MAJOR MIGUEL GARCIA

O FENÓMENO DA GUERRA NO NOVO SÉCULO
UMA PERSPECTIVA (1)

FRANCISCO PROENÇA GARCIA

(Vice-Presidente do Centro de Investigação da Academia Militar)

MARIA FRANCISCA SARAIVA

(Vice-Presidente do Instituto Português da Conjuntura Estratégica)

Introdução

 

O fenómeno da Guerra, como observou entre muitos outros Quincy Right (1942, 1961), apresenta-se classicamente como uma manifestação da violência de grupos politicamente organizados em cada época histórica, especialmente Estados, e caracteriza-se pela utilização de Forças Armadas de uma razoável dimensão e por um período considerável de tempo (1). Desde tempos imemoriais, a guerra surge-nos retratada na literatura, na música, na pintura e nas escrituras sagradas como a Bíblia e o Alcorão.

Mais recentemente, este fenómeno, fundamentalmente determinado pela organização social e respectiva base técnica nas conjunturas históricas específicas, tem sido para os historiadores das relações internacionais o problema estruturante da organização social (2). Neste ensaio não pretendemos abordar as origens e causas da guerra (em geral e de determinadas guerras particulares), por ser uma problemática que tem merecido tratamento teórico abundante e sistemático. Neste momento histórico afigura-se-nos mais interessante tão somente traçar o desenvolvimento das guerras actuais e identificar possíveis padrões de evolução. Por forma a responder a este desafio articulámos o trabalho em três partes distintas mas interrelacionadas. Na primeira parte é traçada uma visão do actual sistema internacional e a sua evolução recente. Esta análise permite-nos, desde logo, verificar o quão profunda tem sido a evolução do fenómeno guerra. De facto, evoluiu-se de um modelo trinitário clausewitziano para um modelo de guerra irregular, global, assimétrica e permanente, sem uma origem clara e que pode surgir em qualquer lugar.

Na segunda parte tentamos caracterizar o processo de transformação da defesa e as guerras da era da informação. Aqui o cenário dominante é o da alta tecnologia, do espectáculo mediático e das baixas zero. Por fim, elaboramos uma abordagem da violência global permanente num cenário de cariz subversivo, onde os principais actores já não são os Estados e onde as principais vítimas são as pessoas.

 
1. O sistema Internacional no início do novo século
 
O fim da II Guerra Mundial foi marcado pela rivalidade do mundo em equilíbrio bipolar. Estas tensões entre os grandes poderes no campo económico, ideológico e político, traduziu-se na utilização preferencial da força militar como instrumento de dissuasão. O período é caracterizado pelos inúmeros conflitos nas zonas de confluência dos interesses das grandes potências, que se enfrentavam por locução interposta.

A conjuntura internacional sofreu profundas alterações após a queda do muro de Berlim. A ameaça, que mantinha coordenadas de espaço e de tempo bem definidas desapareceu, dando lugar a um período de anormal instabilidade, com uma ampla série de riscos e perigos, uns novos, outros antigos que apenas subiram na hierarquia das preocupações dos Estados. Geopoliticamente falando, o mundo ficou privado de sentido (Laidi, 1998).

A comunidade internacional, habituada a um equilíbrio pelo terror do holocausto nuclear, foi forçada a reconhecer que para além do Estado existiam outros actores que empregavam a força como instrumento nas Relações Internacionais, situação que apesar de não ser nova influenciaria decisivamente a natureza da guerra na última década do século XX (3).

O dealbar deste terceiro milénio continua cheio de incertezas. Num mundo hoje marcado pela volatilidade identitária (Badie, 2001), as zonas de interesse estratégico fundamentais alteraram-se, e passaram a ser aquelas que são capazes de exportar a sua própria instabilidade (Ramonet, 2001). As guerras já não obedecem à concepção clausewitziana de matriz trinitária (Estado, Forças Armadas, População), típica do anterior sistema internacional. Hoje a violência global é assimétrica e permanente, não tem uma origem clara e pode surgir em qualquer lugar. Para muitos, trata-se de uma situação típica do mundo tendencialmente unipolar do ponto de vista do esforço militar.

A actual conjuntura internacional, onde o papel do Estado soberano está em crise, também se caracteriza pela flexibilização do conceito de fronteira e pela aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada.

Como se referiu, no imaginário ocidental, quando se pensa ou fala em guerra, normalmente a imagem associada é a da confrontação entre as Forças Armadas organizadas de dois ou mais Estados. Porém, os Estados como forma de organização política ocidental são criações artificiais recentes (Creveld, 1991) que surgem após Westfalia, pelo que a guerra como instrumento da política do Estado que opunha um Estado a outro e umas Forças Armadas a outras Forças Armadas constitui um fenómeno relativamente recente e que poderá ter tendência a desaparecer.

As guerras contemporâneas, acentuadamente depois de 1945, tornaram-se assim cada vez menos entre Estados (4) e passaram a contemplar outros actores (5), infra-estatais, verificando-se uma extrema plasticidade dos seus actuantes, assemelhando-se muitas vezes a uma luta pela sobrevivência, sem regras, sem objectivos claramente definidos, podemos mesmo dizer, totalmente irracional, caótica, poluída, penetrada pelo crime organizado, pelo terrorismo e pelo tribalismo (Bauer e Raufer, 2003). Igualmente relevante, o aparecimento de entidades supra-estatais institucionalizadas capazes de executar acções militares conjuntas é um fenómeno que exige acompanhamento.

