FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA
Os movimentos independentistas,
o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

CAPÍTULO I - Os grandes poderes mundiais e a África Negra subsequente à Conferência de Berlim

1 - Os grandes poderes mundiais e a África Negra

Podemos considerar que a formação de Portugal se fundamenta num conceito de defesa e alargamento, ou melhor, no de “defender a terra e acrescentá-la”, conforme o título LXIII do livro I das Ordenações Afonsinas (1).

D. Afonso III e D. Dinis, jogando com a fronteira marítima e as novas potencialidades que ela apresentava e sugeria, “(...) consolidaram a existência do único país inteiramente atlântico da Península Ibérica, começando, a partir dessa altura, a explorar essa característica distintiva (...)” (2). Com a crise de 1383- 1385, a absorção do reino por via dinástica foi tentada por D. João I de Castela. A Nação Portuguesa reage, emergindo o Mestre de Avis que, com a batalha de Aljubarrota, em 1385, “(...) consolidou a independência do País e permitiu concretizar a sua vocação para o mar (...)”(3). Assim, pela análise dos comportamentos da época, podemos acrescentar àquele conceito inicial o “da consolidação”, face a outros reinos peninsulares (nomeadamente em relação a Castela), e que se estende de 1297 a 1385, tendo como adversário o “infiel”.

A partir do ano 1385, que marca a consolidação, entra-se numa fase de reflexão que culmina com a decisão de passar a Ceuta (1410) cuja conquista foi considerada serviço de Deus; inicia-se a “expansão” terrestre e marítima, ao longo da costa africana para o sul, rumo à Índia, para a qual se impunha uma protecção terrestre na área do “infiel”. O “gentio” não constituía ameaça, nem se projectava em termos marítimos. O Atlântico era uma “zona de comunicações”.

Pela Bula “Romanus Pontifex”, de 8 de Janeiro de 1454, o Papa Nicolau V conferiu a D. Afonso V o exclusivo das terras e mares conquistados ou a conquistar, para permitir e cobrir a acção de cruzada contra o “infiel” e a catequização do “gentio”. D. Afonso V, em 1466, concedeu o “Trato das partes da Guiné” aos habitantes de Cabo Verde e reservou para a Coroa o “Trato de Arguim”.

Portugal assinou o Tratado de Tordesilhas em 1494. Quatro anos mais tarde, descobriu-se o caminho marítimo para a Índia e, em 1500, foi oficializada a descoberta do Brasil, ficando aberta uma via marítima para todo o hemisfério das Terras de Santa Cruz até às Molucas. Graças aos novos descobrimentos e às novas navegações, “(...) o mundo conhecido ampliara-se espantosamente (...)” (4).

A acção de corso e a actuação dos calvinistas, no Brasil, forçam D. João III a reflectir e a assumir um conceito estratégico, que se traduziu na intenção de abandonar o Norte de África, de manter o possível no Oriente e exercer o esforço no Brasil(1548-1822) (5).

Em 1776, os Estados Unidos da América tornam-se independentes e, em 1789, dá-se a Revolução Francesa; factos importantes que justificam as profundas alterações da área estratégica portuguesa de então (o triângulo Portugal-Brasil-Angola). Com as campanhas napoleónicas, na Península, a Corte desloca-se, em 1807, para o Rio de Janeiro, no Brasil. D. João VI regressa a Portugal, em Agosto de 1821, e o Brasil torna-se independente a 7 de Setembro de 1822.

Uma vez apaziguados os conflitos internos entre liberais e miguelistas, Bernardo de Sá Nogueira, Marquês de Sá da Bandeira, apercebendo-se do papel que a África iria desempenhar, no futuro jogo político dos principais Estados europeus (6), decidiu exercer o esforço nesse continente. Assim, o Governo Setembrista criou, em 7 de Dezembro de 1836, três Governos Gerais para o Ultramar (7) e procurou transferir o fluxo da emigração orientado para o Brasil, para Angola, e encorajar os emigrantes descontentes, no Brasil, a passarem a Angola.

