DISCURSO DE CORVO

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INSERT 4. Encontro do Conselheiro Acácio e do primo Brasílio. Conselheiro de guarda-sol aberto.

Conselheiro Acácio - Exmº Senhor Basílio de Brito, é um júbilo vê-lo!

Primo Brasílio - Conselheiro Acácio, rejubiloso fico eu também! Ora quem diria! O grande talento nacional, o nosso ilustre orador, o nosso célebre Conselheiro Acácio!

Conselheiro Acácio - Não me faça V.Exª corar, a mim, um indigno servidor da Nação... Humílimo servo do bem público... Mas eu já sabia que V.Exª estava em Lisboa, li-o nas interessantes notícias do jornal da Politécnica! E então como decorreu a vida, lá pelo Brasil?

Primo Brasílio - Sobrevivi, eis-me viril, saudável, forte...

Conselheiro Acácio - A vida é um bem inestimável. Sobretudo nesta era de grande prosperidade pública! E que diz V.Exª ao progresso nacional e científico depois de tão larga ausência?

Primo Brasílio - Mas porque é que os ingleses não tomam conta disto tudo?

Conselheiro Acácio - Exª! Exª! Estamos numa era de grande prosperidade pública!

Primo Brasílio - Desde que cheguei a Lisboa que a minha oração é esta: Meu Deus, manda-lhe outra vez o terramoto!

Conselheiro Acácio - Exª! Exª! Estamos numa era de grande prosperidade pública!

Primo Brasílio - E não há meio de o terramoto chegar!...

Conselheiro Acácio - Senhor Basílio de Brito, ainda alguém há-de pensar que V.Exª não é patriota, português, ilustre descendente do nosso infinito Viriato! Portugal atravessa uma era de grande prosperidade pública!

Primo Brasílio - Meu Deus, manda-lhe outra vez o terramoto!

...

Andrade Corvo - Senhores! antes de concluir pesa-me ter de memorar perdas dolorosas, que nestes últimos anos têm afligido a Escola Politécnica.

Devemos contar entre elas, e ter por uma das mais lamentáveis, a do marquês de Sá da Bandeira. As altas qualidades de espírito, as virtudes cívicas, o amor à liberdade, a constante dedicação que sempre aos progressos da civilização, nas suas mais puras e mais belas manifestações - a emancipação dos escravos e a instrução dos homens livres - seriam razões mais que sobradas para a saudade e gratidão dos que cultivam as ciências. Para nós, acresce a tantas mais uma razão. Foi o marquês de Sá da Bandeira que, sendo ministro em 1837, instituiu a Escola Politécnica. E não é esta a menor alegria da sua longa e honrada carreira pública.

Pela morte do sábio, do prestante, do virtuoso general Filipe Folque, antigo lente da Escola Politécnica, e uma das suas glórias, sofremos todos, os lentes da Escola, e pricipalmente os que tivemos a felicidade de o ter por mestre e amigo, doloroso golpe. Suavizando, com limpidez da sua palavra e a inalterável bondade do seu carácter, as asperezas do estudo dos seus discípulos, Filipe Folque aliava à gravidade do saber e à amenidade do talento o raro dom de se insinuar no coração dos que lhe escutavam as lições, ao passo que lhes penetrava o espírito com a lucidez da sua doutrina.

Depois de ilustrar por largos anos o ensino público, o insigne astrónomo dedicou os últimos tempos da sua laboriosa vida à grande tarefa, que fora sempre uma das ocupações mais dilectas da sua inteligência: ao estudo, direcção e superintendência dos trabalhos geodésicos e geográficos do país. Colheu-o a morte, quando a sua obra estava já tão adiantada, que ninguém lhe poderá contestar nunca toda a glória dela.

A morte veio, nos últimos tempos, roubar à Escola dois professores, que a honravam pela sua inteligência, e a ilustravam pelo seu saber: Fradesso da Silveira e Mariano Ghira.

