades morais. As práticas religiosas ocupam, aos seus elementos, grande parte do dia. Exteriormente, usam um rosário conhecido por Tabassai, constituído por 99 grãos, separados entre si por contas de vidro colorido, em 3 grupos de 33 cada.

No Senegal, em 1972, o “Cheikh” Sidaty Ould Talibouya era o Califa Geral (49) e possuía influência religiosa importante que se estendia às regiões do Futa-Toro, Diourbel, Sine-Salaum, Casamansa, Gâmbia, Mali e à Guiné Portuguesa (Jabicunda e Bijine).

A confraria Tidjanya foi fundada no século XVIII, no Norte de África, por Ahmed ben Mohamed ben el Mokhtar el Tidjani, que nasceu na Argélia em 1735 e morreu em 1815, encontrando-se sepultado em Fês. É uma confraria especificamente africana (50), que se expandiu por todo o norte e ocidente africanos. Nela entrosam o Hamalismo e o Muridismo, diversificações de excepcional indução gregária e capacidade de organização. Tidjani declarou “(...) ter recebido a sua doutrina directamente de uma revelação do Profeta (...)”(51); com influxos de movimentos reformistas, encontra-se mais integrada na africanidade do que a Qadiriya. Eivada de eclectismo (Mokhtar el Tidjani, era de inicial obediência quadirista) e pragmatismo político e religioso, possui uma “(...) notória maleabilidade proselitista, servida por regras rituais simplificadas (...)”(52). É, em suma, um corpo de acção prática, destinado a servir a apologética, e que tem disputado a supremacia religiosa à Qadiriya, em períodos alternos. O rosário tidjanista é diferente do quadirista. É constituído por 100 grãos, representando os 99 Nomes por que é conhecido Deus e mais um a simbolizar tudo o que dele se desconhece; os grãos encontram-se separados entre si por uma bola de vidro em grupos de 12-18-20-18-12.

Na Guiné, há uma justaposição parcial de etnias e confrarias. Os principais centros da confraria Qadiriya, no território, são Jabicunda e Bijine (53), dirigidos por Jacancas, oriundos do centro de Tuba (na Guiné-Conacry), abrangendo na Guiné-Bissau os Mandingas e afins, ou diversificações deles, e ainda as populações atingidas pelo seu activo proselitismo, como os Balantas Mané e Manjacos de Pelundo.

A Tidjanya, como ordem política e guerreira, no combate sob o comando de Al-Hajj Omar, conseguiu suplantar os Qadiriya no Futa-Toro e no Futa-Djalon. Na Guiné os principais centros são Ingoré, Quebo (outrora Aldeia Formosa) e Cambor (54), abrangendo os Fulas e diversificações (incluindo Quebuncas e Torancas); estende-se parcialmente aos Saracolés e exerce algum esforço sobre Beafadas e Nalús. Apesar do simplismo pragmático característico do tidjanismo, um tanto ou quanto paradoxalmente este não desenvolve a apologética daí previsível, tal se devendo “(...) aos preconceitos sócio-raciais do Fula, perante as outras etnias (...)” (55) e, mesmo, face às religiões tradicionais. Al-Hajj Malik Sy introduziu esta confraria no Senegal e instalou-se em Tivaouane, onde fundou uma escola que atraiu vários missionários e elementos letrados da população muçulmana senegalesa. Após a sua morte, em 1922, foi substituído por Abukaber Sy e, em 1957, por Abdul Aziz Sy, ainda Califa em Novembro de 1995 (56). É a segunda maior confraria do Senegal.

Os muçulmanos africanos, assim como todos os outros, vivem a religião com a certeza de pertença à Comunidade Eleita. Possuem práticas e comportamentos que delimitam uma identidade própria que os une entre si e ao mundo inteiro. Os quadros confraternais, com as suas estruturas próprias, criam, como já dissemos, mecanismos de comunicação que ultrapassam as próprias estruturas étnicas e as dos Estados, permitindo, assim, uma maior mobilidade e um consequente alargar de horizontes de interesses.

Nas sociedades que compõem todo o corredor que se inicia em Marrocos e se prolonga até ao Golfo da Guiné, as linhagens preponderantes são de natureza xerifina, como tal acreditada e acatada e, “(...) para as quais o Rei Imã de Marrocos consubstancia o pólo dos pólos (...)”(57). É nessas linhagens que se efectua a transição do tecido afro-árabe para o afro-negro, desde a Mauritânia, passando pela Guiné-Bissau, todos eles com impressiva presença islâmica.

