RETÓRICA E RACIONALIDADE CIENTÍFICA
ANNA CAROLINA K.P. REGNER*:
QUANDO A HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA SE ENCONTRAM


O que é a racionalidade da ciência?1 Tradicionalmente, o significado de “racionalidade” é associado à nossa capacidade de discernir propriedades, estabelecer relações e construir argumentos para apresentar e defender nossas crenças, exibindo uma dupla e mutuamente relacionada dimensão. De um lado, é o exercício de uma faculdade cognitiva – chamemo-la “razão”. De outro, é o resultado da ação da “razão” e torna-se a propriedade que perpassa os produtos dessa “faculdade”. Entre os produtos dessa atividade, encontra-se a geração dos próprios princípios e critérios que a regulam, bem como regulam a produção e a avaliação de conhecimento confiável e objetivamente válido (seja enquanto solidamente fundado, seja enquanto crítico-falível). Chamemos os produtos dessa atividade de “razões”. Estaria essa visão tradicional da “racionalidade científica” preparada para dar conta da nova pauta de questões levantadas pelas análises mais recentes da ciência? Estaria essa visão assentada em bases suficientemente claras a bem de produzir os critérios demarcadores que pretende oferecer? Que conseqüências decorrem da suficiência ou não das bases em que se assenta a visão tradicional de “racionalidade científica” para a solidez dos princípios e critérios que estabelece? De que modo a história e a filosofia da ciência se encontram para nos auxiliarem a responder a essas questões?

Presentemente, uma extensa literatura tem direta ou indiretamente respondido a nossa primeira questão, ao examinar as condições que determinam ou tornam possível a ciência hoje, à luz das novas abordagens tecnológicas, dos novos contornos disciplinares e interdisciplinares e das materialidades do fazer ciência2. As reflexões que então se impõem pedem um novo entendimento de conceitos tais como “teoria”, “experiência”, “evidência”, “faculdade cognitiva”, “sujeito” e “objeto”, demandam discussões sobre o caráter institucional, cultural e político do empreendimento científico, rompendo com nosso modo tradicional de pensar a ciência. O conceito de faculdade cognitiva sofre alterações para compreender os diversificados elementos que compõem as redes interativas de acesso ou, antes, de construção do objeto a ser conhecido. Alteram-se os conceitos de “sujeito conhecedor” e de “objeto conhecido”, na condição de pontos constituídos e situados nessa rede. Altera-se a visão do processo cognitivo face aos impactos da informática e dos demais recursos tecnológicos na produção e comunicação científica. E o que serão “razões”, enquanto fatores reconhecidos ou produzidos em meio a esse processo para dar sustentação às nossas alegações, pretensões, decisões, ações ou resultados alcançados em “nossa” atividade? E como a sabemos “nossa”?

A depreender-se das novas demandas de análise, suspeita-se que haja um desajuste entre a visão tradicional de “racionalidade científica” e a nova pauta de questões que lhe caberia propor. Diante desse quadro de mudanças, desaparece uma alegada compreensão tácita do que seja a “racionalidade científica” e somos inclinados a uma resposta negativa à nossa primeira questão: a visão tradicional da “racionalidade científica” não está preparada para dar conta da nova pauta de questões levantadas pelas análises mais recentes da ciência. Parece que somos levados a escolher entre reconhecer a ciência como uma atividade “irracional”, ou investir numa nova análise do conceito de “racionalidade científica”. Não há, contudo, como realizar essa escolha sem re-examinar as bases em que a visão tradicional se assenta – nossa primeira questão passa a depender da segunda, pedindo o exame dessas bases. E não há como examinar o significado de “racionalidade” sem perscrutá-la em sua atividade, isto é, sem tomá-la como “racionalidade em ação”. Desde que esse exame será, necessariamente, uma atividade de discernimento, estabelecimento de relações e construção de relações, não há como “sair fora” do racional e, desde um ponto de vista “não racional”, “descobrir-se” em que consiste a “racionalidade”. Como propriedade da da razão, a racionalidade só poderá ser revelada enquanto a razão mostrar-se a si mesma e, portanto, enquanto “racionalidade em ação”. Toda a “racionalidade”, mesmo em sua acepção tradicional de propriedade da “razão” ou das “razões” produzidas pelo exercício daquela faculdade, é sempre “racionalidade em ação”. Sendo assim, investir numa nova análise do conceito de “racionalidade científica”, ao invés de relegar ao “irracional” o que não se enquadre nos padrões tradicionais de análise segue uma condição intrínseca ao dinamismo da razão e da racionalidade. O espaço para novas análises fica sempre aberto, uma vez que a “racionalidade”, por força de sua própria prerrogativa, é sempre “em ação”.

Procurando-se a racionalidade científica enquanto “racionalidade em ação”, a encontraremos necessariamente exercendo-se “de algum modo” em um dado “contexto”. Ainda que admitamos a necessidade ou utilidade da vinculação da ação da racionalidade a “princípios universalmente válidos” - ponto que aqui não será discutido – não haveria como assim identificá-los fora da sua “contextualização”, fora do exercício de sua atividade reguladora, fora de sua relação com o “particular” que determina. Na configuração desse contexto, filosofia e a história de ciência se encontram. De um lado, a reflexão filosófica esclarece as condições que demarcam a cientificidade em questão e só pode fazê-lo refletindo sobre e em meio à constitutiva circunstancialidade dos padrões e fatores espacial e temporalmente situados que conferem uma face a essa demarcação. De outro lado, essa circunstancialidade histórica torna-se informativa pelo questionamento filosófico que rastreia os laços constitutivos do contexto da demarcação em que esse questionamento se situa e pergunta pelas condições que possibilitam esse modo de conhecimento e atividade. A reflexão filosófica revela uma intrínseca contextualidade da racionalidade científica, resultante de sua própria condição de uma “racionalidade em ação” - uma racionalidade situada, cuja atividade trará a marca das particularidades contextuais que essa mesma racionalidade permitirá identificar como constitutivas de seu contexto de atuação. O encontro da filosofia e da história da ciência delineia o quadro da elaboração de nossas questões para o esclarecimento da “racionalidade científica”, necessariamente “em ação” e, enquanto tal, “situada”.

Procurar o significado da racionalidade na ciência como “racionalidade em ação” exige, então, olhar a essa racionalidade como estando num contexto particular, mais amplo ou mais estreito, que é “histórico-filosófico”, antes que “histórico” e “filosófico”. Assim, para trabalhar nossa segunda questão - estaria a visão tradicional de “racionalidade científica” assentada em bases suficientemente claras a bem de produzir os critérios pretendidos? - o exame cuidadoso de um caso “exemplar” de realização científica parece ser uma estratégia adequada. A torná-lo ainda mais convincente, nosso exame focalizará um dos critérios mais arraigados e caros à visão tradicional da “racionalidade científica”: o da sua pretensa distintividade com base na distinção entre “argumentos retóricos” e “argumentos científicos”. No lastro dessa distinção, ocorrem, igualmente, as distinções “subjetivo / objetivo”, “verossímil / verdadeiro” - as quais não temos espaço para aqui discutir, cabendo, contudo, mencioná-las para se ter presente a importância da distinção entre “argumentos retóricos” e “argumentos científicos”, que iremos examinar. Ainda que a argumentação científica, ao longo da tradição dominante, tenha sido distinguida e muitas vezes oposta à retórica, o tema da retórica vai além de um interesse literário e trespassa a borda de campos filosóficos diversos, circunscrevendo a investigação sobre a natureza da ciência e dos nossos processos cognitivos (incluindo aqueles de formação categorial). Aponta à relevância de análises contextuais da ciência, dadas as condições que perfazem o esforço persuasivo – intenções, motivações/disposições e meios para articulá-las, tanto discursivos como materiais.

A Origem das Espécies de Charles Darwin apresenta-se como boa candidata para o caso exemplar que buscamos. Embora reconhecida como científica mesmo por defensores de padrões epistemológicos tradicionais, a argumentação darwiniana nos leva a repensar muitas das distinções epistemológicas clássicas à base das quais foi tradicionalmente demarcada a racionalidade da ciência. Permite abrir o conceito de “racionalidade científica” às demandas impostas pelas novas análises das condições sob as quais a ciência é produzida, na medida em que revela a flexibilidade dessa racionalidade e ressalta a importância da contextualidade para sua compreensão. Desde o início da leitura da Origem das Espécies, somos surpreendidos pela novidade epistemológica que argumentos tradicionalmente chamados de “retóricos” e o uso de “figuras de linguagem” trazem à elaboração e defesa do “um longo argumento” darwiniano e de seus padrões explicativos. Antes de examiná-los, porém, convém relembrarmos as bases da visão tradicional da distinção entre “racionalidade científica” e “retórica”, a qual podemos remontar ao Górgias de Platão, ainda que o referencial clássico seja encontrado numa particular interpretação dos escritos sobre retórica de Aristóteles3.

Numa tradição que remonta ao Górgias de Platão, a Retórica é vista como a arte da eloqüência e persuasão, destinada antes a manipular o ouvinte através da linguagem, do que em servir ao conhecimento e à virtude; a persuadir antes pelo uso da linguagem do que pela verdade do que é dito; a apelar ao subjetivo, em oposição à busca do conhecimento objetivo, fundado no dizer verdadeiro. O diálogo platônico não chega a fechar as portas ao caráter positivo da eloqüência quando a serviço do conhecimento e da virtude. A ênfase, contudo, recai na distinção de fundo entre o dizer calcado na objetividade do que é, em oposição a um dizer calcado nas intenções subjetivas do falante, a valer-se da linguagem para influenciar o estado de ânimo e as decisões do seu ouvinte. A Retórica, segundo Sócrates, é a persuasão que infunde a crença, não a ciência. Tal distinção de fundo perdurou na tradição que se seguiu ao referencial provido pelos textos aristotélicos para a compreensão da natureza e alcance dos argumentos e recursos retóricos. Aristóteles mantém a distinção entre opinião e conhecimento. O conhecimento genuíno (o que seria a ciência) obtém-se pela demonstração a partir da apreensão de verdades necessárias, daquilo que não pode ser de outra maneira, buscando as causas ou nexos necessários. A opinião não exibiria tal necessidade, movendo-se antes no âmbito do verossímil, relacionando-se ao que pode ser de outra maneira, ao que pode ser verdadeiro ou falso (Analítica Posterior, Livro I, cap.33 em especial). Mantém igualmente a distinção entre Ciência e Retórica. Para Aristóteles, enquanto o objeto da Ciência é o modo como algo é determinado, na Retórica e na Dialética o objeto é o modo como são determinadas certas faculdades de procurar razões (Retórica, Livro I, cap.2); enquanto a Retórica ocupa-se do ânimo, das condições subjetivas, a Ciência, constituída por silogismos demonstrativos, a partir de verdades necessárias, ocupa-se das condições objetivas da argumentação.

