SUBSÍDIOS PARA O
ESTUDO CIENTÍFICO DA GUERRA (1)


Maria Francisca Saraiva, Assistente no ISCSP
Francisco Proença Garcia, Major de Infantaria

 

Nota Introdutória

 

A guerra é de longe a mais destrutiva de todas as actividades humanas.

Difícil de analisar, desde a Antiguidade que filósofos, teólogos, biólogos, matemáticos e politólogos abordam a guerra nas suas múltiplas expressões. Nem sempre satisfatórios, os resultados confirmam que existem hoje razões muito sérias para continuarmos a tentar perceber os seus contornos exactos.

O primeiro passo parece aconselhar-nos a assumir que não há fenómeno social cujas causas sejam simples ou lineares. Têm por isso mérito os filósofos, historiadores e especialistas em relações internacionais que desde pelo menos o século XVIII procuram persistentemente compreender as “causas da guerras” que opõem tantas vezes os Estados (1).

Já a evidência de que é necessário construir metodologias sistemáticas de base quantitativa na análise da guerra é algo muito mais recente. Por razões que têm muito que ver com as duas Grandes Guerras do século XX, as Ciências Sociais interessaram-se, nos últimos 40 anos, por conquistar um espaço difícil: o estudo científico da guerra segundo critérios aceites pelas Ciências Naturais.

Trataremos, pois, nesta pequena reflexão, de sistematizar a evolução deste interessante campo do saber que traduz o empenhamento de todos aqueles que desejam entender os meandros da guerra e criar condições à consolidação da paz.

Não poderíamos fechar esta secção sem antes realçar que os estudos da guerra têm um peso relativo na análise da violência global, uma vez que a guerra é apenas uma parcela no quadro das manifestações de violência que têm assolado o mundo.

1. O Despertar dos Estudos Quantitativos da Guerra

A vontade de estudar de forma mais sistemática e “científica” as causas da guerra e da violência, bem como as condições da paz e as possíveis relações entre eles tem-se tradicionalmente desenvolvido no seio da Peace Research. Integrando-se com naturalidade nas Ciências Sociais estes estudos assumem uma abordagem claramente multidisciplinar (2). No que respeita aos seus primórdios, nos anos 60, talvez por reacção contra as correntes que entendiam as Ciências Sociais como estudos de pouco rigor científico, os investigadores da paz adoptaram uma metodologia marcadamente positivista, behaviorista e quantitativa (muito em voga na Teoria das Relações Internacionais da altura) no estudo do conflito e da violência. Hoje, como adiante veremos, há já sinais prenunciadores de uma mudança de atitude no sentido da assimilação de outras metodologias (3).

Na comunidade da Peace Research a necessidade de apurar as causas das guerras teve desde sempre uma ligação estreita ao posicionamento normativo dos investigadores: o desejo de, num futuro próximo, diminuir a frequência do fenómeno é muito forte.

Assim - e este traço é complementar do primeiro - abandona-se a via tradicional de especulação sobre o tema da guerra, a que se seguia normalmente um estudo detalhado de guerras particulares. De facto, no passado as teorias sobre as causas não procuravam a validação empírica, o que não torna totalmente impossível levantar algumas interrogações quanto ao seu poder explicativo.

De concreto, podemos dizer que, diferentemente desta visão clássica, as análises quantitativas, de cariz indutivo, divergem no que respeita às assunções empíricas e epistémicas. O princípio de que o sistema global e os grupos sociais que dele fazem parte actuam segundo padrões regulares e relativamente recorrentes não sofre contestação entre os investigadores. Mas, acrescente-se, estas regularidades não têm natureza determinística, uma vez que estas leis traduzem distribuições estatísticas no domínio das probabilidades (4).

É preciso acentuar que o objectivo último destas análises passa por construir uma teoria geral da guerra, generalizável através da comparação de um elevado número de guerras a fim de perceber o que têm em comum. É de reconhecer que ainda estamos, no momento presente, muito longe de uma teoria científica geral da guerra, mas que já se coligiram dados suficientes podendo extrair-se algumas conclusões, ainda que provisórias. Este balanço acontecerá mais à frente na nossa exposição. De momento, interessa tomar contacto com algumas dificuldades metodológicas associadas aos estudos científicos da guerra.