Numa perspectiva maximalista da estratégia, será irrealismo grave menosprezar as cadeias de comunicação que transcendem os espaços de identificação considerados clássicos. Estas cadeias funcionam como “ (...) elementos integradores e, logo, como condicionantes ou indutoras de comportamento (...)”(58).

Recordando o caso particular da Guiné Portuguesa, onde as articulações dos povos muçulmanos e as linhas de influência, que lhes suscitavam comportamentos, não obedeciam a esquemas rígidos, mas funcionavam efectivamente; podemos dizer que em 1972 havia uma certa fluidez de tais mecanismos para o que cremos terem contribuído a diminuta superfície do território, a situação interna e as pressões externas.

Os dignitários islâmicos, em Junho de 1972, tinham a consciência de que a guerra se encontrava em fase avançada, para que alguém os fosse retaliar por alguma coisa. Estavam, igualmente, conscientes de que a sua posição era de impunidade por serem uma força aliada da Administração e, como tal, podiam permitir-se proceder como quisessem em relação ao exterior, pois do lado do Poder ninguém impediria tais ligações.

De acordo com o “Relatório de Serviço” (59), na antiga Província Portuguesa, de 16 de Junho de 1972, elaborado por Amaro Monteiro na sequência de missão determinada pelo Ministro do Ultramar, as linhas de articulação dos dignitários islâmicos, no âmbito interno e no contexto africano, eram:

1) Quanto à confraria Qadiriya:

Em Jabicunda, o dignitário mais destacado da confraria era Al-Hajj Mamadu Mutaré Suaré (Jacanca), que exercia influência de tipo polarizante em todo o território, na área de Bafatá, e externa, na Gâmbia e no Senegal, articulando-se, neste último, com o seu irmão Caranca Djura Suaré (Casamansa), em consulta numa plataforma de paridade, não excluindo certo acatamento ao mesmo. Fazia a dádiva recomendável devida ao destaque, na linhagem xerifina, ao “Xerife” Yussuf Haydara (de Casamansa), portador da “Baraka”, aparentado com os Haydara de Tombuctu (Mali) e articulado a Marrocos. Por via de seu irmão, inseria-se na dependência própria dos quadros confraternais, articulando-se, assim, ao “Cheik” Sidaty Ould Talibouya, expoente máximo da Qadiriya no Senegal, cujo poder de accionamento se estendia à Gâmbia, Mali, Guiné-Conacry e Guiné Portuguesa. Este “Xerife” senegalês visitava todo o território, colectando. Apresentava-se, pela linhagem e atributos pessoais, como ultrapassando na sua missão o quadro estrito das confrarias, e fundia-se com o Rei Imã numa origem multissecular: “a Casa do Profeta”.

Em Bijine, o mais destacado elemento era Al-Hajj Almami Sidi Acassamo (Mandinga) que manifestava acatamento xerifino e se articulava com o dignitário de Jabicunda, já citado. Contudo, em caso de recurso do respectivo parecer ou decisão, articulava-se ao “Cheikh” Sidi Abu Ibrahimo, na Mauritânia (Boutilimit) e não com Caranca Djura Suaré; também fazia a dádiva recomendável ao Cheik Sidaty Ould Talibouya.

2) No tocante à confraria Tidjanya, dizia a mesma fonte:

Os dignitários islâmicos mais proeminentes eram Al-Hajj Cherno Rachid Djaló (futa-fula) de Aldeia Formosa (rebaptizada Quebo, após a independência), o Xerife Secuna Haydara (de linhagem xerifina) de Ingoré e, em Cambor, o Al-Hajj Cherno Mamagari Djaló (futa-fula).

Cherno Rachid apresentava, como figura tutelar, seu irmão Al-Hajj Califa Mamadu Cabiro Djaló com posição prioritária honorífica e consultiva, embora o autêntico poder de accionamento fosse detido pelo Cherno Rachid. Articulava-se em consulta ao Califa Abdul Azis Sy (em Tivouane, a NE de Dakar) e, suplementarmente, a Al-Hajj Seydou Nourou Tal do mesmo país (em Dakar), conselheiro governamental e “director de consciência” dos tidjanistas tocolores e guineenses. Exercia influência religiosa interna do tipo polarizante em todo o território, nomeadamente na áreas de Fulacunda e Gabú (postos não especificados) e, externa, como consultor, no Senegal (Casamansa), na República da Guiné (pontos não especificados) e no Mali (Bamako). Manifestava acatamento xerifino do tipo idêntico ao dos pólos de Jabicunda e Bijine tendo, também, feito a dádiva recomendável ao Xerife Yussuf Haydara.