Diferentemente de Platão, porém, Aristóteles vê a Retórica como tendo um objeto próprio e constituindo, legitimamente, uma arte, uma área de investigação e, assim, de conhecimento, cujo fim não é persuadir, mas considerar os meios persuasivos a cada caso (Retórica, Livro I, cap,1). Esse campo de estudo corresponde ao exercício da faculdade que permite discernir, em cada circunstância, o admissivelmente crível (Retórica, Livro I, cap.2), o verossímil, aquilo que ocorre ordinariamente, embora não de modo absoluto, isto é, aquilo que pode ser de outra maneira (Retórica, Livro I, cap.2). Retórica e Dialética são correlatas, pois versam sobre coisas que, de algum modo, são conhecidas por todos e não pertencem a nenhuma ciência, todos delas fazendo uso enquanto todos tentam, até certo ponto, inquirir e resistir a uma razão, defender-se e acusar, e tais coisas não pertencem a nenhuma ciência em particular (Retórica, Livro I, cap.1). Convém saber distinguir, a respeito de cada paixão, qual a disposição de ânimo que lhe corresponde, contra e a favor de quem deve ser excitada e em que ocasiões assim se manifesta (Retórica, Livro II, cap.1), a fim de convenientemente excitá-la nos ouvintes.

Num sentido, porém, o referencial aristotélico deixa-nos entreaberta a possibilidade de uma interpretação menos canônica da distinção entre “retórico” e “científico”. Seguindo-se o que Aristóteles nos diz na Poética, pertencem ao pensamento “todas aquelas coisas que serão preparadas pela linguagem”, essa totalidade incluindo o demonstrar, o rebater, o excitar paixões, o aumentar e o diminuir (Poética, cap. 19). Em outras palavras, o “demonstrar” e o “persuadir” estão igualmente incluídos naquele elenco. A Retórica ocupar-se-á, então, de dirigir os fatos para produzirem-se as afecções do ânimo enquanto efeitos da linguagem, “guiados por aquele que fala e desenvolvidos ao longo de sua fala” (Retórica, L.III, cap.1). Da validade e necessidade da Retórica fala-nos Aristóteles em mais de uma passagem. É necessária tanto para desfazer as razões daqueles que procuram convencer-nos de coisas reprováveis, como para chegar à persuasão de certos auditórios, quando não é fácil fazê-lo através da ciência. Aristóteles diz que o justo seria disputar com os fatos, de maneira que todas as demais coisas, fora do demonstrar, fossem supérfluas; todavia, diz que a arte retórica tem grande poder por causa da imperfeição do ouvinte, tornando-se um tanto necessária para todo o ensino porque, para demonstrar algo, faz diferença falar-se de uma ou de outra maneira, diante do papel da imaginação e do aparato quando face a face com o ouvinte (Retórica, Livro III, cap.1). O discurso conforme à ciência é próprio ao ensino (Retórica, Livro I, cap.1) e a arte retórica revela-se necessária para todo o ensino (Retórica, Livro III, cap.1). Assim, dado que o discurso próprio ao ensino é o discurso científico e que a esse, enquanto demonstrativo, não é indiferente o modo como se fala, podemos concluir que não há, em princípio, oposição (seja em termos de contrariedade, seja em termos de contradição) entre “retórica” e “argumentação científica”, quer quanto à natureza, quer quanto a fins. A reforçar essa conclusão, encontra-se a recomendação de Aristóteles para que se tome àquele a quem se deve persuadir como juiz, sendo necessário, tanto no caso de oposição a uma parte litigante como no de oposição a uma proposição, mesmo nos discursos demonstrativos, servirmo-nos do discurso e destruirmos os argumentos contrários, contra os quais se fala, como se o fizéssemos contra uma parte litigante (Retórica, Livro II, cap.18).

Na base da tradição aristotélica, a diferença maior entre o argumento retórico e o silogístico ou científico repousa antes na natureza das premissas, sendo distintivo do silogismo científico partir de verdades necessárias, cabendo à ciência o conhecimento “do que não pode ser de outra maneira”. Todavia, em que pese tal distinção, ela não impede importantes pontos em comum aos argumentos “retóricos” e “científicos”: ambos são silogismos, ainda que os retóricos apresentem-se como entimemas; partir de verdades necessárias não é exclusividade dos silogismos científicos, embora seja próprio aos últimos ater-se a tais verdades e poucas são as premissas de coisas necessárias sobre as quais fundam-se os argumentos retóricos (Retórica, Livro I, cap. 2); é próprio da mesma potência, segundo Aristóteles, compreender o verdadeiro e o verossímil (Retórica, Livro I, cap. 1); em ambos os casos é necessário, primeiro, ter-se as respectivas premissas e as coisas cuja ocorrência seja admissível (Retórica, Livro I, cap. 3 e 4); em especial, cabe ter presente que ambos podem ser formulados a partir de tópicos ou noções comuns, assim como de noções específicas, ainda que comumente os silogismos retóricos sejam obtidos daquelas noções comuns e os silogismos das ciências partam de suas premissas específicas (Retórica, Livro I, cap. 2); o persuadir e o demonstrar em muitos casos interpenetram-se (por exemplo, o demonstrar é também um modo de persuadir); as “conexões necessárias” a serem apreendidas nas premissas dos silogismos científicos são, embora não exclusivamente, matéria de definição e essa depende de processos de seleção e divisão na apreensão da forma definível, havendo um vínculo necessário entre a apreensão do objeto, o modo como é concebido e sua demonstração (“... é impossível expor sem demonstrar ou demonstrar sem antes haver exposto o assunto; porque aquele que demonstra, demonstra algo e aquele que enuncia algo o faz com o fim de demonstrá-lo” - Retórica, Livro III, cap.13); clareza, certeza e convicção da verdade são também afecções do ânimo.

Todas essas considerações levam-nos a restringir as bases em que se assenta a visão tradicional da “racionalidade científica” à distinção concernente à natureza das premissas, admitindo-se que a ciência tenha por objeto o conhecimento de verdades “necessárias”. Assim, a base para tal distinção revelar-se-ia insuficiente, à luz da visão contemporânea do conhecimento científico como conhecimento conjetural, caindo sob a égide “do que pode ser de outra maneira”. Essa insuficiência aprofunda-se quando examinamos os procedimentos mesmos que caracterizam o conhecimento científico – aqui representado pelo argumento darwiniano exposto e defendido na Origem das Espécies - e os confrontamos com aqueles tradicionalmente rotulados de “retóricos”.

Darwin coloca-nos numa posição necessariamente contextualista para examinar a natureza de sua argumentação. Ele apresenta seu trabalho, seu texto, como “um longo argumento” e adverte da conveniência de avaliá-lo na sua integridade explicativa:

As this whole volume is one long argument, it may be convenient to the reader to have the leading facts and inferences briefly recapitulated (Darwin, 1875, p. 404.)4

A novidade epistemológica da argumentação darwiniana pode ser vista tanto no seu conceito de “explicação”, como nas estratégias argumentativas de que se vale para estruturar e defender sua teoria. Darwin não foi um epistemólogo de ofício, preocupado com definir previamente “explicação”, antes de se lançar na elaboração e defesa da resposta à questão da origem das espécies. Em sua autobiografia, numa breve passagem, refere-se a “entender” ou “explicar” o que é observado, como sendo “to group all facts under some general laws” (Darwin, 1958, p.55)5. Na Origem das Espécies, porém, não nos oferece nenhuma conceituação preliminar ao uso que faz de “explicação” e cognatos. Isso autoriza-nos a construir o sentido de “explicação” no texto darwiniano a partir da análise da ocorrência dessas expressões em seu texto e da sucessiva exploração de ampliação e refino de significados através da associação daquelas expressões a outras no texto. Esse processo de sucessivas explicitações acaba por revelar a multifacética riqueza do conceito darwiniano de “explicação”, que, por um lado, não se deixa aprisionar em conceituações rígidas e, por outro, fornece o instrumental necessário para adentrar no escopo explicativo da teoria. O elenco de significações assim construído adquire um sentido próprio em virtude das estratégias peculiares à argumentação darwiniana.

Olhando ao contexto epistemológico em que se moveu Darwin, o encontramos referenciado pelas “filosofias da ciência” de John Herschel, William Whewell e Stuart Mill, as quais dão forma peculiar aos ideais vitorianos de “explicação” como atividade racional, consistindo na compreensão do significado dos fatos e conceitos, em dar razões para sustentação de nossas crenças e expectativas, assumindo a forma de um argumento, buscando causas (e, mais do que isso, buscando a vera causa), e correspondendo a procedimentos e padrões aceitos pela comunidade relevante e conducentes ao aperfeiçoamento social e moral da humanidade. Trata-se de uma conceituação rica, complexa e flexível de explicação científica, em que conjugam-se, antes que se opõem, procedimentos “indutivos”, levando à descoberta das leis, e “dedutivos”, levando à sua verificação/refutação pelo teste de suas conseqüências. As leis descobertas figurarão como premissas dos argumentos dedutivos, através dos quais seu poder explicativo é justificado. O próprio “princípio da indução” seria a premissa maior de todos os argumentos que, na explicação das ocorrências fenomênicas, exibiriam uma estrutura dedutiva. Segundo Mill, por exemplo, o método hipotético-dedutivo pode equivaler ao de uma “indução completa”. A concepção mesma de “indução” escapa à de uma mera generalização, no sentido de trazer algo como o “novo” de Mill, ou a coligação de fatos à base de uma “concepção norteadora” de Whewell. Critérios e procedimentos tidos como “científicos” compreendem fatores tais como: papel da imaginação, dos hábitos mentais, das conjeturas “felizes”, da natural sagacidade e da “tradição de problemas” na elaboração das hipóteses e curso da investigação, regido, entre outras coisas, pelos valores e realizações da comunidade científica; importância do tratamento das exceções; reconhecimento da “infestação” teórica da evidência, da determinação exercida na atividade científica pelas concepções orientadoras, pelo processo “metafísico” e pelo apego pertinaz a uma idéia, bem como o reconhecimento da função central desempenhada pelos instrumentos, linguagem e pedagogia da educação científica. Whewell enfatiza o papel das discussões e dos embates de visões na construção da racionalidade científica.

