FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

Capítulo III -  O artificialismo das Fronteiras da Guiné Portuguesa e os espaços sócio-religiosos sobreponíveis: sociedades de religião tradicional e comunidades muçulmanas; a sua atitude perante a subversão

2. - Geopolítica do Islão. A escola dominante na África do N e NW

O espaço definido pela Comunidade que a Revelação designou para promover o “Bem” e combater o “Mal”(1), coranicamente entendidos, em termos de fronteira não logra ser por ora “(...) mais do que uma forma mitigada de nacionalidade (...)”(2). A “Ummat al-Nabi” (Comunidade do Profeta) desenvolve-se em consonância com uma civilização, também ela de dimensões mundiais. A sua progressão político-militar nos primórdios, ressalvando as circunstâncias, assemelha-se à progressão das divisões Panzer, na II Guerra mundial, a Blitzkrieg. À morte de Maomé, em 632, o mundo islâmico reduzia-se a uma parte da Península Arábica. Apenas um século depois da morte do Profeta faz uma espantosa expansão, que se estendia desde a Espanha até à Índia, desde a Ásia Central até ao deserto do Saara.

O Islão, em África, é predominante a Norte; na orla ocidental chega aos Camarões e na oriental chega a Moçambique. Na Ásia, progride de Sul para Norte, existindo importantes massas na antiga URSS e no Sin Kiang. Na Europa Ocidental, como é o caso da França, Inglaterra e Alemanha, progride sobretudo nos meios urbanos, onde se verificou densa migração proveniente de países islâmicos. Um estudo da Conferência Episcopal Brasileira de 1989 mostra que a taxa mundial de crescimento do Islamismo é de 16% (a do Cristianismo é de 1,5%) (3).

As áreas abrangidas pelos países islâmicos, ou impressivamente islamizados, são detentoras de considerável potencial, no plano económico: importantes reservas de petróleo e gás natural, minérios estratégicos, especiarias, pedras preciosas, etc. Do ponto de vista geopolítico, o Islão detém posições de relevo no controlo das zonas de passagem: Gibraltar, Bósforo, Suez, o canal de Moçambique, os estreitos de Bab-el-Mandeb, Ormuz e Malaca; controla, “(...) em sentido lato, o próprio espaço do Oceano Índico (...)(4), o que vem a reflectir-se na Rota do Cabo, de importância evidente para todo o Atlântico, não só o inserido no espaço formal dos quadros de Segurança da NATO, mas, para além destes, em todos os que não deixaram nunca de preocupar a Organização.

O Islão representa hoje uma das principais peças do tabuleiro geopolítico regional e internacional. No presente, o total da população muçulmana, não obstante as margens de erro próprias, está estimado entre 800 milhões a mil milhões de crentes, representando cerca de 1/6 da população mundial. O seu número terá duplicado entre 1966 e 1986, prevendo-se que duplique, novamente, até ao final do século (5). Em África, há cerca de 250 milhões, repartidos entre a África do Norte e a África Negra em duas partes iguais (6).

O Islão, que é religião, moral, um sistema social, economia e política, é uma realidade que encontra a sua expressão no conceito de “Umma” (comunidade integradora e integrada, sobreposta às idéias de Nação, Estado e Pátria). Todavia, não consideramos que haja um mundo muçulmano (Dar al-Islam) homogéneo; as formas culturais muçulmanas diferem, como os regimes políticos e os contextos sociais em que vivem populações do Volga ao além-Zambeze e de Marrocos à Indonésia ou ao Sul das Filipinas.

Desde o início do século XX que a expansão crescente do Islamismo reveste, cada vez mais, a forma de um nacionalismo reivindicativo/militante, nomeadamente nos países árabes. Os crentes lutam pela reunificação da “Umma”, a comunidade muçulmana, que é “(...) internationale, vivante et populaire des Croyants avant d´être celle des structures politiques et des organizations internationales qui s´efforcent de lui donner une expression officielle (...)”(7); “Umma” que, na perspectiva dos crentes, abarca todo o Planeta, tendo sido fraccionada pelas potências ocidentais.