Desde logo, os trabalhos desenvolvidos no âmbito da Peace Research não podiam ignorar dois importantes problemas teóricos que se colocavam à sua agenda de trabalho: primeiramente, antes mesmo de se operacionalizar o conceito de guerra, é necessário esclarecer o que se procura apurar com as “causas da guerra”. Em segundo lugar, quanto à tipificação da guerra a questão ainda hoje se mantém viva entre os estudiosos da violência, estando permanentemente em aberto os seus contornos.

No que concerne a primeira questão estamos, acompanhando em absoluto o raciocínio de Hidemi Suganami (2001), diante de três questões substancialmente diferentes:

•  Por um lado, pode ser nossa intenção elencar as causas que têm que estar presentes para as guerras ocorrerem;

•  Em alternativa, pode ser útil apurar em que circunstâncias as guerras ocorrem mais frequentemente;

•  Finalmente, o nosso objectivo pode passar por compreender como surgiu uma determinada guerra em particular (5).

O primeiro ponto remete para as condições necessárias da guerra (genericamente as “causas da guerra”). No segundo caso o estudo visa as correlações da guerra, as “causas das guerras”. Finalmente, existe a possibilidade de a análise se centrar exclusivamente numa guerra particular: neste caso o que essencialmente procuramos é, de facto, a sequência total de eventos que levam à eclosão dessa mesma guerra.

As “causas da guerra” e as “causas das guerras” são matérias distintas mas não matérias independentes. Deste modo, para se apreciarem convenientemente as causas deste fenómeno – entenda-se as “causas da guerra” - é necessário estudar o maior número possível de guerras (6). Será eventualmente de esperar um número relativamente reduzido de causas comuns num elevado número de ocorrências. A tradição do estudo científico da guerra conhece muito bem esta realidade.

Pode dizer-se que os estudos quantitativos da guerra presumem que as causas das guerras, ou pelo menos no caso das mais importantes, tem uma associação estatística com a ocorrência da guerra. Assim, o objectivo não é outro senão a observação de um número alargado de guerras para identificar as condições associadas à guerra como fenómeno social geral (7), procurando definir um padrão.

Outra questão, mais difícil, é estabelecer uma relação de causa e efeito: o que é certo é que uma mera correlação estatística não é suficiente para estabelecer essa relação. Muito mais importante que este aspecto, convém realçar que estes estudos sobre a guerra têm uma dimensão mais profunda, na medida em que valorizam a descoberta de factores que promovam a paz.

Passando para a segunda questão, convirá porventura recordar as dificuldades, que não são de hoje, em torno do que se entende por guerra. Na acepção mais tradicional alguns aspectos contribuem para singularizar determinadas manifestações de violência como guerra, nomeadamente: o facto de ser um conflito travado entre grupos políticos, especialmente Estados soberanos; em segundo lugar, o recorrer a forças armadas e, como último elemento, a sua considerável magnitude e considerável período de tempo em que se desenvolve (8).

Tal como foi enunciada, a caracterização westefaliana de guerra tem hoje duvidosa operacionalidade, senão em todos os lugares pelo menos em determinadas zonas do mundo e tempos históricos. Mas, muito longe da importância da sua caracterização ter decrescido, é candente compreender os problemas a resolver.

Primeiro há, como se disse atrás, que realçar que a violência global extravasa em muito o fenómeno da guerra na acepção explanada, encontrando-se num processo de franca difusão no planeta. Por isso, há lugar para reequacionar o limiar da guerra, barreira que a separa de outras manifestações políticas de violência, uma vez que parecem existir novas tipificações de guerra que importa considerar e que apontam para uma dissolução da distinção forças armadas/ população civil, guerra/ crime internacional/terrorismo e ainda a aparente desvinculação estatal e desterritorialização da luta (9). Não nos restam dúvidas que nos próximos anos este será certamente um dos desafios mais interessantes para a Peace Research .