Inicialmente, a “explicação darwiniana” não parece apresentar novidades. O elenco de significações encontradas no texto gravita em torno àquelas acepções do contexto epistemológico referenciado por Herschel, Whewell e Mill. Contudo, muito dos desdobramentos daquelas conotações claramente fogem às significações habitualmente emprestadas a “explicação”. A compreensão darwiniana do significado dos fatos não apenas se desdobra em estabelecer o “o quê”, o “como” ou o “porquê” dos fatos, mas é também “saber perguntar”, gerar padrões de perguntas e respostas, “conjeturar”. “Explicar” não se restringe a compreender o significado dos “fatos” em diferentes níveis de generalidade, dos “processos” ou mesmo das suposições explicativas, mas compreende o “elucidar conceitos” (dizer o que é), “tratar de dificuldades e objeções” e dar conta de “procedimentos”. “Explicar” é dar razões, sem, contudo, restringir-se às razões lógico e empíricas tradicionalmente apontadas; “crenças” ou “hábitos mentais”, entre outros, também podem ser “razões”. “Explicar” é construir um argumento, mas as tradicionais acepções de “argumento dedutivo” ou “indutivo” comportam, em seu uso darwiniano, conotações próprias. Ao invés de generalizações indutivas, tem-se, antes, o exame de “casos exemplares”. No que concerne aos argumentos dedutivos, não raro fogem ao padrão estrito de dedução, exibindo uma dependência interna das premissas entre si e de premissa em relação a conclusão. E, ainda que a “explicação causal” seja o modelo de explicação por excelência, a “causalidade” darwiniana não se restringe aos tradicionais padrões humeanos e kantianos, abrindo-se a uma causalidade em termos de funções, metas e propósitos e a uma análise em termos de estrutura e rede causal. Alguns dos procedimentos darwinianos que constituem a tarefa explicativa são bastante usuais: observação e experimento, subsunção dos fatos à regra, estudo de casos exemplares, o uso de diagramas, ilustrações, discussões, comparações, analogias e cálculos. Outros revelam-se claramente inovadores, revestindo-se do caráter de estratégias tipicamente darwinianas, como o uso que faz da imaginação, da metáfora6, do apelo à ignorância e a condições e valores psicológicos e sociológicos da investigação científica.

Contudo, mesmo os procedimentos usuais ganham na Origem uma nova dimensão, sobretudo pelas estratégias argumentativas que determinam sua utilização. Não raro, a determinação do “explicar” em termos de procedimentos através dos quais essa atividade é exercida funde-se com a determinação das estratégias que orientam esse exercício em sua tarefa persuasiva. De fato, a tarefa com que Darwin vê-se a braços e impossibilidade de fundá-la numa evidência empírica imediata e conclusiva ressaltam a importância de suas estratégias argumentativas. Como esclarecer e defender a superioridade de sua teoria face à enorme complexidade temática que envolve, à novidade de sua abordagem e suas demandas tanto epistemológicas como ontológicas?7 Conforme diz em sua Introdução:

I can here give only the general conclusions at which I have arrived, with a few facts in illustration, but which, I hope, in most cases will suffice. () For I am well aware that scarcely a single point is discussed in this volume on which facts cannot be adduced, often apparently leading to conclusions directly opposite to those at which I have arrived. A fair result can be obtained only by fully stating and balancing the facts and arguments on both sides of each question; and this is here impossible. (Darwin, 1875, p.3)8

Tais condicionantes tornam ainda mais importante a questão de uma estratégia central a ser divisada na estruturação da obra e garantir o balanço dos diversos fatos e argumentos, vistos sob diferentes óticas, na constituição do “um longo argumento”.

As estratégias argumentativas darwinianas operam em diferentes níveis. Algumas, conforme as acima indicadas, confundem-se com procedimentos e recursos que fogem aos padrões científicos usuais e que ocorrem em diferentes momentos do argumento, articulados sob a égide das estratégias de estruturação geral do argumento, como a do peculiar movimento todo-parte que delineia a espinha dorsal do argumento, a do apelo ao poder explicativo como um todo, a da comparação de visões, a do tratamento de dificuldades/objeções/exceções, a do jogo do atual e do possível, um dos traços mais inovadores da argumentação darwiniana, e a do peso das razões.

O peculiar movimento todo-parte responde pela estruturação geral do “um longo argumento” que constitui a Origem como uma narrativa, compreendendo três momentos principais, desenvolvidos através de progressivas projeções e retomadas, em que o todo, a obra, sustenta as partes, os capítulos, e delas, por sua vez, recebe sustentação. Do capítulo I ao V, Darwin estabelece os fundamentos da teoria. Nessa etapa de fundamentação teórica, a visão de Natureza como “luta pela existência”, no capítulo III, e o exame de Princípio de Seleção Natural, no capítulo IV, esclarecem o fundamento para a analogia entre o estado de domesticação e de Natureza, trabalhada nos capítulos I e II. Esclarecidos os fundamentos, os fatos dos capítulos I e II passam a contar como corroboração/sustentação para a teoria centrada na “visão” de Natureza em pauta e de seu grande princípio, o Princípio de Seleção Natural. Do capítulo VI ao XIV, examina a corroboração de seu princípio-chave, Princípio de Seleção Natural, com sua crescente explicitação, (a) pelo tratamento inicial dos casos mais difíceis e complexos, respondendo ou revelando a impropriedade das objeções, ou relativizando as dificuldades (do capítulo VI ao IX), (b) convertendo a evidência aparentemente “desfavorável” em “favorável” (capítulo X) e (c) explorando os casos favoráveis, de nítida superioridade explicativa da teoria darwiniana em relação à sua competidora (do capítulo XI ao XIV). No capítulo XV, com uma recapitulação e avaliação geral do “um longo argumento”, retoma e integra as partes em um só fôlego.

O trabalho das demais estratégias de estruturação geral pode ser visto ilustrando a característica própria que imprimem aos procedimentos explicativos darwinianos, mesmo àqueles que, aparentemente, são bastante usuais. Em sua referência a experimentos, por exemplo, o eixo central da argumentação geral darwiniana não se dá em termos de defesa da teoria através de sua “prova empírica” por uma evidência imediata e conclusiva. Já na sua coleta da “evidência”, Darwin recorre ao uso de diversificadas fontes de informação (colhida junto a criadores e agricultores, ou a antiga enciclopédia chinesa, a escritos de autores romanos clássicos, ao Gênesis bíblico, como o faz na investigação da origem dos pombos domésticos), convincentemente integradas e encontrando suporte especial no endosso que lhe é dado pela autoridade da comunidade de pesquisa relevante (Darwin continuamente compara seus resultados com o de consagrados pesquisadores). O eixo central da explicação em termos de experimentos passa, antes, por dois pontos mutuamente remissivos. Um é o apelo ao poder explicativo da teoria como um todo (ao invés de medi-lo pelo seu desempenho em situações isoladas ), a partir do qual é difícil supor que uma teoria com tal poder não seja verdadeira (Darwin, 1875, p.421). O outro, é a determinação desse poder por uma comparação de visões explicativas - os fatos podem ser vistos de diferentes maneiras e o acesso aos mesmos depende de suposições, como se depreende das palavras do próprio Darwin. À luz dessa comparação, a teoria darwiniana desponta como a melhor alternativa possível e, por fim, como a única explicação “racional” (acessível por meios “racionais”, segundo nossa condição como seres “naturais’, investigando objetos e processos “naturais”).

É esse poder explicativo o que cabe focalizar, envolvendo o jogo entre o que é / não é atualmente dado e o que é lógica e/ou fatualmente possível, explorando com habilidade a conjunção de uma tal possibilidade e a impossibilidade e/ou inexistência de evidência contrária. Vale aqui o que Aristóteles, em sua Retórica, observa quanto ao uso do possível / impossível: se o semelhante é possível, também o é aquilo do qual é semelhante; se for possível o mais difícil, também o será o mais fácil; aquilo cujas partes são possíveis, também é possível como um todo e vice-versa; se algo é possível aos que são piores, inferiores ou menos dotados, mais ainda o será a seus contrários (Retórica, L.II, cap.19). Em Darwin, esse jogo do atual e do possível amplia o campo da investigação e a ele Himmelfarb(1959) se refere como a uma nova “lógica da probabilidade”, tendo sido recusado, à época de Darwin, por Whewell, como manobra não científica. Tão forte foi a presença dessa estratégia na argumentação darwiniana, que William Whewell nela concentrou sua crítica à teoria da Origem:

For it is assumed that the mere possibility of imagining a series of steps of transition from one condition of organs to another, is to be accepted as a reason for believing that such transition has taken place. And next, that such a possibility being thus imagined, web may assume an unlimited number of generations for the transition to take place in, and that this indefinite time may extinguish all doubt that the transitions really have taken place (Himmelfarb, 1968, p.333-334)9

Citando essa passagem, Himmelfarb coloca-se sob outra perspectiva de avaliação. Referindo-se a Darwin, diz:

... his essential method was neither observing nor the more prosaic mode of scientific reading, but a peculiarly imaginative, inventive mode of argument.

What Darwin was doing, in effect, was creating a logic of possibility. Unlike conventional logic, where the compound of probabilities results not in a greater possibility, but in a lesser one, the logic of the Origin was one in which possibilities were assumed to add up to probability (Himmelfarb, 1968, p. 333-334).10

O estudo de casos exemplares – como no caso da origem dos pombos domésticos, convertido em argumento central à produção de novas formas orgânicas por seleção (Darwin, 1875, p. 15) - é um dos procedimentos que se constitui numa estratégia fundamental de Darwin. Assim procedendo, Darwin pode dispensar ao ponto em questão aquela análise minuciosa que julga devida a um justo balanço da evidência disponível, satisfazendo exigências não só de precisão, como de amenidades de estilo (Darwin, 1875, p. 321). Se Darwin fundasse a credibilidade de suas afirmações na quantidade de fatos examinados, estaria sempre exposto, na melhor das hipóteses, à crítica de um arrolamento imperfeito da evidência requerida. A utilização desses “exemplos” satisfaz a condição persuasiva que Aristóteles lhes atribui na argumentação retórica, por conterem o universal de modo implícito.