A explosão islâmica foi provocada por inúmeros factores, como: “(...) o artificialismo de fronteiras subsequente à I Guerra Mundial e as situações neocoloniais, a criação do estado de Israel e o problema palestiniano; a política ecuménica pós-Concílio Vaticano II; as pressões geoestratégicas exercidas tanto pelo Ocidente como pelo Leste ex-soviético sobre espaços muçulmanos de maior importância; o descrédito das ideologias e da “cultura ocidental”; as crises económicas e o desemprego crescente; enfim, o desejo de materialização da “Umma” (...)”(8), encontra-se intimamente ligada à afirmação fundamentalista/integrista dos dias correntes.

As situações, supra referidas, provocaram uma crise de identidade, quer na sociedade muçulmana, quer no indivíduo. O Islão apresenta-se, assim, como uma terceira via, uma defesa contra qualquer intromissão estrangeira, seja ela militar, política ou ideológica, sendo o Islamismo radical como que a alternativa possível para um sector importante da população, que procura no seu sedimento cultural específico uma resposta para os problemas contemporâneos. Este regresso ao passado, pela recusa da modernidade, reveste-se de um purismo com vista a eliminar o que é “estrangeiro”, cristão, induista, budista, pretendendo recriar uma sociedade como a dos primeiros tempos do Islão pelo que, pontualmente, recorre à xenofobia cultural e política, como elemento adjuvante na pesquisa do autêntico (9). Porém, esta revivescência da consciência religiosa não se apresenta como um movimento unido, mas parece reflectir, sim, um descontentamento difuso, face às estruturas políticas inadaptadas (Estado-Nação), à ocidentalização do modo de vida e à consequente aculturação.

No seio da comunidade muçulmana, a existência de liberdade de relação entre os crentes e Deus, acrescida da capacidade concedida a todos os muçulmanos de interpretar o Alcorão, pode ser uma explicação do pulular de interpretações subjectivas do direito corânico que, por sua vez, suscitaram o florescer de escolas jurídico-religiosas no interior do Islamismo.

As quatro actuais grandes escolas da ortodoxia sunita (Maliquita, Hanafita, Chafita, e a Hanbalita, precursora do Wahhabismo) (10) constituiram-se no século III da Hégira, no primórdio da Era Abassida. O seu conteúdo revela o carácter difuso e interpretativo do ritual, da fé, do direito e da moral, fornecendo soluções específicas em termos controversos do “Kalam” (apologia defensiva), tanto doutrinais como formais. Cada escola (madhab) determina um comportamento, uma forma de inserção na vida legal. Não obstante haja entre elas discussões ou debates, não “(...) apresentam entre si (sobretudo as três primeiras) rivalidades dilemáticas, nem conduzem os crentes a opções drasticamente forçosas (...)”(11). São todas ortodoxas e tidas como iguais dentro do sunismo, tendo os muçulmanos a opção de, numa qualquer circunstância particular, preferir uma escola distinta daquela que perfilham.

Dentro do Sunismo maioritário (cerca de 90% dos muçulmanos), o Maliquismo é a escola dominante na África do Norte e avultante na costa ocidental do Continente até ao Golfo da Guiné (os muçulmanos da Guiné-Bissau inserem-se nesta escola jurídico-religioso).

A escola Maliquita foi fundada pelo autor da obra intitulada Mowata, Mâlik ibn Annas que morreu em 795. Esta “madhab” admite as fontes tradicionais do Direito Islâmico: o Alcorão, a “Sunna” ou Tradição, o “Qiyas” ou Julgamento Analógico e o “Ijma” ou Consenso Comunitário.

O Direito Consuetudinário (Urf) desempenha, nesta escola, um papel de relevo. Justamente pelo seu peso, pode dizer-se que esta é a menos aberta ao Esforço de Exame (Ijtihad) e, portanto, a que maior impenetrabilidade oferece ao progressismo. O Maliquismo “(...) mantém a tradição, mas aceita a interpretação pessoal, a Ray (...)”(12), insistindo no recurso ao princípio da utilidade geral (Maslaha), sempre que se trata de defender a religião, a razão, a pessoa, a família ou os bens (13).

Estes princípios podem favorecer a exploração de um certo equilíbrio, determinado, “(...) quanto mais não seja pela “força da inércia” que o substrato do Urf lhe confere (...) (14). Este panorama será sempre alterável, desde que o Islão tradicional possa, nas áreas atrás referidas, sofrer convulsões marcantes provenientes dos territórios exteriores, como adiante ponderaremos, e se, em simultâneo, a situação sócio-política interna evoluir num sentido de acentuada instabilidade.

 

(1) Alcorão, s. 3, v. 110, s. 49, v. 10.

(2) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 238.