As conquistas da Guiné de Cabo Verde, nos anos 30, estendiam-se desde os 10 aos 13 graus Norte, ao longo da costa, divididas em dois distritos (ver mapa anexo I):

- Bissau, que compreendia as Praças de S. José de Bissau com as dependências do presídio de Geba, da Feitoria de Fá, das ilhas de Bolama e das Galinhas;

- Cacheu, que compreendia Ziguinchor, Cacheu, Bolor e Farim.

Supomos ser do maior interesse referir o preâmbulo do Decreto de 10 de Dezembro de 1836, elaborado pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Marquês de Sá da Bandeira, o qual abolia o tráfico da escravatura. Podemos também considerar, neste Decreto, uma orientação estratégica nacional que definia a forma portuguesa de estar, até à delimitação das fronteiras definitivas dos domínios ultramarinos em África.

“Senhora

A civilização de África tem sido nestes últimos tempos o pensamento querido dos Sábios e Filantropos, (...) que no antigo e novo Continente, marcham à testa do progresso, e promovem o melhoramento da espécie humana; em quanto Portugal que durante séculos havia trabalhado nesta grande obra, hoje em vez de a promover, lhe põe obstáculos (...).

(... ) E todavia, não há um só documento em toda a primeira época dos nossos descobrimentos, que não prove que o principal, e quasi único intuito do Governo Portuguez era a civilização dos Povos pelo meio do Evangelho (...).

(...) Promovâmos na África a Colonisação dos Europeos, o desenvolvimento da sua industria, o emprego dos seus capitaes; e n´uma curta série de annos tiraremos os grandes resultados que outr´ora obtivemos nas nossas colónias (...).

(...) Mas para isto é necessário que reformemos inteiramente as nossas leis coloniaes. (...).

(...) como possível aos Soberanos de Portugal abrir estradas para a civilisação que nehum outro pr´ncipe ousou fazer commeter.

(...)Os Seus Secretários d´ Estado tem hoje a honra de propôr no seguinte Projecto de Decreto, a inteira e completa abolição do Tráfico da Escravatura nos Domínios Portuguezes (...)” (8).

Repare-se no etnocentrismo cultural patente no documento, onde se realça a missão civilizadora da expansão portuguesa, projectando juízos de valor inerentes à cultura que se tinha por padrão. Esta situação vai repetir-se no Acto Geral da Conferência de Berlim em 1885 e, mais tarde, já no nosso século, no Pacto da Sociedade das Nações (SDN) e na Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).

O esforço em África - consolidação, pacificação, submissão e alargamento dos territórios - na Guiné, em Angola e Moçambique (9), estende-se até ao ano de 1974, findando com a apresentação do programa do MFA (Movimento das Forças Armadas). Neste período e no contexto do estudo, distinguiremos diversas situações com repercussão na soberania portuguesa.

A soberania sobre os territórios portugueses de além mar foi diversas vezes posta em causa e um dos motivos prende-se com a escravatura e o respectivo tráfico. A Inglaterra, que desde 1807 abolira o tráfico de escravos, sob o pretexto de o reprimir, e face às “(...) limitações postas pela Administração Portuguesa ao comércio regular (...)” (10), contestava para si o domínio de diversos territórios portugueses. Para se resolverem estas situações recorria-se ao uso da diplomacia e, por vezes, à ameaça ou mesmo ao uso da força. A questão de Bolama é exemplo de uma dessas soluções.

Na segunda metade do século XIX, sob pressão da opinião pública, motivada pelas explorações dos viajantes que mostraram aspectos do interior do continente, até aí geralmente ignorados, e sob o estímulo do desenvolvimento económico e das definições subsequentes ao triunfo do Liberalismo e à Revolução Industrial, o continente africano passa a representar um cenário de rivalidades e interesses das grandes potências que, “(...) exigindo espaços periféricos de recurso e de alastramento (...)” (11), formularam a expansão ultramarina como uma missão civilizadora.