O diagrama, de central importância na explicação darwiniana, constitui-se num instrumento de operacionalização da síntese conceitual numa esquematização sensível, permitindo a aplicação da teoria da seleção natural para a colocação adequada das questões que ocupam os estudos classificatórios e filogenéticos, facilitando sua precisa resolução (Darwin, 1875, p. 369, p. 379-80). Cabe lembrar a importância que Aristóteles atribui ao “pôr diante dos olhos”, “sensibilizar as coisas”, ao tratar do uso de imagens e da metáfora, buscando “o significar as coisas em ação” (Retórica, Livro III, cap.11). É também no uso de ilustrações que se ressalta o uso da imaginação feito por Darwin, como recurso explicativo que lembra considerações de Aristóteles, quando admite duas espécies de “exemplo” presentes nos “argumentos retóricos”: a que conta coisas que ocorreram e a que as inventa (Retórica, Livro II, cap. 20). De um modo geral, as ilustrações juntamente com o jogo do atual e do possível, servem à confirmação da teoria darwiniana (Darwin, 1875, p. 360) e igualmente esclarecem a existência e natureza das exceções (Darwin, 1875, p. 391, p. 392). Desse modo, seu uso enquadra-se na perspectiva mestra de avaliação do poder explicativo da teoria por um peso das razões. No uso da metáfora e da analogia, porém, Darwin transcende em muito o alcance aristotélico. Não apenas é com base numa analogia com a seleção pelo homem que Darwin introduz a questão central da Seleção Natural, como também as analogias permitem estender o âmbito das explicações segundo o Princípio de Seleção Natural. Analogias sustentam, por exemplo, leis gerais acerca dos processos de modificação e extinção a que o reino animal está sujeito (Darwin, 1875, p. 299), princípios acerca das relações entre habitantes de diferentes locais, porém vizinhos e com acesso possível (Darwin, 1875, p. 357), ou regra universal acerca das produções endêmicas das ilhas oceânicas (Darwin, 1875, p. 354). O uso da metáfora, por sua vez, proporciona, ao longo do pensamento de Darwin, imagens articuladoras chave, não só para “dar o nome”, como diria Aristóteles (Retórica, Livro III, cap.2), ou introduzir conceitos fundamentais como o de seleção natural com a requerida clareza, elegância e brevidade (Retórica, Livro III, cap.10 e 11), mas para prover corroboração à teoria, numa função pertencente ao esforço científico enquanto tal, como na sua defesa da ausência das formas transicionais através da “metáfora de Lyell” (Darwin, 1875, p.289). Mais do que isso, a Origem das Espécies convida à elaboração de uma nova teoria da metáfora, como processo cognitivo e não como mero recurso retórico, em que o “literal” e o “metafórico” são distinções dependentes do contexto, da visão orientadora e podem ser vistos como momentos que se alternam num mesmo processo de elucidação conceitual (Regner, 1997).

Outro procedimento usual no esforço explicativo, a classificação, recebe sentido próprio na explicação darwinina e projeta a tarefa definitória em uma nova dimensão, rompendo, por exemplo, com a exigência aristotélica de que a definição contenha todos e apenas aqueles elementos que, em separado sejam necessários e, em conjunto, suficientes para caracterizar o definido e apenas o definido (Analítica Posterior, Livro II, cap.13). Os preceitos classificatórios enlaçam-se com os demais procedimentos numa rede explicativa que fortalece a teoria darwiniana como um todo, fazendo uso de outros recursos, como da analogia entre variedades e espécies (Darwin, 1875, p. 371), ou da metáfora das linguagens (Darwin, 1875, p. 370-1) e provendo, através de tais recursos, um fundamento “real” para a classificação. É assim que o uso “metafórico” da linguagem, à luz dos desdobramentos e explorações conceituais que enseja, transforma-se num uso “literal”, quando a comunidade de descendência com modificação revela-se como fundamento para o trabalho dos sistematistas e confere sentido “literal” ao falar inicialmente “metafórico” dos naturalistas sobre a metamorfose de partes (Darwin, 1875, p.386).

A teoria darwiniana também incorpora, como parte substantiva de sua argumentação, recursos tradicionalmente vistos como exclusivamente retóricos. Dentre esses, está o apelo à familiaridade ou à simplificação da rotina de trabalho dos sistematistas, aos hábitos mentais para dar conta da rejeição à sua teoria por renomados naturalistas, ao caráter progressista daqueles de quem espera adesão à sua teoria, ao caráter revolucionário de sua teoria, demandando a reestruturação de campos disciplinares e a criação de novos campos de investigação, atestando sua contribuição ao avanço da investigação, afora o constante apelo a renomadas autoridades científicas, em suporte a resultados que, direta ou indiretamente, favorecem a sua teoria. Já Aristóteles bem ressaltara em sua Retórica a importância da comparação com pessoas célebres (Livro I, cap.9; Livro II, cap.25) e, em várias oportunidades, traz a seus argumentos considerações baseadas na facilitação da aprendizagem e atenção às características dos ouvintes (Retórica, Livro I, cap.1 e Livro III, cap.1 e 10). O apelo ao caráter revolucionário da teoria ocorre numa época - e dirige-se a uma audiência - em que a mudança, o “progresso” é assumido como um valor social e científico, nesse último caso sendo bem retratado nas análises da ciência então feitas por John Herschel e William Whewell. Darwin diz não esperar convencer experientes naturalistas, já com idéias cristalizadas (Darwin, 1875, p. 422), mas olha “com confiança para o futuro - aos jovens e nascentes naturalistas” (Darwin, 1875, p. 423). Em sua correspondência, como numa carta a Huxley de 2 de dezembro de 1860, Darwin diz que, se sua teoria for geralmente aceita, o será pelos jovens que crescerão e substituirão os velhos trabalhadores (Francis Darwin, 1888, Vol.II, p. 355). Noutra carta, dessa vez a Asa Gray, em 21 de dezembro de 1859, Darwin diz pensar que é mais importante ser lido por homens inteligentes, acostumados ao raciocínio científico, embora não naturalistas, que arrastariam atrás de si aqueles naturalistas presos à idéia das espécies como sendo “entidades” (Francis Darwin, 1888, Vol.II, p. 245). Darwin refere-se a revoluções ocorridas no conhecimento, provocadas tanto por novas teorias, tais com a nova Geologia de Lyell (Darwin, 1875, p. 226), como por descobertas fatuais, tais como as descobertas da Paleontologia desde a década de 1860 (Darwin, 1875, p. 285). Essa referência a revoluções não apenas como marca de sua visão, mas de decisivos momentos do conhecimento humano em geral, permite pensar que Darwin considerava a ocorrência de revoluções como uma característica da produção do conhecimento científico de ponta. No caso de sua teoria, Darwin antevê, como um de seus méritos, a revolução na História Natural que sua aceitação provocará (Darwin, 1875, p. 425 e ss.).

Em uma visão aristotélica, as estratégias argumentativas basilares de que se vale Darwin ao longo da obra seriam “retóricas”. Vale a pena cotejar as recomendações aristotélicas quanto ao uso de “argumentos retóricos”, com os procedimentos e estratégias utilizados por Darwin ao elaborar e defender sua teoria, portanto, ao valer-se de procedimentos que devem ser tomados como “científicos”. Comecemos considerando recomendações aristotélicas quanto a argumentos retóricos (em negrito), que se revelam capazes de nos esclarecer sobre estratégias darwinianas de estruturação geral da obra:

ARISTÓTELES: Colocar-se na perspectiva da ponderação (Retórica, Livro I, cap.9)

Colocar-se na perspectiva da ponderação é, segundo a Retórica de Aristóteles (Livro I, cap.9), a forma mais adequada aos discursos demonstrativos. É, certamente, a estratégia argumentativa chave de Darwin, ao pedir, tanto na sua Introdução como em sua Conclusão, que seu “um longo argumento” seja julgado pelo seu poder explicativo como um todo, após um criterioso balanço de todos os fatos e razões, de ambos os lados da questão. Essa é a marca de procedimentos explicativos centrais à Origem, como a discussão e a comparação. Todo o esforço explicativo darwiniano procede por comparação de visões teóricas - não há, diz-nos Darwin, um fato a ser arrolado, que não possa ser visto de uma ou de outra maneira. (Darwin,1875, p.2). Aqui será decisivo o poder explicativo das hipóteses em disputa, tendo em vista a natureza e número de fatos explicados. Como recomenda Aristóteles nos Tópicos, sempre que duas coisas sejam muito similares, devemos examiná-las desde o ponto de vista de suas conseqüências (Tópicos, Livro III, cap.2).

ARISTÓTELES: Iniciar dizendo, primeiro, os argumentos próprios e, logo, sair ao encontro das razões contrárias, refutando-as e desfazendo-as.

(Quando se fala depois, primeiro fazê-lo contra o discurso do adversário e, em especial, contra o que nele foi-lhe considerado favorável, sendo conveniente preparar o ouvinte para o discurso que vem a seguir, destruindo, primeiro, as razões do adversário. ) (Retórica, Livro III, cap.17e cap. 19)

Darwin diz os “argumentos próprios”, ou seja, estabelece a moldura lógico-conceitual de sua teoria, com seus fundamentos próprios, no primeiro momento de sua argumentação – do capítulo I ao V. Em seguida, começa a discutir seu poder explicativo iniciando pelo enfrentamento das dificuldades e objeções mais sérias – do capítulo VI ao X. Assim procedendo, Darwin não só revela tê-las considerado, como sua consideração permite removê-las ou enfraquecer-lhes o peso. E, se for bem sucedido em seu tratamento, não só protege a teoria de seus pontos mais fracos, como faz sobressair seus pontos mais fortes, preparando seu leitor para o cômputo final de fatos e razões que será decididamente favorável à teoria darwiniana

Na sua conclusão, afasta-se da recomendação aristotélica para dizer sumariamente a que serviu a demonstração, tendo-se cumprido com o que fora prometido. Darwin o faz detalhadamente. A considerar-se a demonstração em pauta como o corpo da obra em sua integridade, no “um longo argumento” o capítulo conclusivo a apresenta de modo conciso, ressaltando o cumprimento do prometido em sua Introdução, tendo mostrado como

... the innumerable species inhabiting this world have been modified, so as to acquire that perfection of structure and coadaptation which justly excites our admiration. (Darwin, 1875, p. 2)11,

e respondido às diversas versões da sua questão-chave, as quais foram apresentadas no início do capítulo III: como são produzidas espécies novas na natureza? como são produzidas as diversas adaptações e co-adaptações das partes dos organismo e dos organismos entre si? como as diferenças entre variedades acentuam-se e variedades tornam-se boas espécies? como gêneros e grupos mais abrangentes são formados?