(3) Idem, “O Ocidente Africano no Contexto Islâmico Internacional”, pág. 16, em “Africana”, nº. Especial 2, Centro de Estudos Africanos da Universidade Portucalense, Porto, 1994.

(4) Idem, pág. 17.

(5) Paul Balta, “L´Islam dans le Monde”, pág. 7, Ed. La Découverte et Journal le Monde, Paris, 1986.

(6) Idem, pág. 229.

(7) Christian Coulon, “Les Musulmans et le Pouvoir en Afrique Noire”, pág. 147, Editions. Karthala, Paris, 1983.

(8) Fernando Amaro Monteiro, “O Ocidente Africano no Contexto Islâmico Internacional”, pág. 17.

(9) O desenvolvimento provoca o êxodo rural e uma intensa urbanização em sociedades, tradicionalmente agrícolas ou nómadas; tais alterações provocam a destribalização e, para Paul Balta, estas ainda “(...) confundiram a instituição familiar e provocaram uma crise, num plano duplo, sobre a sociedade e sobre o indivíduo, dado que os jovens, apanhados pela mistura, preocupam-se com o seu futuro. Face a um ocidente laico e a um mundo comunista, oficialmente ateu, o regresso à Lei Islâmica aparece a muitos como um último recurso e um refúgio (...)”. Em Paul Balta, ob. cit., pág. 23. Outro analista considera que o Islão constitui uma resposta aos problemas gerais “ (...) que se colocam à identidade africana e, em particular, às gerações mais jovens (...)”. Em Christian Coulon, ob. cit., pág. 55.

(10) Sobre este assunto podem consultar-se inúmeras publicações. Neste estudo utilizámos a bibliografia apresentada, com especial incidência para: Paul Balta, ob. cit., Suleiman Valy Mamede, “O Islão e o Direito Muçulmano”, Edições Castilho, Colecção Jurídica, Lisboa, 1993 e João Silva de Sousa, “Religião e Direito no Alcorão”, Imprensa Universitária nº55, Ed. Estampa, Lisboa, 1986. O Islamismo ortodoxo não é um bloco harmonioso. Existem certas diferenças que originaram as chamadas escolas jurídicas. O Hanafismo foi criado por Abu Hanîfa (que morreu em 767). É considerado o “rito” mais liberal. Depois do Alcorão admite o juízo pessoal, sob a forma de princípio de analogia (Qiyas). Os seus discípulos insistem num regresso aos textos e à tradição, por forma que a tradição servil (taqlid), “(...) qui conduira à la sclérose de l´école, l´emporte sur l´ijtihâd (...)”, via recomendada pelo Profeta. Em Paul Balta, ob. cit., pág. 14. Estende-se pela ex-URSS, Paquistão, Índia, China e Turquia. A escola Chafita foi fundada pelo Íman Châfei (morreu em 820). Depois do Alcorão e da Sunna, recorre ao ljma, não como consenso dos doutores, mas da comunidade inteira. O princípio da analogia só é admitido como último recurso. Rejeita a opinião pessoal e pratica o culto dos santos. Está representada na Indonésia, África Oriental e Meridional, Filipinas, Tailândia e Malásia. Ahmad ibn Hanbal (morreu em 855) fundou a escola Hanbalita (precursora do Wahhabismo). Rito “rigoroso e fanático”, mostrou-se sistematicamente oposto a qualquer inovação e tem como únicas fontes da Lei o Alcorão e a Sunna, recorrendo apenas em caso de necessidade absoluta ao juízo pessoal. Encontra-se, actualmente, reduzida a uma parte da Arábia. A corrente maioritária (cerca de 90%) dos muçulmanos ortodoxos são designados por Sunitas, por terem acrescentado às Suras corânicas, a “Sunna”, ou com maior exactidão “Sunnat-al-Nabi” (tradição do Profeta).

(11) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 89.

(12) João Silva de Sousa, ob. cit., pág. 33,.

(13) Francis Lamand, “ La Sharia ou Loi Islamique”, pág. 59, em Paul Balta, “Islam, Civilisation et Sociétés”, Ed. du Rocher, Paris, 1991.

(14) Fernando Amaro Monteiro, Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, “Linhas de Influência e de Articulação do Islão na Guiné Portuguesa, Sugestões para Apsic”, Relatório para o Ministro, Secreto, Lisboa, 16 de Junho de 1972.

 
 

 




 



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