Em Ingoré, o Xerife Secuna Haydara pertencia a uma família originária de Marrocos (Fês) e efectuou os seus estudos em Tuba, na Guiné-Conacry. Apresentava-se com uma ambivalência confraternal, pois era dirigente tanto da confraria Qadiriya como da Tidjanya (note-se, caso único no território), para o que concorre a sua natureza xerifina. Secuna Haydara também exercia influência interna de tipo polarizante (em toda a linha de S. Domingos a Farim) e externa, a título consultivo (Casamansa), sendo a sua articulação em posição de acatamento com Al-Hajj Cheikh Ibraimo Djabi e, a nível paritário, com o Cherno Rachid. Este dignitário era parente do Xerife Yussuf Haydara, a quem não fazia a dádiva recomendável.

Por fim, o dignitário de Cambor, Cherno Mamagari Djaló, foi iniciado na confraria Tidjanya, no Senegal, pelo Xerife Hakilo Haydara, a cujo irmão Yussuf fazia a dádiva recomendável e a quem consultava, recorrendo, só em última instância, ao Califa Abdul Aziz Sy. A sua influência religiosa, a nível interno, é de tipo polarizante, em Cambor e nas zonas limítrofes. No entanto, manifestou alguma rivalidade em relação a Cherno Rachid pela sua influência no Gabú. Ao nível externo, efectua consulta no Senegal (Casamansa), Gâmbia (área de Djadjaburé) e em Conacry (não especificado).

Procurámos na medida do possível actualizar, presencialmente, todos estes pólos articuladores e difusores do Islamismo no território. Assim, no que respeita à confraria Qadiriya, os principais centros continuam a ser Jabicunda e Bijine, aos quais acrescentamos entretanto Farim.

Em Jabicunda, o Almami Ansu Cissé exerce influência interna, de tipo polarizante, em toda a área de Bafatá e, externa, na Gâmbia e Senegal. Paga a dádiva recomendável a um “Xerife” senegalês, cujo nome não conseguimos apurar. Os dignitários de Bijine Ualió Quntchumba Faty e Al-Hajj Koba Gassama (59), e Farim, Arafan Bacari Touré, respectivamente, todos com acatamento xerifino, articulam-se com o dignitário de Jabicunda, já referido.

No que se refere à confraria Tidjanya, Cambor é, presentemente, o maior pólo de difusão, sendo ainda dignitário Al-Hajj Ualió Mamagari (60)(portador de “Baraka”), considerado “Homem Grande” em todo o território; exerce influência de tipo polarizante no mesmo território, a nível interno, e externamente na Guiné-Conacry, Senegal, Gâmbia, Mali e Mauritânia (61).

Em Quebo, o dignitário islâmico mais proeminente é Al-Hajj Amadú Dila Djaló, filho de Cherno Rachid. Manifesta acatamento ao Xerife de Fês, Tidjani Hajj Zambir, filho de Sidi Al-Hajj Bensalem a quem faz a dádiva recomendável. Exerce influência religiosa interna, de tipo polarizante, na região de Quebo e, externa, como consultor, na Guiné-Conacry e no Senegal. Quanto a consulta, articula-se, tal como seu pai, ao Califa Abdul Azis Sy (nascido em 1904). Este dignitário foi iniciado na confraria Tidjanya em Tivaouane, no Senegal. Completou os seus estudos no Egipto e efectuou diversas vezes peregrinações a Meca. Salientamos que este dignitário é deputado pelo PAIGC, na Assembleia Nacional Popular.

Ingoré, última fronteira guineense antes de Casamansa (62), continua a ser um grande pólo de difusão do Islamismo (permanece a bi-valência qadirista-tidjanista).

Aos centros tradicionais do território, acrescentamos o pólo de Sinchã Santa Mansata (Canhamina), onde Al-Hajj Umarú, com formação no Egipto e amigo próximo de Hassan II (segundo faz crer), construiu aquela que é considerada a maior mesquita da Guiné-Bissau.