Apesar do estudo da guerra pelo método científico ter quase 50 anos, temos que procurar as raízes desta tradição científica apontando os precursores: no século XIX é de realçar Jean de Bloch (1899) (10) e, já na primeira metade do século XX, Pitirim Sorokim (1937) (11), Lewis Richardson (1939) (12) e Quincy Wright (1942, actualizado em 1965).

De facto, deve-se a um professor de Direito Internacional, Quincy Wright, nos EUA, e a Lewis Fry Richardson, um meteorologista e pacifista no RU, o lançamento, sem conhecimento mútuo, das bases quantitativas para o estudo da guerra. Estávamos em plena década de 30.

Wright ficou na história pelo facto de ter chamado a atenção para o facto da guerra ter causas múltiplas. Apontou 4 factores que estão na sua origem: tecnologia militar; direito, especialmente em relação à guerra; organização social e política e finalmente os valores culturais (13).

Richardson, por seu lado, preocupava-se com a ausência de rigor na delimitação e caracterização do universo de análise nos estudos de caso históricos. Nesse sentido, via toda a necessidade de operacionalizar correctamente conceitos. Em 1960, na sua obra Arms and Insecurity estudou pela primeira vez a dinâmica da corrida aos armamentos em linguagem matemática, ou seja, recorrendo a um método empírico. No Statistics of Deadly Quarrels, do mesmo ano, tentou pela primeira vez identificar as correlações estatísticas da guerra. As suas descobertas não esclarecem totalmente os padrões da guerra mas permitiram acreditar que a matemática e estatística podem ser trazidas para o estudo destes assuntos. Refira-se que quase nenhum dos seus estudos foram aceites para publicação em vida.

Estes estudos ajudaram a efectuar a transição das análises descritivas (Howard, 1976) para o movimento de investigação científica da paz, marcado pela análise quantitativa da obra de David Singer (1968) Quantitative International Politics: Insights and Evidence (14).

 
 

(1) Sobre o assunto, ver Kalevi J. Holsti, The State, War, And The State of War. Cambridge: Cambridge University Press (Cambridge Studies in International Relations: 51), 1996.

(2) Hoje a Peace Research adopta uma agenda muito mais alargada, interessando-se por todas as formas de violência e injustiça, a temática do desarmamento nuclear e alternativas ao modelo estratégico da dissuasão nuclear.

(3) Consultar Marc A. Genest, Conflict and Cooperation: Evolving Theories of International Relations. Forworth: Harcourt Brace College Publishers, 1996, p.545 e seguintes.

(4) Ver John A. Vasquez, What do We Know About War?. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2000, p.12.

(5) Hidemi Suganami, On The Causes of War. 1 st ed. rep. Oxford: Oxford University Press/Clarendon, 2001, p.6

(6) Idem, ibidem, p.3.

(7) Ver John Vasquez, "Introduction Studying War Scientifically". In John A Vasquez e Marie T. Henehan, The Scientific Study of Peace and War: A Text Reader, 2nd ed. Lanham, Maryland: Lexington Books, 1999 , p. xxi.

(8) Quincy Wright, The Study of War .Chicago: University of Chicago Press, (1942) 1965.

(9) Por exemplo, parece não ser teoricamente impossível que no futuro agressões cometidas por grupos políticos pertencentes a determinados Estados sejam perpetradas no território de Estados contíguos.

(10) Economista polaco. Faz a história da guerra quantitativa ao longo de vários séculos em 6 volumes. Ver Jean de Bloch, The Future of War. Boston: Ginn, 1903 .

(11) As análises de Pitrim Sorokin, sociólogo russo, assumem um carácter muito mais sociológico e cultural.

(12) Lewis Richardson, “Generalized Foreign Policies”. British Journal of Psychology Monographs Supplement . 23, 1939.

(13) James E. Dougherty e Robert L. Pfaltzgraff, Contending Theories of International Relations: A Comprehensive Survey . New York: Longman, 2001, p.283.

(14) David Singer, Quantitative International Politics: Insights and Evidence, New York: The Free Press, 1968.