De resto, em sua etapa conclusiva, atende à recomendação aristotélica de contrapor-se ao adversário, cotejar as razões expostas por ambos, enfrentá-las na ordem “natural” em que apareceram ao longo do argumento, por fim questionando a suposição básica a qualquer objeção, a suposição de que sua teoria seria falsa:

It can hardly be supposed that a false theory would explain, in so satisfactory a manner as does the theory of natural selection, the several large classes of facts above specified. (Darwin, 1875, p.421)12.

ARISTÓTELES: Fazer uso oportuno das interrogações, quando: as perguntas levam o adversário a uma resposta que o contradiga; sabe-se que o adversário terá que conceder o ponto desejado; só se pode resolver a dificuldade respondendo-a sofisticamente. Cabe responder a perguntas ambíguas estabelecendo distinções, utilizar perguntas jocosas, desconcertar a seriedade do adversário com o riso e o riso do adversário com a seriedade. Não cabe perguntar além do que se pode concluir, nem apresentar a conclusão sob a forma de pergunta. (Retórica, Livro III, cap.19)

De modo bastante inovador, Darwin faz uso do perguntar. O perguntar, buscando aquilo que deve ser mostrado, esclarecido - o quê deve ser perguntado - não visa apenas ao que é imediatamente dado. Busca esclarecer o que aí deve ser descoberto como seu fundamento - assim, a pergunta por aquele “laço oculto” entre os seres orgânicos numa mesma área, é pergunta que todo o naturalista “não tolo” é levado a fazer (Darwin, 1875, p. 318). Dirige a atenção ao que é “curioso”, àquilo que plena ou residualmente escapa à natureza ordinária das determinações conceituais - sobretudo da teoria oponente - demandando explicação, a qual pode consistir na explicitação da significação do que se apresentou como “curioso” ou difícil de entender, auto-manifesta pelos próprios fatos, como no caso dos órgãos rudimentares “declarando” sua origem e significação (Darwin, 1875, p. 397), ou na conformação desses fatos a um padrão de inteligibilidade, como no caso da similaridade de órgãos pela sua conformidade a um tipo (Darwin, 1875, p. 382). Esse padrão de inteligibilidade configura não só um padrão de perguntas e respostas, mas o quê deve ser dito, mesmo acerca de questões intrincadas (como a questão do instinto das abelhas - Darwin, 1875, p. 133).

Dentre as estratégias estruturais de que se vale Darwin, o seu tratamento de dificuldades e objeções encontra traços próprios às recomendações aristotélicas quanto ao “rebater acusações” contidas na Retórica, Livro III, cap.15. Nesse tratamento, o perguntar faz uso do jogo do atual e do possível e dá lugar a padrões argumentativos para eliminar as dificuldades ou atenuá-las, (1) relativizando-as, como no caso de fertilidade inter se das variedades e a esterilidade entre as espécies (Darwin, 1875, p. 133), (2) esclarecendo a possibilidade de ocorrências favoráveis à teoria, como no caso da produção de formas novas e modificadas por seleção natural, em questões delicadas como a dos instintos arquitetônicos das abelhas (Darwin, 1875, p. 226) ou a das formigas operárias (Darwin, 1875, p. 229), ou (3) transformando as aparentes dificuldades em casos explicados e conformes à teoria, como no caso da ausência de formas transicionais (Darwin, 1875, p. 133, p. 407-408). Seguimos cotejando os procedimentos darwinianos (em itálico) com os aristotélicos (em negrito), encontrados os últimos em sua Retórica, Livro III, caps. 15-19).

ARISTÓTELES: Examinar a partir do quê a suspeita poderia ser desvirtuada

DARWIN: Defender a teoria, tratando das (bases das) dificuldades e objeções e “deslocando” seu teor

Darwin começa seu exame das dificuldades (capítulo VI) pelo delineamento daquelas que, inicialmente, pareceram-lhe muito sérias, e das quais poucas, ao final, permanecem, não sendo, todavia, fatais à teoria. Dizem respeito a quatro grandes tópicos: ausência ou raridade de formas transicionais; o processo de modificação requerido para a produção de estruturas e hábitos amplamente diversos da forma ancestral, bem como de órgãos às vezes de menor importância e, outras vezes, tão complexos como os olhos; aquisição e modificação de instintos; esterilidade interespecífica e fertilidade entre variedades da mesma espécie. Os dois últimos tópicos merecerão, respectivamente, as atenções dos capítulos VIII e IX. Os dois primeiros são tratados no capítulo VI e questões afins a essas serão tratadas no capítulo VII, que Darwin consagra a objeções explicitamente levantadas por naturalistas, notadamente por Mr. Mivart.

Ao tratar da raridade ou ausência de formas transicionais, no capítulo VI, Darwin não só mostra a impropriedade de se esperar encontrá-las, como a consistência de tal ausência com as condições mesmas estabelecidas pela teoria, segundo as quais as formas intermediárias, menos aptas e menos expandidas, habitando regiões intermediárias13, serão suplantadas pelas mais aptas, delas ficando apenas registros fósseis, cuja precariedade de conservação merecerá especial atenção da teoria, em conformidade com os princípios da moderna Geologia. Ao tratar da formação de peculiares estruturas e hábitos de vida, bem como de órgãos de extrema complexidade, envolvendo objeções examinadas no capítulo VII, quanto à incompetência da “seleção natural” para dar conta dos estágios incipientes de estruturas úteis (levantadas, sobretudo, por Mivart), Darwin desloca o teor inicial da dificuldade ou objeção, trazendo-a para ser resolvida no corpo da teoria como um todo. Ataca igualmente as bases de onde emergem as objeções, dirigindo seu alvo principalmente às idéias de Mivart sobre uma “força ou tendência intrínseca das formas” à mudança e a ocorrência de “mudanças abruptas”, ressaltando suas inconsistências. Esse ataque, por sua vez, oportuniza uma redobrada defesa das idéias contrárias a essas, que estão à base da concepção darwiniana, reforçando a condição, já aludida por Aristóteles em sua Retórica (Livro III, cap.13), de que a refutação é parte da argumentação positiva e que a comparação de razões resulta numa ampliação das razões próprias ao argumento que se quer defender.

Deslocando o teor da objeção para o corpo da teoria como um todo, a preservação das variações úteis à sobrevivência face às “condições de vida” dadas, revela-se, em princípio, e em outras diversas situações particulares, plenamente admissível, ao mesmo tempo em que não se pode afirmar a impossibilidade lógica (e também empírica) de que assim tenha ocorrido no caso em questão. Quando favorável a seu argumento, Darwin alude à possível interferência de outros fatores - ora auxiliando, ora excluindo a ação do Princípio de Seleção Natural, como é o caso dos efeitos do uso/desuso e de prováveis leis da variação e do crescimento. Darwin igualmente alude ao suporte que possa ser prestado à sua teoria por máximas da prática científica (Natura non facit saltum). Seu procedimento lembra a advertência de Aristóteles quanto ao apelo ao proceder “com a melhor consciência”, utilizado na retórica forense (Retórica, Livro I, cap.15). Quando a lei escrita fôr contrária ao fato a ser defendido, alegar “com a melhor consciência” significa não se servir sempre e simplesmente de leis escritas, uma vez que o eqüitativo permanece sempre e não muda, como também permanece e não muda a lei comum - que é “uma voz da natureza” -, enquanto a lei escrita muda com muita freqüência. Alegar que é também próprio a um homem de mais valia (o juiz) aplicar e observar as leis não escritas antes que as escritas; que há casos em que uma lei é contrária a outra lei ou a si mesma, algumas vezes estabelecendo como superior o que se disponha de comum acordo, outras vezes proibindo que se busque um acordo universal fora da lei. Se a lei escrita for favorável ao caso que se defende, alegar que a referência a “com a melhor consciência” não vale apenas para fazer justiça à margem da lei, mas para evitar perjúrio, caso se desconheça o que diz a lei, e que em nada se diferenciaria o não haver lei do não se servir dela, devendo ser evitada a pretensão de se ser mais sábio que a lei, pretensão essa proibida nas leis que merecem elogio. Se a lei for ambivalente, servimo-nos dela da maneira como possamos interpretá-la a bem de que se adapte tanto ao que é justo como ao que é conveniente.

ARISTÓTELES: Alegar que o fato imputado não existe

DARWIN: Alegar que a evidência desfavorável não existe

Em sua recapitulação, Darwin começa pelas objeções que podem ser respondidas, consideradas no corpo da teoria, referentes à formação dos órgãos complexos e dos instintos. São dificuldades superáveis, caso aceito o argumento geral da teoria: há diferenças individuais (fato facilmente constatável); há uma “luta pela existência” (admitida a visão das relações entre os seres orgânicos que serve de fundamento à Origem e para a qual Darwin busca respaldo na aceitabilidade de princípios como o de Malthus, além das próprias “evidências” que arrola), levando à preservação das variações (similares às “diferenças individuais”) úteis quanto à estrutura ou instinto; há gradações no estado de perfeição de cada órgão (constatáveis por relações colaterais), nada impedindo que se admita que cada uma tenha sua utilidade própria para seu possuidor; assim, gradações no estado de perfeição de cada órgão ou instinto, cada uma com sua utilidade própria, podem ter ocorrido. Garantida essa possibilidade lógica e fatual, face ao que se revela atualmente disponível, dificuldades para a aceitação do argumento são contornáveis, admitindo-se que a dificuldade (psicológica) em imaginar as gradações não determina, à luz de outras analogias (razões lógicas e empíricas), sua impossibilidade. Outros casos de extrema dificuldade para a teoria da seleção natural, quando tratados à luz do corpo explicativo da teoria como um todo, podem ser vistos como casos de dificuldades trabalháveis, amenizáveis e, mesmo, transformáveis em argumento favorável à teoria.

