SUBSÍDIOS PARA O
ESTUDO CIENTÍFICO DA GUERRA (3)


Maria Francisca Saraiva, Assistente no ISCSP
Francisco Proença Garcia, Major de Infantaria

 

3. Tendências de Futuro

A última das questões que desejamos abordar nesta pequena análise diz respeito às tendências recentes nos estudos quantitativos da guerra.

Provavelmente é importante dizer, em primeiro lugar, que ocorreu um relativo abandono da preocupação com o estudo dos grandes poderes, paralelamente a um acréscimo de interesse pelas explicações ao nível da interacção entre dois actores políticos, os Estados (1), a que corresponde um menor ênfase no nível da análise sistémica, acompanhando de forma natural a crescente complexificação das teorias do conflito internacional. Inegável é, sem dúvida, o interesse que nos últimos 20 anos as variáveis societais tem suscitado. No fundo, um regresso, em nosso entender, ao francês Gaston Bouthoul, que na década de 30 do século XX divulgou o termo polemologia, ou seja, o estudo sistemático da guerra como fenómeno social (2).

Recentemente formou-se um razoável consenso no sentido de se acrescentar aos estudos de correlação entre variáveis modelos teóricos de explicação da guerra.

Nesta fase da investigação científica sobre a guerra tem-se procurado demonstrar, através de metodologias qualitativas e quantitativas, que a guerra é um processo complexo, tendo provavelmente causas múltiplas que se relacionam e condicionam mutuamente de forma dinâmica. Neste âmbito, as discussões em torno do nível (de análise) mais adequado para proceder aos estudos deixou de fazer sentido: as teorias são interactivas e multi-níveis. O resultado destas sinergias tem sido a elaboração de pesquisas sobre a guerra com recurso a multi-métodos, associando estudos de caso com análises estatísticas, por exemplo.

Tem igualmente vingado a ideia de que os condicionalismos internos não devem ser excluídos das relações a estudar. É a teoria da paz democrática (3) que melhor mostra a importância destes factores relacionados com os aspectos internos dos países, um exemplo claro de teoria madura, na perspectiva de Midlarsky (4). De acordo com esta teoria, a ausência de governos democráticos aumenta a possibilidade de guerra entre pares de Estados. Mais nebulosa é a questão de se saber se as democracias têm a mesma propensão para entrar em guerra contra Estados não democráticos que os Estados não democráticos entre si. Com o objectivo de esclarecer este aspecto, as investigações prosseguem.

Pode concluir-se que o estudo do fenómeno da violência global (que é permanente) através de aproximações quantitativas continua a ser profusamente utilizado, nomeadamente para facilitar a construção de cenários. Recentemente, a constatação das tendências negativas associadas à eclosão de guerras civis, frequentemente internacionalizadas, exigiu a construção de novas bases de dados que incluem grupos comunais e outros actores não territoriais, a par das listagens tradicionais de Estados.

Porém, não devemos esquecer que as aproximações de cariz societal fornecem outros elementos de análise fundamentais para as operações militares em ambientes operacionais predominantemente subversivos, de guerra irregular. Nestas operações é imperioso efectuar-se um estudo do terreno humano e compreender qual o impacto que a actividade militar tem nas sociedades locais.

Pode dizer-se que nem todas as vertentes referidas nesta reflexão se traduziram necessariamente em resultados concretos, mas o interesse é realçar como é que praticamente todos eles estiveram presentes nos debates que animaram as investigações nos últimos anos.

Concluindo, por tudo o que mencionámos ao longo deste estudo, fica claro que o exame da guerra é um exercício fundamental para as sociedades contemporâneas. Em especial, parece-nos que as novas realidades estratégicas não devem ser esquecidas ou desprezadas pelos investigadores constituindo um importante desafio intelectual para o futuro deste ramo do saber. Constatamos, pois, com agrado que parecem existir boas condições para a adaptação progressiva da Peace Research às novas tipologias da guerra. Na mesma linha de raciocínio pensamos que, em Portugal, o acompanhamento deste tipo de estudos é cada vez mais uma necessidade, tanto no meio militar como académico.

 

(1) O interesse dos pares de Estados prende-se com as investigações relacionadas com a paridade de poder ou com a preponderância de poder, muitas vezes localizadas no nível sistémico (balança de poderes e teorias de transição de poder), quando a questão é essencialmente um fenómeno de pares de Estados. Por outro lado, existem cada vez mais mecanismos de negociação internacional, o que poderá levar a que a guerra seja apenas um assunto relevante na análise de pares de Estados. Acresce que as principais descobertas da pesquisa empírica sistémica se situarem pouco no nível sistémico e mais frequentemente no nível dos pares de Estados.

(2) O vocábulo foi pela primeira vez utilizado por Gaston Bouthoul, em França, no ano de 1936, num livro denominado 100 Milhões de Mortos. Bouthoul liga as causas da guerra essencialmente ao aumento demográfico, resultante da revolução científica e industrial. A sua obra mais conhecida é Traité de Polemologie: Sociologies des Guerres. 5 e ed. Paris: Payot, 1991.

(3) A lei probabilística associada à paz democrática indica que a probabilidade de pares de Estados democráticos fazerem a guerra entre si é baixa.

(4) A teoria da transição de poder é a outra apontada por Midlarsky. Ver Midlarsky, “Mature Theories, Second-Order Properties, and Other Matters”. In Jonh A. Vaquez, What do We Know About War?. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2000.

 

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