Na perspectiva de Amaro Monteiro, se “(...) accionadas de Sul para Norte N ondas de subversão metódicas apontando às credibilidades e às sedes geografico-culturais dos dignitários xerifinos, o mecanismo de comunicação visado, rarefeitas as respectivas bases de sustentação (...)”(63), reagiria em sentido inverso, ou seja, se se projectarem, numa carta, todas as articulações confraternais e as linhagens xerifinas, verifica-se que estas teriam muito provável coincidência com os itinerários/focos de violência ou de desestabilização, que, em última análise, visariam o Rei Imã. Caso aquele entrasse, hipoteticamente, em colapso, provocaria o “(...) «curto circuito» dos mecanismos de comunicação sócio-religiosos (...)”(64), no referido sentido geográfico e, claro está, forte trauma nos pólos articuladores das confrarias Qadiriya e Tidjanya.

O Poder, ontem (o português) como hoje (o guineense), apercebendo-se de que não se pode alhear da importância muçulmana no território (65), que não pode ignorar o seu dinamismo por vezes encarado como concorrente da política externa do Estado, procura, por exemplo, custeando as despesas com a peregrinação a Meca (66) de personalidades destacadas da comunidade islâmica e com a construção de mesquitas, ganhar alguma autoridade, ou melhor, tenta obter, ou continuar a obter, os favores dos muçulmanos, sobretudo, importantes numa altura em que o mundo islâmico - pela mão do integrismo - assume uma importância política inusitada e que convém esconjurar. Porém, o Estado laico dificilmente penetra no campo religioso. Aquilo que dá força ao Islão, nomeadamente ao Islão popular, é o facto de este representar, pelo menos em princípio, uma contra-sociedade, ou seja, uma sociedade paralela, que escapa por natureza ao poder do Estado (67). Assim, o Estado procura o aproveitamento pragmático dos muçulmanos, pois as respectivas características culturais são susceptíveis de, se bem exploradas, em termos de Apsic, reforçar ou constituir uma consciência nacional.

Em 1985, criou-se em termos oficiais a Associação Islâmica (presentemente presidida por Al-Hajj Sori Sow), sediada na capital agrupando todas as confrarias e comunidades espalhadas pelo país. Esta fórmula coordenadora faculta ao Islão o benefício do reconhecimento oficial, ao mesmo tempo que permite às autoridades governamentais “(...) transformar as estruturas muçulmanas em verdadeiras instituições paralelas do regime (...)”(68). Aquela associação dispõe de um importante papel nas relações externas das comunidades muçulmanas nacionais, visto que é ela a encarregada de regularizar os contactos culturais e religiosos com o mundo árabe e de atrair capitais.

Após as primeiras eleições multipartidárias, em 3 de Julho de 1994, também as associações islâmicas proliferaram, contando-se presentemente no país mais cinco associações: a União Nacional para a Cultura Islâmica (1991), a Al Ansar (1992), com maioria de associados Mandingas; o Instituto Islâmico para o Desenvolvimento, que agrupa Fulas e Mandingas (1993); o Comité de Redacção e Tradução, que agrupa, essencialmente, Fulas (1994); e a Organização Islâmica, Cultura e Desenvolvimento, cuja maioria de associados é de Mandingas (1995).

Para eficiente accionamento da população, quer uma subversão quer uma contra-subversão necessitam de adequado conhecimento dos mecanismos informais de comunicação; nestes, o vector sócio-religioso desempenha, na África Negra, elevada importância, potencializada em terrenos humanos como o da Guiné pela impressiva presença de massa muçulmana. Uma guerra de semelhantes características globais ultrapassava obviamente a área de acção habitual das Forças Armadas. Assim, a resposta portuguesa para obstar “(...) à guerra global que a ela condicionava os actos da política (...)”(69) requerer-se-ia também geral, ou seja, em todas as “frentes”, por acções oportunas e estreitamente coordenadas nos campos social, político, militar e psicológico, como veremos no próximo capítulo e aliás desde já se vem inferindo.

 

(1) Para Vincent Monteil, na África Negra, “(...) o mesmo muçulmano que vedes ir à Mesquita fazer as suas abluções, as suas rezas, (...) da mesma forma e com a mesma convicção se dirigirá a um feiticeiro (...)”. Em “L´Islam Noir”, em “Revue Tunisiènne de Sciences Sociales”, pág. 40, Nº.4, 2 è Année, Tunis, Dezembro de 1965.