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não é danoso

DARWIN: Alegar que a evidência disponível não é fatal à teoria

O tratamento das dificuldades referentes à formação dos instintos (capítulo VIII) e ao hibridismo (capítulo IX) são casos típicos daquelas dificuldades que, se não podem ser de todo dirimidas, nem por isso são “fatais” à teoria darwiniana, tratando-se de relativizar seu possível impacto inicial e, assim, de redirecioná-las, quando não for possível afastá-las de todo. As dificuldades remanescentes, após cuidadosas discussões, revelam-se, então, dificuldades que, como tais, se apresentariam a qualquer teoria. Ou seja, transformam-se em casos que devem ser avaliados dentro do escopo maior da capacidade explicativa da teoria em questão. E, quando trazidos a esse terreno, prevalece a capacidade “positiva” da teoria e princípio darwinianos, com sua discussão oportunizando um avanço na inteligibilidade da natureza e alcance desse princípio. É característico da argumentação darwiniana a riqueza de fatos e suposições habilmente trabalhadas, quando se trata de questão para a qual a qualidade da discussão a ser travada, antes que a evidência disponível, torna-se o ponto decisivo - situação que se encontra tanto no caso da modificação dos instintos, como no do hibridismo - entrelaçando-se diversificados fatores: fatos, reflexões e suposições acerca da hereditariedade, “condições-de-vida”, hábito, distribuição geográfica, estudos geométricos e experimentos, em longas cadeias de fatos e razões (como no caso da explicação do instinto arquitetônico das abelhas), no amplo escopo explicativo da teoria.

Parte desse complexo procedimento consiste em relativizar o peso das objeções, e trazê-las a uma ponderação à luz do todo - o que nos lembra os procedimentos que seguem, recomendados por Aristóteles:

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não é tão danoso quanto dizem

DARWIN: Relativizar o peso da dificuldade ou objeção - não aniquila a teoria, nem compromete seu poder explicativo como um todo

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não é injusto

DARWIN: Alegar que a evidência arrolada foi adequadamente examinada

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não é tão injusto

DARWIN: Relativizar o peso da dificuldade ou objeção - pela adequada avaliação da evidência

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não é vergonhoso

DARWIN: Alegar que a evidência não desqualifica a teoria

No caso da formação de instintos por “seleção natural”, a estrutura geral para a defesa dessa idéia por Darwin consiste em (a) partir da mesma estrutura estabelecida para a aceitação, em princípio, da produção de novas formas orgânicas segundo Princípio de Seleção Natural: há variações leves na Natureza; tais variações são da maior importância para a sobrevivência (em sua maioria, serão úteis ou injuriosas, embora hajam variações “neutras”); não há dificuldade para admitir a ação da “seleção natural” (preservando as variações úteis e destruindo as injuriosas), sob “condições de vida” que mudam; (b) admitir, em muitos casos, a ação do uso/desuso das partes e do hábito (em princípio examinados nos capítulos IV e V, nas suas relações com a ação da “seleção natural”); (c) mostrar como os casos difíceis não são fatais à teoria, seja por serem contornáveis, seja por revelarem-se difíceis a qualquer teoria; (d) ressaltar aquelas condições implicadas no exame dos instintos que favorecem uma explicação nos termos de Princípio de Seleção Natural - os instintos não são perfeitos, podendo, portanto, ser aperfeiçoados; em nenhum caso, instintos são produzidos para o bem de outro ser que não seu possuidor (embora outros seres possam vir a tirar vantagem dessa situação); o grande cânone em História Natural, “Natura non facit saltum”, é aplicável tanto aos instintos como às estruturas corpóreas; e (e) enfatizar casos aparentemente corroboradores do poder explicativo de Princípio de Seleção Natural, sobretudo considerando sua capacidade para dar conta de fatos “estranhos” ou não explicáveis pelo Criacionismo.

Tal defesa remete, necessariamente, à consideração do poder explicativo da teoria como um todo, à luz do qual podemos entender as recomendações que seguem:

ARISTÓTELES: Alegar que a injustiça foi cometida em compensação; Alegar que, se a ação foi danosa, foi, contudo, honrosa; Alegar que, se a ação provocou tristezas, foi, contudo, proveitosa

DARWIN: Alegar que as evidências favoráveis e desfavoráveis devem ser assim examinadas à luz da integridade do contexto explicativo

Darwin abre seu capítulo conclusivo, dizendo:

As this whole volume is one long argument, it may be convenient to the reader to have the leading facts and inferences briefly recapitulated (Darwin, 1875, p. 404.)14.

Trata-se de concluir avaliando a estrutura argumentativa da Origem em sua integridade, como um todo, no qual cabe dimensionar um adequado balanço dos argumentos parciais que, por sua vez, deram corpo a essa estrutura. Assim, trata-se de retomar a rede de fatos e razões que perfazem essa argumentação e a trazem sob a unidade de uma longa narrativa, destacando, nos subtítulos do capítulo XV: Recapitulação das objeções à teoria da Seleção Natural, Recapitulação das circunstâncias gerais e especiais a seu favor, Causas da crença geral na imutabilidade das espécies, Quão longe pode a teoria da Seleção Natural ser estendida, Efeitos de sua adoção para o estudo da História Natural e Considerações conclusivas.

ARISTÓTELES: Alegar que o fato não tem importância

DARWIN: Alegar que a evidência não afeta qualquer teoria em particular, ou que, em qualquer caso, não dispõe de sólido fundamento

A questão da esterilidade entre as espécies fornece um bom exemplo de resposta a dificuldade alegando que a mesma não afeta à teoria em particular. Aparentemente, lembra Darwin, a eliminação da esterilidade decorre de um gradual acostumar-se a mudanças freqüentes nas condições de vida. Assim, espécies, expostas por longo tempo às mesmas condições, quando confinadas a grandes mudanças, perecem ou tornam-se estéreis. De modo similar, híbridos de espécies, sendo compostos por duas organizações distintas, sofrem uma grande mudança nas “condições de vida”. Darwin coloca, então, a dificuldade levantada, nos seguintes termos - quem explicar, de um modo definitivo, porque as espécies selvagens não procriam livremente como o fazem as nossas raças domésticas, será capaz de, ao mesmo tempo, dar uma resposta definitiva à questão da esterilidade entre as espécies (Darwin, 1875, p.406).

ARISTÓTELES: Acusar ao que acusa, desacreditando-o em suas razões

DARWIN: Tomar a dianteira e examinar, inicialmente, as dificuldades, eliminando

ou relativizando seu possível impacto na argumentação

Desqualificar as razões da teoria oponente

O exame de dificuldades / objeções / exceções é estratégia argumentativa fundamental na Origem das Espécies, acompanhada pela desqualificação do poder explicativo da teoria oponente - no caso o Criacionismo- que não pode dar conta de vários dos fatos de outro modo explicados pela teoria darwininana, notadamente na distribuição geográfica, paleontologia, morfologia e classificação (Darwin, 1875, p.305, 359, 384-385, 402, 416, 420). Essa deficiência vem exemplificada no fato mesmo de que as explicações do Criacionismo não satisfazem os requisitos de cientificidade então aceitos:

Nothing can be more hopeless than to attempt to explain this similarity of pattern in members of the same class, by utility or by the doctrine of final causes. The hopelessness of the attempt has been expressly admitted by Owen in his most interesting work on the Nature of Limbs. On the ordinary view of the independent creation of each being, we can only say that so it is;- that it has pleased the Creator to construct all the animals and plants in each great class on a uniform plan; but this is not a scientific explanation. (Darwin, 1875, p.383).15

Dizer, por exemplo, que os órgãos rudimentares foram criados para o bem da simetria ou a fim de completar o esquema da natureza, “... this is not an explanation, merely a re-statement of the fact. Nor is it consistent with itself; (...)” (Darwin, 1875, p.400).16

ARISTÓTELES: Acusar ao que acusa, por partir de uma calúnia

DARWIN: Alegar ter sido mal interpretado

Darwin, em passagem que cobre o segundo parágrafo do quarto capítulo da Origem (Darwin, 1875, p. 63), ausente em sua 1a e 2a edições (1859), diz que vários autores mal interpretaram o termo “seleção natural”. Refere-se a objeções calcadas no significado de “escolha consciente”, poder ativo ou “Divindade”, personificação de “Natureza”, ingredientes que estariam contidos no conceito darwiniano de “seleção natural”, aludindo ao caráter metafórico de tais expressões. Compara a função da expressão “seleção natural” na sua teoria à exercida por outras expressões em teorias cientificamente aceitas, como “afinidades eletivas” dos elementos químicos e “atração da gravidade” na regulação dos movimentos planetários. Admite que a atribuição de um sentido possa ser legítima, metaforicamente falando, e falsa, se literalmente tomada. Mas diz que “todos sabem qual o significado e o que é implicado por tais expressões metafóricas; e elas são quase necessárias por brevidade”. Para uma apreciação adequada do procedimento de Darwin em resposta a essas acusações, precisaríamos examinar mais detidamente o papel da metáfora no longo argumento da Origem, não havendo aqui espaço para tanto. Seu enfoque da metáfora rompe com as análises que tradicionalmente opõem o “retórico” ao “lógico” ou “científico”. Darwin pretende, como o diz em diferentes passagens, mostrar a vera causa para a produção de novas espécies. Oposta ao “literal” e ao “real”, a metáfora pareceria antes um recurso a ser substituído. Contudo, é por meio daquele modo de falar “metafórico”, tomando a seleção natural como um poder que age, escrutina, exercita, que a seleção natural pode prover uma vera causa - não uma referência a ser substituída - para a produção de novas espécies.