A partilha do território e a consequente definição das fronteiras pelos diversos acordos e tratados foi arbitrária, de concepção europeia, sem significado para os indígenas e com “(...) consequências (positivas e negativas) inesquecíveis, em especial para as populações do continente africano. Alguns resultados ainda perduram actualmente (...)” (12). A Portugal couberam apenas os “(...) territórios e os direitos permitidos pela ambição e o equilíbrio existente nos poderes políticos europeus (...)”(13).

O termo do primeiro conflito mundial, com a derrota alemã e o diluir da respectiva expressão colonial, altera a forma da presença europeia em África. A Sociedade das Nações estabeleceu três tipos de mandatos e, no pós segunda guerra mundial, a Carta das Nações Unidas cria dois sistemas para regulamentar a situação dos territórios não autónomos.

A Conferência de Bandung, o sequente e lógico emergir do terceiro mundo, do neutralismo e do não alinhamento, aliados ao forjar progressivo de um sentimento anti-colonialista nas Nações Unidas, aceleraram as independências.

Portugal dispunha de um bem ambicionado, as suas colónias africanas: “(...) aqueles que cobiçavam esse bem não se podiam verdadeiramente entender sobre a maneira de o pilhar, e por isso, cada um deles tentava sobretudo garantir que não seriam os outros a aproveitar-se dele (...)” (14).

 

(1) “Ordenações Afonsinas” - Livro I, Título LXIII, pág. 360, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984.

(2) Jorge Borges de Macedo, “Constantes e Linhas de Força da História Diplomática Portuguesa - Estudo de Geopolítica”, em “Nação e Defesa” nº. 2, págs. 110 e 111, Estado-Maior do Exército, 1976.

(3) Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 24, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1988.

(4) Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 17, 4ª edição, Ed. Ática, Lisboa, 1971.

(5) Pedro Cardoso, “Cronologia Vocacionada para: A Evolução do Conceito Estratégico Nacional - A Evolução das Informações na Actividade do Estado - A Evolução das Crises Nacionais”, pág. 272, em “Estratégia” vol. VII, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Lisboa, 1995.

(6) Joaquim Veríssimo Serrão, “História de Portugal”, vol. VIII, 2ª Ed., pág. 124, Lisboa, 1978.

(7) O Governo de Cabo Verde, englobando o arquipélago e a parte continental ( a Guiné ); o Reino de Angola e de Benguela com os demais pontos da África Ocidental e a sul do Equador; o de Moçambique e as possessões da África Oriental; e um Governo particular abrangendo S. Tomé e Príncipe e o Forte de S. João Baptista de Ajudá.

(8) Pedro Cardoso, “O Triângulo Estratégico Português (Prospectiva)”, págs. 177 a 179, em “Estudos em Homenagem ao Professor Adriano Moreira”, vol. I, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 1995.

(9) Idem, “Cronologia Vocacionada para: A Evolução do Conceito Estratégico Nacional - A Evolução das Informações na Actividade do Estado - A Evolução das Crises Nacionais”, pág. 313.

(10) Manuel Gonçalves Martins, “ A Ambição das Potências Europeias pelo Continente Africano e o Esquartejamento do Império Português (1870-1914)”, em “Africana” nº. 10, págs. 183 e 184, Centro de Estudos Africanos, Universidade Portucalense, Porto, Março de 1992.

(11) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 211, Universidade Portucalense, Porto, 1993.

(12) Manuel Gonçalves Martins, “A Expansão da Europa e a Partilha de África (1870 - 1914)”, em “Africana” nº. 13, pág. 53, Centro de Estudos Africanos, Universidade Portucalense, Porto, Março de 1994.

(13) Idem, “ A Ambição das Potências Europeias pelo Continente Africano e o Esquartejamento do Império Português (1870-1914)”, pág. 187.

(14) José Mattoso, “História de Portugal”, pág. 144, vol. VI, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.

 
 

 




 



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