(2) Hatim Amiji considera que “(...) o Islão de África não constitui uma versão africana distinta do Islão do mundo árabe. O Islão é universal (...) no sentido etimológico do termo (...)”. E acrescenta que foram os investigadores ocidentais que criaram essa dicotomia de “grande tradição” e de “pequena tradição”, não existente no mundo muçulmano. Assim, defende que se devem explicar as diferenças em função da “(...) educação, da profundidade da compreensão religiosa e do entrosamento na fé muçulmana. Apesar de certas diferenças formais, as crenças e os ritos fundamentais são universais e inalteráveis (...)”. Em ob. cit., págs. 107 e 108.

(3) Paul Balta diz existir um Islão, “(...) adaptado às culturas africanas, repensado em função, não somente das estruturas e mentalidades antigas, mas também a situações presentes; o que não significa que por isso estejamos em presença de um Islão independente, cismático, separado do resto da Umma (...)”. Em ob. cit., pág. 230.

(4) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 251. Todavia, para Suleiman Valy Mamede, actualmente, 60% da população total da Guiné-Bissau é muçulmana e, incorrectamente, denominada de islamizada. Em ob. cit., pág. 208.

(5) Fernando Amaro Monteiro, Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, “Linhas de Influência e de Articulação do Islão na Guiné Portuguesa, Sugestões para Apsic”, Relatório para o Ministro, Secreto, Lisboa, 16 de Junho de 1972.

(6) Idem.

(7) Idem.

(8) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 103.

(9) Ioan M. Lewis, ob. cit., pág. 132.

(10) Silva Cunha, “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África - Relatório da Campanha de 1958 (Guiné)”, págs. 26 e 27.

(11) Tom Galhagher, “ Portugal - A Twentieth Century Interpretation”, pág. 177, Manchester, University Press, 1983. René Pélissier acrescenta: “(...) pode dizer-se que os portugueses se entendem muito melhor com os adeptos de Maomé, que com os animistas (...)”. Em “História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia 1841- 1936”, pág. 225, vol. II, Imprensa Universitária, Ed. Estampa, Lisboa, 1989.

(12) Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10. São diversas as publicações guineenses com esta opinião: PAIGC, ob. cit., págs. 49 e 51; Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág.39; Carlos Lopes, ob. cit., págs. 19 e 33 e Peter Karibe Mendy, ob. cit., págs. 86 a 90.

(13) René Pélissier, ob. cit., pág. 263.

(14) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 254. Ver também idêntica opinião de António Carreira em “Evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa”, pág. 432.

(15) PAIGC, ob. cit., págs. 51 e 101, respectivamente.

(16) No Supintrep nº. 10 encontra-se especificado quais os regulados das diferentes etnias que se encontravam ao lado da Administração Portuguesa, e quais os que se encontravam ao lado do PAIGC.

(17) Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10.

(18) Peter Karibe Mendy, ob. cit., pág. 88.

(19) Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10.

Nesta classificação não se englobaram elementos Fulas que aderiram à subversão, visto que representam uma minoria em relação à população total Fula.

(20) A região de Boé engloba, na Guiné-Bissau, o regulado do mesmo nome e, na República da Guiné, uma vasta área que se estendia ao Futa Djalon. Os Fulas desta região, por vezes designados de Boencas ou Fulas do Burré, são essencialmente pastores nómadas que, atingidos profundamente pela subversão, foram obrigados a deslocar-se para os regulados de Maná e Chanha, onde grande parte se acolheu, à protecção das autoridades portuguesas. De acordo com o Supintrep nº. 10, em 1971, o seu chefe era Amadou Bobodjalo e vivia em Nova Lamego (Quebo), em virtude de o último régulo, Suleiman Djaló, se ter demitido do cargo, quando rebentou a subversão armada. Este último foi entrevistado pelo autor em Quebo, a 31 de Outubro de 1995.

(21) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 118.

(22) Idem, “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 66.

(23) Idem, ibidem. Igual opinião expressa a obra, também da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961- 1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 120.

(24) Entrevista do autor com Al-Hajj Abubacar Djaló, Secretário para as Relações Internacionais da Associação Islâmica da Guiné-Bissau, em Bissau, a 2 de Novembro de 1995. Muitos dignitários islâmicos de etnia Fula (por exemplo em Quebo e Cambor) são hoje apoiantes do Poder instituído na República da Guiné-Bissau, regime democrático e multipartidário desde Julho de 1994.