ARISTÓTELES: Alegar que a ação praticada não é danosa ao adversário

DARWIN: Alegar que a teoria não fere qualquer sentimento religioso

Particularmente interessante na defesa que Darwin faz de sua teoria frente ao fulcro da crítica criacionista de maior repercussão junto ao público em geral, é a sua consideração de que sua teoria não fere qualquer sentimento religioso, citando o depoimento de um reputado teólogo, sem publicar-lhe o nome:

he has gradually learnt to see that it is just as noble a conception of the Deity to believe that He created a few original forms capable of self-development into other and needful forms, as to believe that He required a fresh act of creation to supply the voids caused by the action of His laws. (Darwin, 1875, p.422).17

ARISTÓTELES: serve ao acusador - Exaltar prolixamente o acusado e logo o censurar muito e concisamente

DARWIN: Examinar detidamente os aspectos aparentemente favoráveis da teoria que lhe coloca a dificuldade ou objeção e, logo a seguir, apontar sua deficiência

Bastante representativo desse procedimento é o tratamento que Darwin dá à objeção mais séria à sua teoria: a ausência de fósseis de formas intermediárias no grau e número requerido pela teoria. Inicialmente, Darwin admite a seriedade das dificuldades levantadas pela ausência de numerosas formas intermediárias, pelo súbito aparecimento de vários grupos de espécies nas formações européias, pela quase inteira ausência, segundo o conhecimento então disponível, de formações ricas em fósseis, abaixo dos estratos Cambrianos. A resposta geral a ser dada a tais dificuldades, detalhadamente examinadas, repousa na imperfeição dos registros geológicos, condensada, em seus fatores principais, na metáfora de Lyell do registro geológico como uma história do mundo imperfeitamente conservada e escrita num dialeto mutante, da qual possuímos apenas o último volume, relativo a apenas duas ou três regiões, do qual somente um curto capítulo, aqui e ali, foi preservado e, de cada página, apenas umas poucas linhas (Darwin, 1875, p.289). De modo conciso, diz: “He who rejects this view of the imperfection of the geological record, will rightly reject the whole theory” (Darwin, 1875, p.313).18

ARISTÓTELES: serve ao acusador e ao acusado - Apontar, respectivamente, os piores e os melhores motivos para a ação praticada

DARWIN: Desqualificar a evidência desfavorável e enfatizar a evidência favorável à teoria

Percorrido o longo argumento em sua integridade, pode-se então destacar as evidências, de diferentes naturezas, recapituladas em sua Conclusão, a favor da teoria darwiniana e contrárias à sua oponente. A teoria darwiniana possibilita explicação quanto: a) a questões conceituais, como do porquê da dificuldade conceitual na definição de “espécie” e “variedade”; b) a regularidades empíricas acerca da maior variabilidade das espécies dos gêneros maiores (referidas, em especial, no capítulo II); c) à tendência à divergência de caracteres, enquanto princípio; d) à questão metodológico-conceitual central às investigações biológicas: o arranjo das formas orgânicas em um "sistema natural" ; e) a princípios da prática científica, como: Natura non facit saltum - que, com Princípio de Seleção Natural, torna-se inteligível e confirmado, dado que a “seleção natural” age gradualmente, por insensíveis estágios; f) à beleza existente na Natureza, em tantas de suas formas - aqui Darwin traz o concurso da “seleção sexual”; g) ao critério de perfeição, quanto à sua condição relativa e ao fato geral da superioridade das espécies estrangeiras suplantando e exterminando as produções nativas de uma região, bem como quanto aos casos de repulsa ou ausência de perfeição - dado que a “seleção natural” age por competição, adaptando e aperfeiçoando os habitantes de cada região apenas em relação a seus co-habitantes; h) à unidade das leis que governam a produção de formas orgânicas; i) a fatos particulares estranhos, que deixam de sê-lo e podem mesmo ser antecipados, à luz da teoria, dando conta de casos literalmente inexplicáveis pelo criacionismo; j) a casos apresentados inicialmente como dificuldades à teoria darwiniana e que revertem a casos de superioridade explicativa da teoria, inexplicáveis pelo criacionismo, como os fatos revelados pelos registros geológicos, os quais, inicialmente apresentando grandes dificuldades à teoria, revertem em casos favoráveis a essa, admitida a extrema imperfeição dos registros geológicos; l) a fatos nitidamente favoráveis à superioridade explicativa da teoria, como os fatos da Distribuição Geográfica, Classificação, Morfologia, Embriologia; m) a compatibilidade da aceitação de Princípio de Seleção Natural com princípios da racionalidade humana, em geral, e científica, em particular; n) por fim, o poder explicativo de Princípio de Seleção Natural e sua teoria não fere qualquer sentimento religioso.

É creditado, adicionalmente, ao elenco das razões que são favoráveis à teoria da seleção natural: o) o fato de vir ao encontro das mentes progressistas e capazes de julgamento justo; p) o de estar conforme a axioma filosófico; q) a condição de ser a única alternativa explicativa racional para a questão da origem das espécies. Quanto à extensão do poder explicativo de Princípio de Seleção Natural em termos de aprofundamento e ampliação da investigação científica, contabilizando circunstâncias a favor da teoria: r) Darwin tem consciência de seu papel revolucionário; s) facilitação do trabalho dos sistematistas; t) o trazer uma nova concepção acerca da tarefa "definitória" e da própria "definição"; u) sua aceitação torna o estudo da História Natural torna-se muito mais interessante; v) faz avançar a investigação científica, demandando a criação de novos campos, instrumentos e tarefas de pesquisa; x) suscita uma visão “otimista” acerca das “ondições de vida” futuras.

ARISTÓTELES: Apelo a fator limitante - Quando não se dispõe de razões a dar, o apelo ao ȁé assim por natureza”

DARWIN: O apelo à nossa ignorância

Em Aristóteles, o apelo ao “é assim por natureza” é recomendado naqueles casos em que não se tem razões a dar, porque se desconfia que a ação foi praticada por uma boa intenção e não apenas por conveniência. O “apelo à ignorância” também se dá face a uma situação limitante, respaldado numa boa fé “epistemológica” e desempenha, no argumento darwiniano, papel central e inovador. Em Aristóteles, a ignorância aparece tanto como negação de conhecimento, quanto como estado ou posição positiva da mente, enquanto erro produzido por uma inferência (Analítica Posterior, Livro I, cap. 16). Em Darwin, o apelo à ignorância envolve um processo bem mais complexo, que mais o aproxima à condição limitante do “é assim por natureza”. Em diferentes passagens e após cuidadosa argumentação, Darwin ressalta que as objeções mais importantes relacionam-se a questões sobre as quais somos confessadamente ignorantes; nem sabemos o quanto somos ignorantes - relacionam-se às possíveis gradações transicionais entre os órgãos mais simples e os mais perfeitos, aos variados meios de distribuição durante longos períodos de tempo, à extensão da perfeição dos registros geológicos - sem que sejam “suficientes, de modo algum, para se abandonar a teoria da descendência com subseqüente modificação” (Darwin, 1875, p.410). O apelo à ignorância passa a fazer parte do esforço explicativo, admitindo-se limites que podem ser ou não superáveis pela respectiva possibilidade / impossibilidade do conhecimento, e incorporando a explicação dessa insuperabilidade e/ou da superação possível ao sentido próprio de “explicação”. É assim que Darwin transforma a ignorância decorrente da “imperfeição dos registros geológicos” e a impossibilidade de uma determinação precisa das formas intermediárias sem a reconstituição de toda a cadeia, num círculo consistente de ignorância, que acaba sendo explicado, segundo a própria teoria, em conformidade com a nova e aceita Geologia.

O que a comparação ora feita nos permite responder às questões que motivaram nossa reflexão?19 A comparação ora feita leva-nos, de um lado, a enfatizar aquela vertente da Retórica aristotélica, pouco explorada pela tradição, onde o próprio conhecimento científico, a demonstração necessária, cai sob o âmbito do saber usar adequadamente a linguagem e os recursos persuasivos. Essa vertente nos traz um Aristóteles de renovado interesse. Encontramos uma vital ainda que discreta ambigüidade no próprio texto aristotélico. De outro lado, leva-nos a ver que o exame da argumentação darwiniana obscurece, para dizer o mínimo, a distinção entre argumentos “científicos” e “retóricos” como estabelecida a partir da vertente aristotélica tradicional. Buscando examinar a “racionalidade em ação”, dirigimo-nos a um contexto de produção e de análise da ciência em princípio favorável aos padrões tradicionais: um contexto de argumentação científica, com pouca ou nenhuma interferência dos novos aparatos tecnológicos. Aparentemente, isso seria a “ciência” nos seus moldes tradicionais e, não, a “tecnociência” ou similares. Mas, mesmo então, a distinção entre “argumentação científica” e “retórica” não se sustenta.

À luz da visão tradicional de “racionalidade científica”, a maioria dos argumentos e procedimentos apresentados na Origem de Espécies deveria ser chamada de “retórica”. O exame do longo argumento da Origem das Espécies permite-nos ver que procedimentos e estratégias tradicionalmente tidos como “retóricos” revelam-se constitutivos de seu poder explicativo. Deveríamos, então, recusar a condição de “cientificidade” ao argumento darwiniano, ou re-pensar as usuais distinções entre argumentos “retóricos” e “científicos” com suas conseqüências para o conceito de “racionalidade científica”? Poucos estariam dispostos a acolher a primeira alternativa, sobretudo se considerarmos as novas análises da ciência e o abandono da antiga caracterização da ciência em termos de conhecimento absolutamente fundado na posse de verdades necessárias. Assim, nossa resposta às questões - estaria a visão tradicional da “racionalidade científica” assentada em bases suficientemente claras para excluir outros critérios? estaria essa visão assentada em bases suficientemente claras a bem de produzir os critérios demarcadores que pretende oferecer?- é negativa. Algumas conseqüências podem ser daí tiradas.

Em primeiro lugar, cabe destacar que, não apenas nos procedimentos que caracterizam a “racionalidade científica” em sua ação argumentativa, como no próprio fundamento em que se alicerça a tradição de sua distinção frente aos “argumentos retóricos”, tal distinção vê-se atacada. A história e a filosofia da ciência mostram-nos como a visão de ciência em termos de conhecimento que parte de verdades necessárias, permanentes e irrefutáveis (“o que não pode ser de outra maneira”) – à base da visão aristotélica de “racionalidade científica” – sucumbiu, dando lugar a uma visão de ciência enquanto conhecimento crítico-falível. Há um vínculo necessário entre o modo de conceber a “ciência” e o modo de conceber a “retórica”. Se questionamos a “visão recebida” de ciência, cabe questionar, como está sendo feito na literatura mais recente, a “visão recebida” da retórica. Vemos que é difícil, fora dos parâmetros estritos de uma visão de ciência como a aristotélica, pretender estabelecer a distinção entre “retórico” e “científico” ou “não-retórico”, em termos de um dizer calcado na manipulação do discurso a serviço da subjetividade, e um dizer calcado na verdade, na objetividade.

