A PAISAGEM DAS LUZES EM PORTUGAL (fim)
texto de Mário Fortes e Cláudia Ávila Gomes
fotografias de Teresa Andresen e Mário Fortes
(arquitectos paisagistas)

A intervenção, por decisão sereníssima datada de 1764, efectuou-se gradualmente contemplando numa primeira fase a realização de projectos, logo seguidos por obras de beneficiação da antiga povoação agrícola, de regularização do leito das superfícies e linhas de água e de construção de uma paisagem. Na sua concepção adoptaram-se e adaptaram-se soluções estéticas reconhecidas nas viagens efectuadas a Inglaterra.

Nesta paisagem que suporta vastas áreas produtivas plantaram-se orlas arbóreas e arbustivas que enquadram templos clássicos, pavilhão gótico, estátuas e demais elementos decorativos, delimitando cenários que se justapõem continuamente ao longo de percursos pré definidos, legendados e sinalizados. Nestes últimos, descritos em 1788 por August Rode (BUTTLAR, A., 1989, p.135), desenvolvem-se itinerários contextualizados e analógicos em torno da ideia mítica da Viagem da Vida (4).

A atracção que o parque actualmente exerce nos visitantes é motivada pelas situações insólitas e misteriosas a que estão sujeitos: Passagem por veredas sinuosas e labirínticas (5), por bifurcações ambíguas, por obstáculos restritivos e impasses (6), travessias de superfícies de água (7) e principalmente pela condução através de templos misteriosos, de caves, de criptas, de túneis e grutas temerosas (8) - O interesse que as panorâmicas sobre lagos, ilhas, jardins, bosques, prados e restantes áreas agrícolas, desperta nos visitantes poderá ser relegado para segundo plano.

Evitando a realização de uma abordagem exaustiva sobre as diversas construções do parque cita-se apenas o panteão pelo recurso óbvio à simbólica Maçónica e pela sua integração num percurso específico. Este edifício de inspiração clássica dedicado aos interessados pela cultura e pela natureza foi projectado em distintos níveis, sendo construído sobre um montículo rochoso artificial sobreposto a uma gruta. No nível superior dispõe-se as estátuas de Apolo e das nove Musas, enquanto que no segundo nível, subterrâneo, se encontram relevos representando Osíris, Ísis (9), Harpocrates exigindo silêncio (10) e Anúbis. Desta cripta, centrada por um pedestal sobre o qual se encontra um Canope falso, acede-se à gruta e ao parque, assegurando-se a continuidade de um itinerário que cruzaria sequencialmente exteriores e estruturas construídas.

Todo este programa, realizado em torno de itinerários complexos, contempla o desenvolvimento e a valorização individual pela sujeição contínua a provas e a obstáculos como veículos de progressão e ascenção espiritual. Nestes itinerários valorizam-se ideais e virtudes, enaltecendo-se a participação consciente do cidadão na sociedade, pela dedicação de templos, monumentos ou estátuas, muitas vezes legendados.

Parque de Worlitz : Lago


Real Quinta de Queluz: Lago Grande

Sem dúvida que estas composições pretensamente naturalizadas, e assumidamente artificiosas, se destacaram pelos objectivos filosóficos e políticos que presidiam à sua concepção, e não pelo rigor de um conhecimento arqueológico e arquitectónico, cuja sistematização remontava a primórdios da renascença. Este movimento renovador que alterou profundamente a percepção da paisagem, caracterizou-se não só pelas inúmeras composições de inspiração clássica, mas também pelas criações pitorescas em torno de magníficas ruínas medievais como Fountains Abbey (11).

Ruínas da Abadia Cisterciense de de Fountains (Inglaterra)

A progressiva redução da expressão contestatária e da iconografia hermética destas composições, poder-se-á justificar pelo cumprimento de objectivos sociais e políticos nos finais do Século das Luzes. Gradualmente, sublimaram-se sentimentos, relevando-se a vertente nostálgica e exótica de cenários, como contributo para a formalização da paisagem romântica.

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(4) Todas as culturas ocidentais consagram à simbólica da “Viagem” alguns dos seus mais relevantes mitos, de entre os quais permaneceu como arquétipo do mundo ocidental o retorno de Ulisses a Ítaca, que representa algo mais que uma narração das aventuras do herói. Alguns dos rituais maçónicos dão grande importância às viagens míticas reproduzidas em cerimónias de iniciação e nas de exaltação ou elevação de grau - Neste processo tem-se em conta a profunda vinculação do processo iniciático com a ideia de evolução humana e a inquietude da descoberta que move o iniciado em busca da Luz. A viagem iniciática reproduz a passagem pelo Mundo e nela se destaca a singularidade da Viagem Individual em que a descoberta do Mundo Exterior é acompanhada pelo reconhecimento da intimidade, mediante recurso a itinerários sequênciais (HURTADO, 1994, P.181-183).

(5) Na obra Hypnerotomaquia ou Discurso do Sonho de Polifilo de Francesco Colonna, publicada em 1499, o labirinto é a primeira prova do percurso iniciático que orienta a concepção do jardim. A passagem por um labirinto poderá estar relacionada com a ideia de viagem através da vida em que, mediante decisão e acção conscientes, o homem pode orientar-se-á até uma meta existente, ainda que invisível. Nesta perspectiva permanece a base da peregrinação como correspondência simbólica entre a vida exterior e interior, ou a vida física e a vida espiritual do Homem.

(6) Alusões às dificuldades existenciais. Linhas divisórias entre a Vida e a Morte. Referencias iniciáticas relacionadas com o acesso gradual a mistérios (HURTADO, 1994, P.137).

(7) Alusões à travessia do Estíge - Rio dos mortos. Morte e Ressureição.

(8) A tradição iniciática refere os 4 elementos físicos como expressões da energia universal: Terra, Ar, Água e Fogo correspondentes aos planos humanos do corpo, mente alma e espírito; a ritualização atende ao contacto do neófito com o interior da Terra (reflexão e análise da sua natureza intima), renascimento e acesso ao Ar renovador (mente e razão), purificação pela Água (sentimento e intuição) caminho para o Fogo como meta espiritual (Conhecimento do Ser, que se sobrepõe à simples razão e ao sentimento vital) (HURTADO, 1994, P.181-182). Estas estruturas manifestar-se-iam adequadas à contextualização destas práticas, que decorreriam em espaços identificados como Gabinetes de Reflexão.

(9) Relembre-se no último movimento da Flauta Mágica as divindades egípcias associadas ao mistério da Morte e Ressureição:

"Salve sagradas criaturas que se impõem através da noite!

Agradecimentos a vós, Osiris e Isis, sejam apresentados!

A força venceu, e como recompensa

Apresenta a eterna coroa à beleza e à sabedoria."

(10) Provável referência ao secretismo maçónico.

(11) Abadia cistercience cuja origem remonta ao século XII, localizada no fundo de um pitoresco vale, no Norte de Inglaterra - Yorkshire. As ruínas desta abadia forma integradas por William Aislabie na composição paisagista de Studley Royal concebida por seu pai na primeira metade do séc. XVIII.