Neste sentido, a hipótese de se assistir ao regresso do mundo ocidental ao passado pré-Westfaliano parece ganhar corpo. No caso dos países menos desenvolvidos, onde são inúmeros os Estados que jamais foram capazes de se afirmarem face a outras entidades sociais (nomeadamente em relação à tribo e aos grupos etnolinguísticos) (6), tem-se observado que no decorrer de confrontações violentas a distinção entre governo, Forças Armadas e população começou a esbater-se antes mesmo de ter sido correctamente estabelecida (Creveld, 1991 e Olsen, 2003)

Uma das perguntas a que interessa responder tem que ver com as modalidades de guerra que tenderão a prevalecer, e qual o posicionamento da entidade Estado como estrutura política nesse contexto específico.

Muitos são os modelos possíveis. Na história existiram as estruturas tribais, as estruturas feudais, as associações religiosas, os bandos de mercenários ao serviço de senhores da guerra, e mesmo organizações comerciais. Muitas destas entidades não eram sequer políticas nem detentoras de soberania. Não possuíam governo, Forças Armadas nem população (em sentido actual do termo), mas defrontavam-se em guerras e campanhas bem organizadas (Creveld, 1991).

O futuro pode-se revelar muito diferente da realidade de hoje. O processo que está em curso será progressivo, irregular e caótico (Creveld, 1991), pois o falhanço do Estado favorece o crescimento da violência internacional não-estatal (Berzins e Cullen, 2003), em casos extremos, privatizada (Kaldor, 2001). A tendência aponta para que as guerras persistam entre Estados pequenos e fracos (em termos de legitimidade e de eficácia) ou em países menos desenvolvidos do que envolvendo as grandes potências (Holsti, 1996) (7), eventualmente com base em considerações étnicas e de identidade.

Embora nos pareça razoável defender esta interpretação, é muito claro que esta visão da guerra do futuro não colhe a aceitação generalizada dos estudiosos da Estratégia. Como visão divergente, é útil realçar a posição de Colin Gray (1999). Este autor, dentro da lógica do neorealismo clássico a que diz pertencer, defende que a trindade clausewitziana veio para ficar. Para Gray, é errado admitir um desaparecimento, no futuro próximo, das guerras regulares centradas nos Estados e que foram típicas do período Westefaliano, embora admita que presentemente há uma tendência importante no sentido da utilização de forças irregulares.

(1) A ideia de que existe um determinado conjunto de tipologias de utilizações da força armada que não corresponde ao conceito de guerra aparece muito claramente no sistema de regulação arquitectado pelo Direito Internacional e que se encontra expresso na Carta das Nações Unidas. Esta concepção jurídica da guerra enfrenta hoje os enormes desafios das práticas estratégicas que tendem a diluir as fronteiras conceptuais tradicionais. O presente trabalho procura justamente trazer o assunto à reflexão colectiva.

(2) A Teoria das Relações Internacionais nasce como disciplina autónoma dedicada ao estudo da política internacional em 1919, na Universidade de Gales. Contudo, as condições para a sua afirmação disciplinar só seriam encontradas nos anos que se seguiram à II Guerra, fundamentalmente no seio do ambiente académico americano

(3) A perda do monopólio do emprego da violência legítima por parte do Estado já não é uma novidade histórica. Ao admitirmos este facto colocamos as nossas referências em causa, mas, através do fundamental estudo da História Militar, verificamos que, por exemplo, no século XIX havia actores não estatais (partidos, combatentes irregulares, nações reivindicadoras de espaços de identidade) que utilizaram a violência na cena internacional. Porém as teorias militares clássicas não os consideravam como actores, mas sim como elementos com práticas desviantes, perturbadores da ordem estabelecida através das suas “espécies de guerra”, na classificação de Jomini. O General Jomini classificava as guerras como de conveniência, com ou sem aliados, de intervenção, de invasão, de opinião, nacionais, civis e de religião e as guerras duplas. (JOMINI 1938).

(4) Kalevi Holsti na sua obra, The State, war, and the State of War, é esclarecedor. Os seus dados estatísticos referem-se ao número de Estados e a respectiva percentagem, que se envolveram em conflitos inter-estatais de 1715 e 1995. A tabela que construiu indica uma média de 0,005 conflitos entre Estados de 1945 a 1995, em contraste com 0.019 por Estado e anualmente nos Estados europeus no século XVIII, º0.014 no século XIX e 0,036 entre 1919 e 1939. De salientar que após 1945 não se registou nenhuma guerra entre as grandes potências (Kalevi Holsti. The State, War, and the State of Wa . Cambridge : Cambridge University Press, 1996, p. 23). Michael O´Hanlon considera mesmo que as guerras entre Estados se encontram em vias de extinção (Michael O'Hanlon, Coming Conflicts,Interstate War in the Next Milenium, Harvard International Review , Summer 2001.

(5) Já Van der Goltz, na obra Das Wolk in Waffen de 1883 , previa que no futuro as guerras não seriam um assunto exclusivo das Forças Armadas.

(6) Trata-se aqui de distinguir a soberania externa (que decorre da igualdade jurídica entre Estados) das condições para exercício da soberania interna, adentro das fronteiras políticas. Este último requisito tem sido estudado com grande interesse pelas correntes que defendem a via da ingerência humanitária.

(7) A teoria da paz democrática tem vindo a defender a existência de uma “lei” essencial na política internacional. Estudos empíricos validaram a ideia de que as democracias não fazem a guerra entre si, explicando-se assim a receptividade que esta corrente de investigação tem recebido nos meios académicos da especialidade.