Em segundo lugar, em que pese a dificuldade ora apontada, continua sendo de grande valia uma leitura de Aristóteles, sobretudo de sua Retórica, nela encontrando-se uma revigorante atualidade, ainda que às custas de um deslocamento aparentemente drástico do eixo de suas análises. As análises aristotélicas procuram estabelecer distinções muito nítidas entre a Ciência com seus silogismos e provas, de um lado, e a Retórica com seus argumentos e recursos persuasivos, de outro. O deslocamento causado por questionar tais distinções deixa, contudo, de parecer tão drástico, perseguida a abertura antes assinalada da análise aristotélica a um pensar do silogismo demonstrativo a partir de verdades necessárias como uma modalidade dentro do espectro mais amplo do argumentar e demonstrar, e do demonstrar como um persuadir privilegiado, dado que o que é conforme à verdade é melhor do que o que é conforme à simples “opinião” (Retórica, Livro I, cap.7).20

Em terceiro lugar, há, de um lado, que melhor examinar as demais distinções envolvidas pela distinção entre “racionalidade científica” e “retórica”, tais como “objetividade” / “subjetividade”, “verdadeiro / verossímil”, “universalidade / contextualidade”. De outro lado, é inegável que, em qualquer caso, estamos às voltas com o dizer e com questões referentes ao uso da linguagem. Alegações freqüentemente utilizadas para estabelecer uma distinção com base na distintividade do discurso verdadeiro, onde “os fatos falam por si mesmos”, podem ser igualmente vistas como expressões retóricas. Não raro, a manutenção da distinção torna-se um recurso “retórico”, no velho sentido da palavra, para afastar e mesmo depreciar argumentos opositores e fortalecer os argumentos que defendemos: nossos oponentes valem-se de recursos “meramente” retóricos! (Soyland, 1994, p.2-3). Antes que simplesmente dada ou imediatamente apreendida, trata-se de uma distinção que não pode ser pensada fora de sua contextualidade temática e histórica.

Em quarto lugar, reforça-se o caráter mutuamente elucidador que o exame das relações entre retórica e racionalidade científica trazem a ambas. Nesse sentido, o caso da Origem revela que a desenvoltura e os ardis da “razão” vão muito além dos estritos limites dedutivos ou indutivos na tarefa de construção e sustentação das nossas explicações. Assim como, em seus primórdios, a retórica era a arte da oratória, do discurso falado e posteriormente floresceu no âmbito da palavra escrita, a presença de argumentos e recursos retóricos no âmbito constitutivo do discurso científico, em meio às materialidades de sua produção e comunicação, abre à retórica as portas a uma nova etapa de florescimento, extravasando dos limites do discurso para atuar noutras formas de linguagem sinalizando sua racionalidade.

Por fim, à pergunta: “de que modo a história e a filosofia da ciência se encontram para nos auxiliarem nessas reflexões?” cabe responder dizendo que nosso contexto de análise, nossa problematização e nossa abordagem revelaram-se indissociadamente histórico-filosóficos. Como pensar estratégias argumentativas fora de seu contexto lógico-conceitual e histórico, de sua circunstancialidade? Ao argumentar, a quem queremos persuadir, a respeito do que, por que, como? Ao pretender lançar mão dos critérios tradicionais para avaliar os achados nesse contexto, como não nos reportarmos ta integridade do contexto onde tais critérios foram plasmados e de onde foram retirados e, assim, em boa parte, desfigurados? A perspectiva histórico-filosófica permite-nos ver como, fora da rede de significações e pressupostos em que aqueles critérios se codificaram (por exemplo, fora dos seus comprometimentos epistemológicos e ontológicos originários), a racionalidade daqueles critérios sofre um profundo deslocamento. E isso permite-nos ver que, a bem de preservar nossa racionalidade, há que contextualizá-la e deixá-la fruir no dinamismo intrínseco à “racionalidade em ação”. Não se trata nem mesmo de negar suas pretensões de universalidade, mas de vê-las realizáveis sempre nos limites, mais amplos ou mais estritos, de um dado “contexto”. Mas, mais do que isso, vemos também que, em sua fluidez – parodiando o que Kitcher diz a respeito da retórica21 – a racionalidade é inescapável.


BIBLIOGRAFIA:

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NOTAS

1 Uma versão ampliada deste texto será publicada em Boaventura de Sousa Santos(org) "Para Além das Guerras da Ciência: Um Discurso sobre as Ciências Revisitado". Porto, Afrontamento,2003.

2 Vide Lenoir (1997).

3 Como adiante veremos, o texto de Aristóteles propicia uma leitura menos canônica do que aquela passada pelos comentadores clássicos e que deu lugar à tradição dominante.

4 “Como esse inteiro volume é um longo argumento, pode ser conveniente ao leitor ter os fatos e inferências centrais brevemente recapitulados” (Darwin, 1875, p. 404.)

5 “... agrupar todos os fatos sob algumas leis gerais” (Darwin, 1958, p.55).

6 Conforme examinado em O papel da metáfora no longo argumento da “Origem das Espécies”, encontramos na Origem uma nova utilização da metáfora, que vem ao encontro das abordagens mais recentes, nas quais se enfatiza seu caráter cognitivo, como modo de pensar e não apenas de dizer, contextualizando-se e relativizando-se as distinções entre “metafórico” e “literal”, vendo a ambos como partes de um mesmo continuum. Darwin não apenas vale-se de metáforas para introdução e estruturação de conceitos, mas para corroboração e defesa de sua teoria.

7 Já em seu Notebook B (228), de janeiro-fevereiro de 1838, Darwin tinha presente as profundas transformações requeridas por sua teoria, demandando, afora novas abordagens e campos de investigação, uma nova metafísica. (Darwin, 1987, p.228).

8 “Aqui posso dar apenas as conclusões gerais a que cheguei, com poucos fatos ilustrativos, mas que espero serem suficientes na maioria dos casos. (...) Pois estou bem consciente de que dificilmente a respeito de qualquer ponto discutido neste volume não podem ser aduzidos fatos aparentemente levando a conclusões diretamente opostas àquelas a que cheguei. Um resultado justo pode ser obtido apenas por uma completa enunciação e balanço dos fatos e argumentos de ambos os lados de cada questão; e isso é, aqui, impossível” (Darwin, 1875, p.3).

9“Porque se assume que a mera possibilidade de imaginar uma série de estágios de transição de uma condição dos órgãos a outra deve ser aceita como razão para crer que tal transição ocorreu. E, depois, que, sendo uma tal possibilidade então imaginada, a teia possa assumir um ilimitado número de gerações para que a transição nela ocorra e que esse tempo indefinido possa extinguir toda a dúvida de que as transições tenham realmente ocorrido” (Himmelfarb, 1968, p.333-334)

10 “... seu método essencial não foi nem observar, nem o mais prosaico modo de leitura científica, mas um modo peculiarmente imaginativo e inovador de argumentar.

O que Darwin estava de fato fazendo era criar uma ‘lógica da possibilidade’. Diferentemente da lógica convencional, onde o composto de probabilidades não resulta numa possibilidade maior, mas numa menor, a lógica da Origem foi uma lógica lógica na qual se assumiu que as possibilidades se acresciam em probabilidade” (Himmelfarb, 1968, p. 333-334).

11 “... as inumeráveis espécies habitando este mundo têm sido modificadas de modo a adquirir aquela perfeição de estrutura e co-adaptação que tão justamente despertam nossa admiração”. (Darwin, 1875, p. 2)

12 “Dificilmente pode-se supor que uma teoria falsa explicaria, de modo tão satisfatório como o faz a teoria da seleção natural, as diversas e amplas classes de fatos acima especificados” (Darwin, 1875, p.421).

13 Ressalva feita à possibilidade de sobrevivência dos chamados “grupos aberrantes” como formas conquisradas por competidores mais bem sucedidos, com poucos membros preservados sob condições de vida inusualmente favoráveis. (Darwin, 1875, chapter XIV, p.378).

14 “Como esse volume é um longo argumento, pode ser conveniente ao leitor ter os fatos e inferências centrais brevemente recapitulados” (Darwin, 1875, p.404)

15 “Nada pode ser mais desesperador do que tentar explicar essa similaridade de padrão em membros da mesma classe pela utilidade ou pela doutrina das causas finais. O caráter desesperador da tentativa foi expressamente admitido por Owen no seu mais interessante trabalho, ‘The Nature of Limbs’. Sob a visão ordinária da criação independente de cada ser, podemos dizer apenas isto – que assim agradou ao Criador construir todos os animais e plantas em cada uma das grandes classes segundo um plano uniforme; mas isso não é uma explicação científica.” (Darwin, 1875, p.383).

16 “... isso não é uma explicação, meramente uma re-afirmação do fato. Nem é consistente consigo mesma (...)” (Darwin, 1875, p.400).

17 “... ele aprendeu gradualmente a ver que é uma concepção tão nobre da Divindade crer que Ele criou algumas poucas formas originais capazes de auto-desenvolvimento em outras e necessárias formas, quanto crer que Ele necessitou de atos novos de criação para suprir os vazios criados pela ação de Suas leis.” (Darwin, 1875, p.422)

18 “Aquele que rejeita esta visão da imperfeição do registro geológico, certamente rejeitará toda a teoria” (Darwin, 1875, p.313)

19 Estaria essa visão tradicional da “racionalidade científica” preparada para dar conta da nova pauta de questões levantadas pelas análises mais recentes da ciência? Estaria essa visão assentada em bases suficientemente claras a bem de produzir os critérios demarcadores que pretende oferecer? Que conseqüências decorrem da suficiência ou não das bases em que se assenta a visão tradicional de “racionalidade científica” para a solidez dos princípios e critérios que estabelece? De que modo a história e a filosofia da ciência se encontram para nos auxiliarem a responder a essas questões?

20 Um enrijecimento de perspectiva ocorre se tomarmos o silogismo retórico meramente como uma certa “deformação” do silogismo demonstrativo propriamente dito.

21 “If we are forced to abandon traditional ideas about ‘rigorous scientific thought’, we may console ourselves by realizing that persuasion is nowhere near as bad as its traditional reputation may suggest. Indeed, as the opening scene of King Lear attests, ‘speaking plainly’ has its own (perhaps unintended) persuasive effects. Cordelia was wrong. Rhetoric is inescapable”. (“Se somos forçados a abandonar as idéias tradicionais sobre ‘pensamento científico rigoroso’, podemos nos consolar dando-nos conta de que a persuasão, em nenhum lugar, é tão nociva como sua reputação tradicional pode sugerir. De fato, como a cena de abertura do King Lear atesta, ‘falar simplesmente’ tem seus próprios (talvez não intencionados) efeitos persuasivos. Cordelia estava errada. A retórica é inescapável.”) (Kitcher, 1991, p.24).

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* Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: aregner@portoweb.com.br