TERESA FERRER PASSOS
O Segredo de Ana Plácido

Excerto do romance O Segredo de Ana Plácido (1ª edição, Gazeta de Poesia, Lisboa, 1995, págs. 7-10, sob o ortónimo Teresa Ferrer Passos; 2ª edição, Vega, Lisboa, 2000, págs. 13-15, sob o ortónimo Teresa Bernardino:

«aos sete dias do mês de agosto do ano da graça de 1886 penso o artifício dos anos a falsidade dos dias. Mas os olhos não mentem. Os olhos de Camilo. Li neles todas as pá­ginas dos seus livros. Imer­so nas estantes da sua biblioteca vi o peso da cegueira que o atingia cada vez com mais intensidade e perguntei a mim próprio porque es­tava a perder a visão quando o seu espírito indómito perseguia a ideia de continuar a escrever nas fo­lhas de papel almaço que chega­vam to­dos os meses de Famalicão. Aqueles olhos vorazes da tinta negra com que escrevia sempre o nome de Ana desenterravam todas as mi­sérias impunes cercando-nos com muros tão altos e espessos, que mais pareciam muralhas de castelos intocáveis. No seu deambu­lar visual, Camilo, meu pai, percorria o mundo todo na solitá­ria e nevoenta quinta dessa miniatura aldeã chamada S. Miguel de Ceide. Nesse mundo imerso e disperso em tanta imaginação vivia eu, meus pais e meus irmãos Manuel e Nu­no. Num labirinto de nomes habita minha mãe baptizada com o nome de Ana Augusta Plácido. É amante de Camilo desde...

........em incêndios de dúvida perdia-se a sua incredulidade ao olhar o seu filho querido, o seu Manuel. Ele o crime referido nos livros e nas in­termináveis cartas que dirigia aos amigos? eu só nasci anos depois de Manuel. Ainda em vida de Pinheiro Alves (meu pai legítimo pelo seu casamento com Ana, celebrado ,em 1850, na capela da Quinta de Vilar Álen em Campanhã). Não serei eu a continuação do inaudito crime? no olhar perspicaz e a enlouquecer de dor des­cubro uma parte bem funda de quem é Camilo. A revelá-lo, os olhos cegos não desistem de encontrar linhas nas folhas de papel em bran­co iluminado por um número crescente de velas. A luz do dia, mesmo quando o sol brilha e penetra com os seus fulgores dourados através da vidraça quadriculada, é uma sombria claridade na escura visão com que se defronta. Mas as cintilações dos seus olhos atin­gem-me como um canto de sereia bela em busca de razões que me tornem um ser razoável. Na sem razão de mim, Camilo procura o enigma da sua perdição trágica: a escuridão a apoderar-se de todo o seu corpo débil informe nervoso como a morte a mo­rar já em suas entranhas. Um artifício maior do que a minha loucura a escorrer o fel amargo das entranhas fétidas e insepultas. Olha-me frequente­mente. Em seguida, se Ana está perto, é-lhe impossível não a olhar. Ela foge ao seu olhar acusador implacá­vel desgraçado. Não sei porque o faz. Nunca lhe perguntei fosse o que fosse. A essa mulher em cujo seio nasci. Para quê? sabia que jamais responderia às minhas interroga­ções. Por pudor medo ou simplesmente por má­goa? quem se atreveria a desvendar os seus segredos? nem sequer o homem de quem gostara um dia e o único que então, pen­sava, podia fazê-la feliz! feliz... Onde está a felicidade? interrogava Camilo nesse livro escrito no tempo em que julgava ter perdido a última oportunidade (e primeira?) de en­contrar a felicidade. Jamais encon­trara uma mulher tão fascinante e, ao mesmo tempo, tão distante: a infantilidade dos gestos; a serenidade do olhar estranho; a candidez do sorriso tenso; a vertigem dos lábios apagados; a liberdade negra dos cabelos enlaçados em estreitas fitas de veludo branco; o insólito da timidez a transbordar de ousadia; a fragrância da pele envolta em minérios a jorrar a neve de um verão imortal; a singeleza do silêncio a respirar as palavras submetidas à clausura de si mesmas e a fume­gar; a irrisão de lágrimas vertidas nessa origem perdida em naufra­gante destino.

.........olho os lírios lilases a ladearem os canteiros ziguezagueantes fren­te à janela roxa do meu quarto. Desenho círculos e quadrados entre losangos e cones nas paredes forradas de papel cinzento com voluptas e frontões amarelos (ou ocres); as suas cores variam con­soante a luminosidade do dia a clarear ou a perder-se num poente dourado ou no chumbo sepulcral dos céus plenos de invernosa rea­lidade. Olho os lírios brancos (há pouco eram vermelhos) e tropeço com o pensamento no vestido negro ou púrpura de Ana. Entre os seus dedos o charuto de formato cilíndrico e aroma inebrian­te de que não se cansa de tirar fumaças no ar pesado e lento desta terra a esvair-se em cinzas. Esse fumo vibra no meu e­spírito, como se fosse uma condenação maior do que a vida, em que me desdobro sem conseguir esvoaçar um pouco, nem sequer abrir o coração en­sanguentado de gritos.

..........espero a libertação. Entre os grilhões de uma biblioteca infinita. Sinto a via para a liberdade pura. Dói-me o pensamento de ver Ana a ficar, de súbito, atónita, lânguida, perversa. Parece-me, cada dia que passa, uma desconhecida, uma figura vagabunda a agredir a solidão dos meus dias sem amanhecer e das minhas noites infindáveis sempre a ouvir o vento... a gemer de raiva, como a sondar os silêncios cada­véricos de Ana Plácido ou a escrita ázima de Camilo sobre as pági­nas que lerei um dia com a fúria de quem descobre a sabedoria. Na ignorância de todo o meu ser, na opacidade dos seus secretos dese­jos a diluírem-se numa memória repassada de futuro, morro cada dia em que desperto para voltar a sentir a fustigada cumplicidade e a indelével indiferença dessa mulher esventrada pela dolorosa des­dita de me chamar seu filho louco. Escondeu-me a verdade! Ana não me quis dizer a verdade! gritou Camilo a Alberto Pimentel numa carta que li logo após ter sido escrita; o último escrito daquela noite envolta nessa chuva inapagável na minha memória de criança em busca da sua natureza íntima, única, inteira, a ser celebrada pela eternidade. Essa eterni­dade que desdenha fracos oprimidos desprezados rejeita­dos...

..........essa carta deixada na secretária não sei se a entendi... lembro-me apenas de a ter decifrado sem conhecer o significado das pala­vras; mas o seu grafismo oculto transpareceu com uma luminosi­dade sombria a apagar-se e inapagável. Porque não me disse a verdade? interrogava-se Camilo quando eu contava apenas cinco anos?! (…)»

 

Teresa Ferrer Passos