Joaquim Henriques Fradesso da Silveira entrou para o corpo docente da Escola Politécnica logo que terminados os seus estudos como seu aluno. Seus primeiros passos na árdua carreira de professor foram brilhantes, e alcançaram-lhe o sufrágio e a simpatia de colegas e discípulos. Mas um espírito impelido sempre por inquieto desejo de actividade, uma incansável energia em busca sempre de novos empreendimentos a realizar, afastaram-no por muitos anos da Escola Politécnica. Não foi estéril essa longa peregrinação.

Entre outros, prestou Fradesso da Silveira ao país o assinalado serviço de organizar, propagar e implantar em Portugal o sistema métrico de pesos e medidas. Cansado de vida tão laboriosa e tão cortada de incidentes, como a que levara durante a ausência da Escola, sentindo em si uma vaga saudade das serenas glórias, das plácidas alegrias de seus primeiros anos de vida pública, Fradesso da Silveira solicitou e conseguiu tornar a entrar no corpo catedrático. Aquela saudade era talvez o melancólico pressentimento da morte que se lhe acercava, fatal e inexorável. Poucos anos viveu entre nós o dedicado professor.

Enviado como emissário do governo à exposição de Viena de Áustria, Fradesso da Silveira, mais cuidadoso dos seus deveres que da própria vida, deu-se a trabalhos que rapidamente e profundamente lhe deterioraram a saúde. De volta à pátria, a sua existência não foi mais do que longa e dolorosa agonia, a que pôs termo a morte prematura.

Frase clara e correcta; sobriedade na palavra; método e simplicidade na exposição dos teoremas; rigorosa exactidão nas demonstrações; dedução sempre lógica, e sem obscuridades: eram qualidades que distinguiam Marianno Ghira, e que lhe granjearam uma consideração, que ele, pelos dotes do seu carácter, nunca desmereceu. A sua morte foi uma lamentável perda para o ensino, e para os seus colegas, que apreciávamos as suas altas qualidades.

Senhores! A Escola Politécnica conta já quarenta anos de existência. Nasceu com as instituições que asseguraram à nação a liberdade. Representante da ideia nova, em oposição às velhas tradições, que tendiam a imobilizar o ensino público, assim como imobilizavam todas as instituições sociais e políticas: consequência remota, mas necessária, da famosa reforma dos estudos do Marquês de Pombal, que abrira as portas das aulas e academias às ciências naturais, às ciências de observação, e com estas à filosofia moderna; complemento dessa reforma, que tão longa e violenta opugnação encontrou no espírito monacal e absolutista, que dominava em tudo: a Escola Politécnica, nos seus primórdios, não se encontrou desassombrada de malévolas resistências; não teve, nos seus primeiros anos, o propício acolhimento, que deveria encontrar, em época de renovação social, nos homens e nas corporações científicas: um funesto acidente, o incêndio do edifício onde fora alojada, veio ameaçar-lhe também a existência, despojando-a das poucas riquezas científicas que possuía então. Tudo passou. Esqueceu tudo.

Hoje a Escola Politécnica - logo que dos poderes públicos receba o favor de que precisa e que solicita, para assegurar a conservação e aperfeiçoamento dos seus numerosos e importantes estabelecimentos, e para facilitar e melhorar os estudos aos seus aluno - pode considerar-se uma instituição completa e harmónica em todas as suas partes; numa instituição com todas as condições necessárias, para satisfazer completamente o fim para que foi criada. Creio podê-lo afirmar. Mas, por isso mesmo, senhores, é maior a responsabilidade de nós todos: professores e alunos.

A ciência, senhores, é a luz esplendíssima, que envolve o século XIX em suas puras e cintilantes irradiações. Os vindouros talvez o acusem de crimes, talvez o tenham por um século que não soube cumprir, nem respeitar os grandes princípios que o eterno legislador gravou na consciência humana, para assegurar a harmonia social e a paz entre os povos; mas, da memória dos futuros séculos, não poderá apagar-se o grande facto que sempre honrará e absolverá de todos os seus erros o século XIX: o muito que este século tem feito para o progresso da ciência; o muito que a ciência tem feito para o progresso da humanidade.

...
(Palmas. O Rei levanta-se e toma a palavra)