(25) A área Mandinga, propriamente dita, estende-se do Senegal à Nigéria, prolongando-se pela Costa do Marfim, República da Guiné, Libéria, Serra Leoa, até ao extremo leste da Nigéria. Apresentava em 1971 uma maior concentração nos regulados de Maná e Chanha, no concelho do Gabú; nos de Gussará, Ganado e Badora, no concelho de Bafatá; nos de Comico e Oio, no concelho de Farim; e nos de Bissorã e Fulacunda, no concelho e circunscrição do mesmo nome. Em Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10.

(26) Idem.

(27) Os Mandingas, vindos do Mali, estabeleceram-se na Guiné no século XIII. O seu reino tinha uma estrutura hierarquizada de classes. O Gabú torna-se Reino independente, depois da queda do Império do Mali, vindo no entanto a perder a sua independência em 1867 com a conquista Fula. Em PAIGC, ob. cit., pág. 57.

(28) De acordo com o “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África - Relatório da Campanha de 1958 (Guiné)”, do Doutor Silva Cunha, as autoridades da antiga província portuguesa verificaram que os indígenas das áreas dos postos de Cacine e Bedanda, no início do ano de 1956, se reuniam frequentemente com a finalidade de auxílio mútuo entre os seus associados, quer nos trabalhos agrícolas, quer na construção de casas. Todavia, averiguou-se que a sua estrutura estava a ser habilmente aproveitada para a formação de associações novas, com uma organização permanente (enquanto as primeiras só funcionavam no momento da execução dos trabalhos), com a finalidade de expandir a acção do Rassemblement Démocratique Africain. Ob. cit., págs. 33 e 34.

(29) Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 19.

(30) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 119.

(31) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, págs. 103 e 104.

(32) Silva Cunha, “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África - Relatório da Campanha de 1958 (Guiné)”, pág. 38.

(33) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 65.

(34) Gilles Veinstein,, “Les Confréries”, pág. 95, em Balta, Paul, “Islam Civilisation et Sociétés”, Ed. du Rocher, Paris 1991.

(35) No “Cheikh”, a popularidade não repousa só nas seus atributos sobrenaturais, acima de tudo deve ser “(...) um protector (ou pelo menos dar essa impressão) e, assim, prestar serviços (...)”. Em Paul Balta, ob. cit., pág. 234. Fernando Amaro Monteiro define “baraka” como:”(...) a benção, o carisma, a “virtus”, o fluxo magnético (transmissível por imposição das mãos, através da saliva, etc.) (...)”. Em ob. cit., pág. 48.

(36) Gilles Veinstein, ob. cit., pág. 97. O “Cheikh” é um indivíduo dotado de poder espiritual e formal e a quem Alá concedeu o dom de fazer milagres, conhecer as coisas ocultas e curar as almas. Não é só um guia espiritual, é um próximo de Deus. Os seus preceitos e ordens devem ser obedecidos, mesmo quando contra as ordens da autoridade estabelecida no país onde se encontram. O noviço “(...) recebe do seu guia espiritual a iniciação - um segundo nascimento - que lhe permitirá, no termo da sua formação, alcançar através das diversas etapas psicológicas, a percepção da realidade divina (...)”. Em ob. cit., pág. 99.

(37) Idem, pág. 98.

(38) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 249.

(39) Hatim M. Amiji, ob. cit., pág. 119.

(40) Gilles Veinstein, ob. cit., pág. 103.

(41) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 51.

(42) Idem, pág. 249.

(43) Idem, ibidem.

(44) O Movimento Wahhabita inspira-se nos ensinamentos de Mohamed Abdul al-Wahab. As influências Wahhabitas penetraram na África Ocidental “(...) graças ao regresso dos peregrinos de Meca e dos estudantes diplomados em Universidades como Al-Azhar (...)”. Em Hatim M. Amiji, ob. cit., pág. 121.

(45) Idem, pág. 121.

(46) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 250.

(47) Idem, pág. 99.

(48) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 252.

(49) De acordo com os documentos do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep Nº. 11 e do Relatório de Fernando Amaro Monteiro, Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, “Linhas de Influência e de Articulação do Islão na Guiné Portuguesa, Sugestões para Apsic”, Relatório para o Ministro, Secreto, Lisboa, 16 de Junho de 1972.

(50) Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 253.

(51) Hubert Deschamps, ob. cit., pág. 88.

(52) Fernando Amaro Monteiro, relatório atrás citado.

(53) Silva Cunha, “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África - Relatório da Campanha de 1958 (Guiné)”, pág. 28. Em Jabicunda, os Jacancas dominavam o Centro Fixo de Difusão do Islamismo de Jabicunda, o maior da confraria Qadiriya na Guiné. A sua acção dirigia-se não só aos Mandingas e Beafadas de Badora e Xime, como também aos Fulas pretos de Cossé. A projecção do Centro ainda hoje atravessa a fronteira.

(54) Idem, ibidem. Centros que se situam respectivamente no antigo Posto de Sedengal, na área da Circunscrição de Fulacunda, e o último na área da circunscrição de Gabú.

(55) Fernando Amaro Monteiro, relatório atrás citado.

(56) Comando-Chefe da Guiné, “Religiões da Guiné”, Supintrep nº.11. Esta situação foi confirmada pelo autor em inquérito realizado no território da Guiné-Bissau em Outubro/Novembro de 1995.

(57) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 48.

(58) Idem, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 10.

(59) Idem, relatório atrás citado.

(60) Este dignitário é descendente da importante família Baayo, originária de Tombuctu, e que segundo a tradição oral se terá instalado em Bigine, depois da queda do Reino de Gabú. Dados recolhidos pelo autor em Bigine, durante o mês de Agosto de 1996.

(61) Este dignitário faleceu em Abril de 1996, sendo presentemente substituído pelo seu filho, situação que levanta alguma instabilidade, pois existe disputa pelo Poder entre este e o seu Tio, que habita numa morança perto de Cambor, e mesmo com o pólo de Sinchã Santa Mansatá.

(62) Os actuais Presidentes da República da Guiné-Bissau e Senegal, respectivamente, “Nino” Vieira e Abdou Diouf, quando em campanha eleitoral, consultaram este dignitário sobre a sua previsibilidade dos resultados eleitorais.

(63) Desde 22 de Dezembro de 1982 que o MDFC exerce na região acções de guerrilha vizando a independência do território. A actuação deste movimento tem provocado alguma instabilidade social nas regiões de Ingoré, São Domingos e Sedengal, locais onde segundo dados recolhidos no terreno eplo autor e de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados se encontram cerca de 16 mil refugiados. Esta organização, criou já no corrente ano, uma zona de segurança 15 Km a Sul da fronteira, e um único campo para acantonar estes indivíduos, em Jolmete; contudo apenas 560 indivíduos se encontram no local. Estas medidas vizam para minimizar as reivindicações da população.

(64) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 49.

(65) Idem, pág. 48.

(66) Altas personalidades do Poder são muçulmanas. O primeiro Vice-Presidente do Conselho de Estado é muçulmano e muito ligado à área integrista. O Chefe do Estado Maior General das FARP é um fervoroso muçulmano. O Vice-Chefe do Estado-Maior General das FARP, o Chefe do Estado-Maior do Exército das FARP (Tenente Coronel Sandji Faty), também, embora estes dois últimos se afirmem não praticantes.

(67) Sabe-se que foi disponibilizada uma verba de 200 mil dólares pela Presidência do Conselho de Estado para custear as despesas com a peregrinação a Meca para diversas personalidades destacadas da Comunidade. Na Guiné-Bissau, assim como em toda a África Ocidental, realiza-se a designada “peregrinação por procuração”, ou seja, emerge de uma comunidade um elemento para efectuar a peregrinação. Este elemento executa a peregrinação e obtem, na viagem, a bênção para toda aquela comunidade que suporta as despesas de tão honrosa missão. A comunidade em questão encarrega-se da família do peregrino, enquanto ele está ausente. O valor da peregrinação também envolve este procedimento. Se, por outro lado, o grupo social não realizar aquele esforço, podemos dizer que a peregrinação é afectada.

A peregrinação desempenha um importante papel político, uma vez que une muçulmanos de todo o mundo. Ao regressarem, os peregrinos são portadores do título honorífico de “Al-Hajj” (peregrino), o qual confere um estatuto aristocrático no plano sócio-religioso. De acordo com o Supintrep nº.11, entre 1959 e 1972, sob o patrocínio do Governo da antiga Província Portuguesa, visitaram Meca 230 peregrinos.

(68) Christian Coulon, ob. cit., pág. 76.

(69) Idem, pág. 163.

(70) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 115.

 
 

 




 



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